A responsabilidade da inteligência*

Por Florestan Fernandes

Em poucas fases na história da humanidade tem-se preocupado tanto com a função da inteligência e portanto com a sua responsabilidade, como nesta em que vivemos (são os “testamentos”, as “plataformas” das “gerações”, procurando-se esclarecer os problemas e o modo pelo qual êstes são encarados pelos intelectuais: os debates, em que se discute, profunda ou superficialmente, qual ou como o intelectual deve tomar posição na vida da sociedade e dela participar etc. etc.). E os motivos justificam a preocupação. De fato estamos numa fase crítica – no sentido do “ponto crítico” em geometria: mudança de direção – e as necessidades relacionadas à renovação exigem da inteligencia que ela atue sôbre os casos e os problemas com que nos debatemos, que em parte podem ser postos em seu ativo.

Já não se trata, atualmente, de retornar a questão puramente acadêmica que sempre dividiu os intelectuais em dois grandes grupos: os partidários da “torre de marfim”, do isolamento do intelectual, e os que pretendem ver nele um reflexo de um certo ambiente social. Tão pouco se trata de conceber uma posição de oportunista verdadeiro para o intelectual, que se isola do meio durante um certo tempo, perdendo-se em categorias universais e problemas pseudamente humanos explicáveis na maioria das vêzes por uma intensa insinceridade do eu consigo mesmo, e depois volta – quando a oportunidade é boa e a massa dorme – como uma espécie de Júpiter, providencial, munido de todos os raios precisos para alumiar o caminho dos pobres-homens.

As necessidades do momento e a dolorosa história da tragédia humana nestes últimos trinta anos – tragédia no sentido mais amplo, espiritual e material – põem o tema de um modo preciso e exatamente determinado: a função da inteligência e sua responsabilidade. Não se trata mais, pois, de focalizar o intelectual numa posição, com certas idéias e com outros tantos tics e tacs. Êle é representado como um indivíduo que tem certa capacidade de trabalho e do qual a sociedade espera, como de todos os demais membros, uma atividade útil e criadora. Êle tem – como os outros – suas funções e a responsabilidade da inteligência aparece justamente no momento em que ela as exerce e mais ainda no momento em que ela consente que essas funções não sejam exercidas. Assim, tende-se a conceber a ação do intelectual controlada (permitam-me…) por um conjunto de elementos que representam a coletividade, num sentido amplo, e encarnando um modo de ser e uma ética profissional extensivos unicamente ao grupo, num sentido restrito.

Vê-se que esta solução não é uma síntese nem uma conciliação e tão pouco se restringe a uma das duas posições acadêmicas. É uma situação de fato a que tendemos chegar por um desenvolvimento natural e inevitável. Apareceu em virtude do comodismo e depois do sacrifício do intelectual, vitimado pela tolerância ou pela incompreensão de suas funções na sociedade. E tende a se precisar, dia a dia, por causa da reação subseqüente da inteligência – que vive o segundo ato do drama tolerado, admitido e criado, em parte, por ela mesma, muitas vêzes por covardia e não por simples comodismo.

Essas considerações surgiram à medida que lia o artigo de José Medina Echavarria: “Responsabilidade de la Inteligencia”, primeiro no livro com êsse título. Em parte elas traduzem uma ponte, ligando a inteligência, como existiu até hoje em nossas sociedades, e a trágica situação que o mundo vive agora. O comêço dessa ligação está no que Medina chama “viver de segundo grau” em que o intelectual afasta-se paulatinamente da vida imediata, deixando de participar “das atividades criadoras, dos fatos e dos acontecimentos que nos rodeiam” acumulando conhecimento sôbre tôdas as coisas, sem contudo “participar realmente delas”. É o que êsse autor chama depravação da inteligência que, renunciando às próprias funções, consome-se num círculo vicioso, perigoso para ela e para a sociedade. O conventilhismo, a “torre de marfim”, caracteriza essa primeira etapa.

A segunda é escrita tendo por pena a ponta da espada, por tinta o sangue dos oprimidos e por fundo a tragédia dos sacrificados, entre os quais se encontram os intelectuais. O assalto ao poder já estava feito e uma nova etapa da “ordem” assombrava a inteligência desarmada e confundida: nada mais restava a fazer e os intelectuais calaram-se para não serem suprimidos. Em tôda parte descobriu-se meios eficientes para os obrigar a trocar em miúdo consigo mesmo as suas idéias ou as suas revoltas; a função da inteligência desaparecia terrivelmente, pois as grandes como as pequenas idéias só valem quando se estendem a um povo inteiro. Para evitar isso, justamente, o Estado-Polvo foi alastrando os seus tentáculos e aí aparece o momento mais crítico a supressão mesma do intelectual. Nada, pois, restava a fazer. Mas foi assim que a inteligência atravessou a ponte. Agora estamos entrando na outra fase, em que a inteligência angustiada volta-se sôbre si mesma para tomar consciência de sua missão e de sua fôrça e procura na sociedade a razão de ser de suas funções.

Naquele artigo de Echavarria vemos os intelectuais da Alemanha – como os de outros países – perdidos completamente numa geral confusão de idéias e de valores, subdivididos em grupos ou grupinhos, cada qual orientando sua conduta e a sua ação conforme uma “atitude pessoal”, eliminando-se assim a possibilidade de uma realização qualquer por parte da inteligência. Isso quando não faziam conventilhismo ou não eram tolhidos pela covardia. Depois, cremos que agora – aproveitamos o esquema que conhecemos de outro país – da própria opressão vieram as fôrças ativas do ressurgimento e da renovação. Já há, pois, muita coisa a fazer.

O panorama oferecido pela “depravação da inteligência”, que Medina tece sôbre a situação do intelectual alemão post-14, a propósito (ao comentar “Ideologia e Utopia”) poderia ser assim esboçado. A necessidade da participação do intelectual na vida social – como uma de suas grandes fôrças – também encontra o seu lugar. Para evitar, aliás, aquêle isolamento esclerosante do intelectual, afastado da realidade e conseqüentemente sem consciência de sua fôrça e função. Medina Echavarria, pensa que as sociedades do futuro devem “inserir a inteligência em seu funcionamento normal e cotidiano” (veja-se o prefácio).

É aqui que discordamos do ilustre sociólogo. A questão para os intelectuais não se põe dêste modo, passivamente, como se fôssem meninos mal comportados que o mestre-escola reintegra na classe. Infelizmente a questão é muito mais grave; e em última análise, foi essa atitude passiva que todos – ou quase todos – os intelectuais assumiram diante da “ordem” chamada nova em seu estado nascente, quando podia ser sufocada. E vimos, por uma experiência muito dolorosa para ser repetida, qual o seu resultado.

O intelectual não deve ser “inserido” na sociedade, mas deve tomar nela o lugar que lhe compete, ativamente, como os demais membros do grupo. A inteligência, se quiser sobreviver terá que tomar parte ativa na vida social. E um dos aspectos da vida social ativa será o de conseguir ela mesma o seu próprio lugar, porque fora disto não se compreende um funcionamento normal da inteligência.

* Neste texto foi mantida a grafia original

Fonte:  Folha da Manhã. São Paulo: 24.02.1944