Anotações Urbanas – trabalhadores, trabalhadoras e a cidade

UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINA

A problemática e a justificativa da pesquisa

A Constituição brasileira promulgada em 1988 estabelece várias prerrogativas inovadoras no campo dos direitos e garantias, embora sua normatização e mesmo aplicação, vinte e dois anos depois, seja objeto de contradições e controvérsias, notadamente nos âmbitos jurídico,econômico e social. Destaca-se aqui, para efeito desta proposição que:

1- Os direitos sociais são marcadamente desdobramentos dos direitos  trabalhistas, considerando a referência que teve o legislador de que a maioria da população brasileira tem como fonte as condições de vida originadas das ocupações laborais. Tais direitos tem sido objeto de tentações e práticas reformistas de todos os governos civis eleitos pós-1988, sob diferentes justificativas, mas em especial aquelas pressionadas pelas políticas econômicas neoliberais desde os anos 1990 e fortalecidas no campo teórico-ideológico pelo questionamento do trabalho como referência socialmente relevante ou mesmo chave para a explicação sociológica, tais como indicaram em vasta obra, entre outros, Claus Off e Jurgen Habermas.

2 – O direito à cidade, como artigo inovador na história constitucional do país, traz para esta magnitude a questão urbana, objeto de amplo movimento de mobilização reformista em diversos aspectos da vida social, pelo menos desde os anos 1960 e interrompido pela repressão da ditadura instaurada em 1964.

Neste âmbito, a Constituição de 1988, ao instituir o Plano Diretor para cidades com mais de 20.000 habitantes, também estabelece uma novidade — o Estatuto da Cidade (estabelecido pela Lei n.10.257/2001), fazendo constar a prerrogativa dos indivíduos, das associações e das coletividades a participação e decisão do planejamento urbano como materialização de grande parte dos direitos Constitucionais que dependem dos equipamentos urbanos e condições sociais tais como habitação, saúde, transporte, educação, lazer e meio ambiente, incluindo, para esta realização, o plano orçamentário das cidades.

Na transição dos governos militares aos governos civis, convencionada também como transição da ditadura à democracia, outra transição econômica, geográfica e social simultânea é transversal à realização política institucional, o crescimento da população urbana, que inverte rápida e profundamente o perfil do país. Acompanhando uma tendência mundial, a população rural diminui e a população urbana acelera seu crescimento, fazendo com que as grandes cidades tornem-se o habitat principal do planeta, estabelecendo em escala antes desconhecida, a problematização da viabilidade dos direitos sociais em suas múltiplas ordens desdobradas dos direitos sociais e dos direitos à cidade. Como noutros países, também no Brasil “o debate sobre o trabalho pode também ultrapassar os muros da fábrica e ser pensado em termos de sua ligação com a questão social” (RAMALHO, 2008, p.243).

Em síntese, o que está se processando, tendencialmente, é que a condição de ser trabalhador não é mais garantia de direitos sociais e a de ser citadino não é mais garantia dos direitos à cidade, em troca de outra única e possível convergência e convertibilidade de interesses, a dos negócios.

Posto assim, as atividades rurais tornam-se dependentes das cidades enquanto nestas a desvalorização do trabalho é condição à valorização do capital, principalmente, nas suas modalidades fundiárias e financeiras; põe em questão a função integradora do trabalho na sociedade, na medida em que também “desmonta o sistema de proteções e garantias vinculadas ao emprego”(IDEM, p.244).Seria o mercado e a competitividade, como apontam as tendências predominantes nas várias pesquisas de sociologia do trabalho, instância  de coesão social? Não é o que parece, se, analisadas as cidades como espaço onde a questão social é demonstrada em toda sua situação real e onde imperam as dificuldades práticas para que as  políticas urbanas se façam  como solidariedade.

Nesta síntese, o lugar do Estatuto da Cidade é posto como utópico, embora torne-se base para uma vasta área de reivindicações e mobilizações, não necessariamente antagônicas e anti-sistêmicas, mas como estratégia de construção de um caminho para o bem estar ante aspectos destrutivos sociais e ambientais da globalização capitalista. Todavia, ressaltem-se aqui, as cidades como formações sócio-espaciais não escondem de forma total as contradições que se lhes fundam; todavia,  ainda sem a convergência de um movimento coletivo que possa constituir a unificação de uma tendência histórica antagônica, parecendo que as estruturas de exploração e dominação do capitalismo operem no vazio de sua própria reprodução, congelando as formas institucionais de dominação.

