A Escola e a Sala de Aula

Por Florestan Fernandes

Em vista da próxima elaboração da nova lei de diretrizes e bases de educação nacional, é fundamental que se revejam as práticas imperantes em nosso ensino, especialmente no primeiro e segundo graus. Começamos por importar idéias francesas e alemãs, no fim do século passado; tentamos depois, também, “reproduzir” o que nos pareceu ser o ensino primário norte-americano e o enciclopedismo iluminista de segundo grau francês. Em ambas imitações falhamos. As instituições importadas não podem ser redefinidas, em seu significado, estruturas e funções fora do seu contexto psicossocial e cultural. Empobrecemos as instituições, as práticas que elas engendram e o seu rendimento pedagógico. O meio brasileiro revelou-se muito árido, a mentalidade reinante demasiado tosca – autoritária ao extremo -, reduzindo o professor aos papéis mínimos de transmissor passivo de “saber” importado e os alunos àquilo que os filósofos e os educadores críticos chamaram, negando-a, a célebre “página em branco”. Em alguns estados e em certas cidades, conseguiu-se um padrão de qualidade sofrível, mas às custas de uma relação repressiva entre professores e alunos que deformava ambos. Afastava-se a sala de aula do núcleo de grande experiência pedagógica. Aproximava-se a escola mais das instituições punitivas e carcerárias, que do cerne elementar de uma pedagogia do aprender fazendo. No grupo escolar em que estudei, por três anos, antes do fim da década de 30, a vice-diretora ficou uma vez com a orelha de um aluno nas próprias mãos. Não previra que suas unhas compridas faziam um corte de navalha… Em outros lugares, nem essa violência repressiva de uma escolarização pobre, autoritária e fundada em uma hierarquia de idade e de classe devastadora, mas só o crescimento da ignorância e da brutalidade que privava as gerações ascendentes da aprendizagem sistemática.

Ocorreram mudanças. Mas foram poucas. O que esperar do ensino em uma sociedade na qual a imensa maioria era excluída da educação escolarizada, na qual a mãe de um aluno procura o diretor, como fez dona Maria Fernandes, para recomendar: “Senhor, faça dele um homem e castigue-o como se fosse o seu pai”? depois de mais de cinqüenta anos, as coisas se alteraram. Mas a “revolução na escola e pela escola” ficou nas utopias dos pioneiros da escola nova e dos pedagogos que os sucederam. A escola – e por meio dela a sala de aula – continuaram presas a uma concepção predatória da pessoa que é mandada. A burocratização criou ardis e abismos imprevisíveis e permanecemos com a carência de uma filosofia de educação democrática, que floresça de baixo para cima (da sala de aula para a escola e desta para a sociedade e para as terríveis “autoridades do ensino”), e de dentro para fora (da sala de  aula e da escola para a comunidade e para a sociedade civil como um todo).

O importante, hoje, não é o que a nova lei poderá fazer para acabar com os vestígios de uma pedagogia às avessas, pervertida. É o que ela poderá ser para gerar, a partir de nossos dias, uma educação escolarizada fincada na escola e nucleada na sala de aula. Não basta remover os “excessos” de centralização, que substituem a relação pedagógica pela relação de poder. É preciso construir uma escola auto-suficiente e autônoma, capaz de crescer por seus próprios dinamismos. Conferir à sala de aula a capacidade de operar como o experimentum crucis da prática escolar humanizada, de liberação do oprimido, de descolonização das mentes e corações dos professores e alunos, de integração de todos nas correntes críticas de vitalização da comunidade escolar e de transformação do meio social ambiente.

A nossa pedagogia ficou presa ao pseudolegalismo de uma educação subcapitalista. A lei deu continuidade à dominação férrea das elites dos senhores de escravos – mais tarde, dos fazendeiros burgueses, dos comerciantes dos grandes negócios de exportação… Ora, essa não é a função necessária da lei. A hegemonia pré-burguesa na escola passou pela instrumentalização dos bacharéis, pela burocratização que chegou até a incluir o presidente da República na nomeação de “reitores eleitos” (Safa!) e pela redução dos docentes à condição de servos do poder, de agentes da dominação de classe verdadeiramente cega dos de cima.

A lei, se a sociedade civil se civiliza e se democratiza, tem por fim concorrer para a extinção do servilismo, dos privilégios e do clientelismo bárbaro, que não reconhece nem respeita limites. Até o voto converteu-se, em muitos lugares, em mercadoria! O “dono” do poder compra o voto e com ele elabora a democracia à sua imagem.

Por isso, a sala de aula fica na raiz da revolução social democrática: ou ela forma o homem livre ou ficaremos entregues, de forma mistificadora, a um antigo regime que possui artes para readaptar-se continuamente às transformações da economia, da sociedade e da cultura. Dissociar a sala de aula de seu empobrecimento e deterioração brutais á a saída para gerar a escola de novo tipo que, por sua vez, desencadeará e aprofundará a renovação de mentalidade que carecem os de baixo e os de cima.

Deu-se muita importância ao tope, aos organismos do aparato do Estado (o ministério e as secretarias de educação; os conselhos federal e estaduais de educação etc.), ignorando-se que esse Estado se punha a serviço de causas estreitas, mais empenhado na “defesa da ordem” (e dos privilégios que ela atribuiu a ralas minorias), que com a educação. Devemos dar um giro de 360 graus e situarmos o foco vital onde ele deverá estar: na sala de aula, nas relações entre professores e alunos e no influxo que tal situação provocará sobre a transformação da sociedade para a escola (e vice-versa).

Fonte: Jornal de Brasília, de 23/03/1989; e reproduzido em “O desafio educacional”, Florestan Fernandes. São Paulo: Cortez e Editora Autores Associados, 1989, pp. 22-24.