De um lado as cidades se estabelecem como espaços de circulação e consumo,  condição para a realização dos negócios e a  mercantilização e reificação do trabalho, não reconhecendo nele a centralidade política (SOUSA,2010), mas ao mesmo tempo requisitando deste, cada vez mais, a produtividade necessária para o pleiteado bem estar e para a valorização do capital, realizações estas que não se efetivam sem a contradição que lhe é própria. O trabalho passado e presente, que esconde-se na reificação cotidiana, aparece quando falta, não apenas como crise e desemprego, mas como greve e protestos, interrupção da normalidade da reprodução cotidiana, incomodando e conflitando com o capital e por vezes com os movimentos defensores do bem estar sócio-ambiental .

Nesta formulação, os processos de crescimento urbano e de formação das cidades como espaciais e sociais, têm sua dinâmica de poder e de espaços arquitetônicos (relações sociais de poder), inserida no sistema mundo capitalista que transcende o Estado nacional e a dinâmica dos grupos de status e seus sistemas de valores (Weber) , firmando-se como unidade de análise mais ampla quando relacionado às contradições de classe.

Na proposição  deste marco analítico, a sociologia, a antropologia , a arquitetura, a história e outros  saberes especializados, podem assim atuar de forma interdisciplinar,  como sociologia histórica, quando deslocam –  numa prospecção crítica da economia política (Marx), ou seja, da unidade de análise Estado-nação e do mercado como lugar do trabalho (A.Smith) –  para a socialização do trabalho em escala mundial entendendo as cidades como espaços das relações de produção, suas funcionalidades contraditórias  e suas transformações.

Desta forma, a proposta desta investigação está centrada na compreensão da cidade como território onde possam ser considerados o mercado e os grupos de status, as relações de prestígio e poder como manifestações reais, mas, além dos possíveis tipos ideais na esfera do consumo, se requer para a compreensão dos processos  de formação das mesmas, o lugar do trabalho e da produção. A cidade, para além da ruidosa esfera do mercado e da arena política – onde as coisas têm lugar na superfície à vista de todos – é o lugar oculto da produção (Wallerstein, Marx)

As relações sociais de produção aparecem nas cidades de duas formas: 1) relação entre iguais, na medida em que trocam/vendem mercadorias, e 2)ao mesmo tempo promotoras de desigualdades, à medida que a produção se contempla como um processo que tende a reduzir o valor da força de trabalho e simultaneamente erodir o poder negociador de seus possuidores (Wallerstein, Arrighi), onde as vantagens da redução dos custos são agregadas integralmente ao capital.

Aí reside um problema, a realização da crescente massa de trabalho excedente da qual o capital se apropria na produção, se manifesta periodicamente como crise de superprodução, forçando a destruição de uma parte das forças de produção e a conquista de novos mercados e exploração mais intensa dos velhos mercados, sedimentando as condições para crises mais destrutivas e diminuição dos meios mediante os quais se evitam as mesmas.

Na cidade isso se reproduz como igualdade jurídica dos indivíduos (Estatuto da Cidade) e ao mesmo tempo aprofundamento das desigualdades econômicas no acesso aos bens de consumo, na posse de bens públicos, na deterioração das condições de vida, na marginalização social, nas formas de segregação social e espacial, no refinamento dos sistemas de vigilância, controle e repressão e na crescente complexidade dos problemas urbanos/sociais.

O que a cidade pode então dispor aos trabalhadores é marco de lutas sociais e de conflitualidades antagônicas, quando na precariedade das condições de vida e trabalho, trabalhadores possam constituir associações e onde podem convergir ou não como grupos de status (consumo) e classes (produção).

Objetivos

Tomando a cidade como conceito sócio-espacial, o objetivo geral de pesquisa aqui proposta é compreender o lugar do trabalho nas cidades, entendendo historicamente os processos de urbanização como esferas de consumo e de produção, e o acesso aos bens públicos e equipamentos urbanos, como direitos sociais conflituosos, possivelmente antagônicos e objeto de movimentos coletivos de grupos de status e classes sociais.

Desdobrado deste objetivo geral, o foco mais específico da pesquisa implica em:

– Abordar teoricamente e de forma relacionada os processos de urbanização e de desenvolvimento da força de trabalho como estruturação, para além do mercado e do Estado-nação, como conflituosa relação social de produção referida ao desenvolvimento da economia mundo.

-A partir do enfoque analítico, situar e registrar as possíveis observações empíricas de Florianópolis (sem perder de vista outras referências de urbanização), localizando as relações entre os trabalhadores e a cidade, as conflitualidades com relação à aplicação do Estatuto da Cidade, seu plano diretor, as políticas urbanas e os direitos sociais, incluindo o trabalho como produção e consumo, nas atividades de mobilidade urbana, comércio,comunicação,educação,saúde,alimentação, espacialização, linguagens e signos urbanos,entre outros.

Metodologia

A pesquisa aqui proposta implica em considerar duas abordagens iniciais e inter-relacionadas, uma (A) de cunho teórico, situar o marco teórico necessário, com o estudo de referências específicas de Karl Marx (trabalho,força de trabalho, mundialização do capital,classes sociais), Max Weber (grupos de status,poder,prestígio e sistemas de valores), Immanuel Wallerstein e Giovanni Arrighi (sistema mundo, movimentos antisistémicos), Mikail Baktín (ideologia e linguagem),  e (B) situar o contexto social e político e de urbanização quando da promulgação da Constituição brasileira de 1988 e o Estatuo da Cidade e suas implicações para compreender a relação entre trabalhadores,direitos sociais e a cidade.

Concernente à abordagem A, citada acima, para estabelecer uma orientação epistemológica dos procedimentos metodológicos de pesquisa, tomamos como base a sociologia histórica. Esta referência, a sociologia histórica, é aqui entendida como influencia da Escola dos Annales ( PIÑA,2000) – embora já fundamentada em Tocqueville, Marx e Weber –  frente as limitações do funcionalismo e do positivismo, tomando posição no cenário sociológico dos grupos, das classes e dos movimentos sociais como portadores de mudanças sociais. Neste caso, ao invés do ideal utópico de modelo de integração, consenso e estabilidade, a cidade é analisada como relações sócio-espaciais de conflitos e transformações como divisas básicas de seus modelos de interpretação.

Neste marco teórico, notadamente nos anos 80, com a superação do tradicional eurocentrismo e norteamericanismo, foi possível o aparecimento de novos temas e problemas analisados desde a perspectiva da sociologia histórica, cujos alcances parecem ilimitados. Nesta direção, a contribuição de Florestan Fernandes no Brasil amplia o marco teórico para além da América Latina com suas formulações sobre o capitalismo dependente, abordando a história como sociologia histórica, em processos de longa duração. Nesta proposição, as inter-relações entre as ciências ideográficas e nomotéticas possibilitam contemplar as articulações entre ação e estrutura, como se formam e como se transformam as sociedades em largo prazo, como as experiências e as atividades das coletividades são afetadas por estas transformações.

Neste aspecto, apontamos a direção inversa da teoria da não centralidade do  trabalho e da rational choice ,pois supor, como no individualismo metodológico, que as situações sociais e comportamentos coletivos são resultados de ações individuais, não é uma explicação suficiente ante as implicações históricas e os constrangimentos estruturais, e isso não significa diminuir a relevância de considerar os sujeitos e as ações sociais.

Para efeito desta orientação é necessário considerar os grupos de status sugeridos por Weber, (justapostos à formação de classes), onde o poder estruturado por estes influi na distribuição objetiva dos bens e serviços, organizando o Estado dentro da comunidade política em função do prestígio. Mas, a forma estruturante destas sociabilidades e sistemas de valores não está restrita às formas políticas existentes (Estado) daí a pertinência de considerar a realidade da “propriedade” e “ausência de propriedade”, onde as oportunidades de vida dos indivíduos se fazem determinadas por sua posição de classe. As classes em relação uma com a outra, conflitam-se também como situações que envolvem/desenvolvem  formas de linguagem, de consciência e de ações coletivas na complexa dinâmica marxiana de classe em si/classe para si.

Considerando tal formulação, é necessário então precisar, mesmo que de forma ad doc, para fim específico, o conceito de trabalhador, como escopo de classe social aqui focada como objeto da pesquisa.

Segundo o historiador M.Tuñon de Lara ( 1972), em um sentido estricto, o operário trabalha nos setores primário,o secundário da produção ou em setores do terciário mais vinculados à produção (transporte). Operário e classe operária nascem por conta de um complexo processo de separação entre o trabalhador e os instrumentos de produção, ao cabo do qual existe uma autêntica economia de mercado. Como diz Tuñon de Lara, “não obstante, o conceito de operário se insere em outro mais amplo, o de trabalhador. Tão amplo que não nos serviria para nossos fins se não lhe recortássemos previamente: trabalhador por conta alheia, ou seja, que vende sua força de trabalho por conta de uma remuneração”(LARA,1972,p.9). Assim entendido, o conceito de trabalhador não se limita à produção visto que se expande ao amplo setor de serviços. Com esta conceituação se amplia os sujeitos propostos na pesquisa, na medida em que com os processos de inovações tecnológicas, os conceitos de técnicos, especialistas e peritos formam o que se chama o conjunto salarial, compreendendo diferentes capacitações profissionais e remunerações e formas de vida.  O movimento operário se apresenta, por sua vez, como uma atividade e como uma tomada de consciência da condição social e que supõe a exigência de atuar solidariamente, já que a produção é um fenômeno social.Daí surgem as  primeiras ações específicas que fizeram o movimento operário. Com as modalidades imateriais,flexíveis e dispersas atingindo e fragmentando o operariado, mais extensivamente ainda aos trabalhadores concorrentes entre si, é de se presumir que as formas de consciência de classe não se apresentam enquanto tal, para além do corporativismo, se não como movimento nos conflitos realmente antagônicos. A questão que se apresenta é que na esfera do mercado, considerando as demandas mais imediatas de bem estar, os movimentos citadinos não são, por si, geradores de consciência de classe e de movimentos anti-sistêmicos. Que radicalização poderia então promover novas possibilidades aos movimentos sociais urbanos? A hipótese metodológica aqui observada sugere que a espacialização da cidade e a distribuição dos seus bens, se observadas sob o Estatuto da Cidade como participação direta dos indivíduos e coletividades no processo decisório, pode gerar contradições que não serão superadas como recurso jurídico, na medida em que a expropriação do que há de público pela privatização da economia capitalista pressupõe uma valorização segregadora e incompatível com a democratização substantiva da cidade. E isto pode ser um fator de embate político significativo, pois extrai dos trabalhadores, na esfera do consumo, os recursos últimos não obtidos na produção. Este é  o lugar não estável e não linear dos trabalhadores na cidade, é residual de sua condição classista dissimulada na coisificação do trabalho  patenteado como mercadoria (a mais miserável porque descartável) e como produtos; a cidade, mais do que comunidade política institucional, é o passeio dos negócios, não sem lutas e sem  antagonismos .

Com base nesta sugestão epistemológica, a pesquisa abordará de forma interdisciplinar as narrativas sobre Florianópolis como saberes antropológicos, históricos, geográficos, sociológicos e arquitetônicos, através de relatos etnográficos, relatórios de história oral e vivências, condições e oportunidades de vida relacionadas ao espaço urbano, localizando o trabalho como atividade, como falta (não trabalho, greve e manifestações) acesso aos bens   e movimentos coletivos.

Abordar as narrativas sobre o lugar do trabalho na cidade de Florianópolis como ideologia e linguagem polifônica (oral e escrita), observando seus signos urbanos e suas segregações sociais.

Apresentar como resultado da pesquisa relatórios na forma de anotações etnográficas como textos, vídeos e fotos que expressem a linguagem urbana sobre os  trabalhadores e a  cidade.

Para desenvolvimento destas atividades propõe-se como marco temporal, embora não limitado teoricamente a este, a Constituição promulgada em 1988.

Bibliografia

BAKTIN, Mikail . El marxismo y la filosofia da lenguaje. Madri, Alianza Universidad, 1992.

LARA, M.Tuñon de. El movimiento obrero em la história de españa.Taurus Ediciones,Madrid,1972.

MARX, Karl.  O capital, vol. I

MARX,Karl  e ENGELS,Friedrich. O manifesto comunista.

ENGELS, Friedrich. A situação da classe trabalhadora na Inglaterra.

SOUSA, Fernando Ponte de. Crise, “pós crise”e a centralidade política do trabalho

WALLERSTEIN, Immanuel. Capitalismo histórico y movimentos antisistémicos – um análisis de sistemas-mundo. Ed. Akal, Madri, 2004.

WEBER, Max. Economy and Society. Bedminster Press,New York,1968

Constituição Brasileira – 1988

Estatuto da Cidade (Lei n. 10.257/2001)