10 Anos: Florestan Fernandes faz falta

Por Silvia Beatriz Adoue

No dia 10 de agosto cumpriram-se 10 anos sem Florestan Fernandes num momento que convoca os militantes de uma esquerda que o seu pensamento ajudou a formar à reflexão sobre os rumos da ação política numa perspectiva socialista.

No começo de 2005, o Movimento de Trabalhadores Rurais Sem Terra inaugurou a sua Escola Nacional dando a ela o nome do sociólogo militante. No dia 10 de agosto último, a Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP, que também ele ajudou a formar deu à sua nova biblioteca unificada o nome de Florestan Fernandes. A conjuntura atual parece solicitar a todos nós para retornarmos à leitura da sua obra.

Sociologia e socialismo
Um grande dilema para Florestan Fernandes, como ele mesmo formulara (1978, p.77) foi conciliar a sociologia enquanto prática acadêmica com o socialismo. Ou, de maneira ainda mais ampla, conciliar a produção teórica com a ação militante. O próprio Florestan explicava essa dificuldade como resultante das precárias condições de organização do movimento socialista no Brasil, aplicando assim o método histórico à reflexão sobre as possibilidades da sua ação enquanto intelectual.

É o grau de desenvolvimento dos movimentos sociais o que dá a medida em que o sociólogo crítico e militante poderá desenvolver os seus saberes, testar as teorias, contribuir na reflexão sobre a práxis do movimento e as suas possibilidades programáticas e políticas. É na sua relação com o quotidiano das lutas sociais que o sociólogo militante articula os saberes de uma sociologia descritiva com as tendências para as quais o dinamismo do movimento social aponta. Ao mesmo tempo, um movimento social bem organizado está em condições de reunir informações com maior objetividade e presteza do que qualquer instituição acadêmica ou órgão estatal. Junto ao movimento socialista, o intelectual militante potencia sua condição de aprendiz, investigador e também de educador. Porque é sobre a base das relações de confiança que no movimento socialista se estabelecem que os saberes produzidos podem ser socializados da maneira mais rápida e efetiva, traduzidas em iniciativas táticas e propostas programáticas.

Florestan Fernandes vislumbrou a riqueza que essa relação podia propiciar quando se incorporou à “Campanha de defesa da Escola Pública”. Durante essa campanha teve oportunidade de dimensionar o alcance da ação do sociólogo organicamente vinculado às lutas sociais. Essa convicção, portanto, não é apenas resultante das suas leituras, de especulações teóricas, ou mesmo de uma sã, desejável imaginação científica, mas de uma práxis que lhe antecipou possibilidades bem maiores do que a academia, por si só, oferecia.

Em mais de uma ocasião, Florestan disse que aspirara a ser um “intelectual orgânico”. E o foi, mesmo sem o partido que daria ao intelectual um referente de classe permanente. Em tais condições de fraqueza na organização independente dos deserdados, o mais difícil era manter a fidelidade às origens, porém, Florestan manteve-se fiel até no seu último gesto: o maior intelectual do país morreu como qualquer brasileiro pobre, num hospital público, se expondo aos riscos aos que a desídia para com a saúde do povo submete aos não remediados. Não foi um gesto distraído e nem temerário, mal que deploremos seu desenlace. Florestan assinou assim, com o próprio corpo, embaixo de uma obra científica e uma história pessoal de todo coerentes.

O temor manifestado por sua mãe, Maria, de, uma vez estudante, o filho “ficar com vergonha dela” (1980, p. 147) transformou-se num desafio. Uma razão visceral para, ao contrário de se desolidarizar de si mesmo, cultivar um “orgulho plebeu” que servisse de lastro ao desenraizamento inevitável. Orgulho este nutrido desde a infância pelo afeto da mãe formidável, nessa criança de olhos tristes, mas vivos, que forjaria uma vontade gigantesca de ser outro e, ao mesmo tempo, continuar sendo o mesmo.

O dilema maior, maior ainda do que conciliar sociologia com socialismo, e que envolve todos os demais desafios que enfrentou, foi o de se separar dos seus, dos hábitos quotidianos dos seus, para mergulhar numa prática que tem muito de solidão. (A prática intelectual é, em muitos momentos, uma prática solitária.) E, mesmo assim, encontrar os seus de outra maneira. Também através dessa prática, como intelectual socialista.

Mas, manter esse vínculo profundo, não na pantomima populista, não no histrionismo superficial e demagógico, não nos automatismos da fala ou dos gostos populares, mas no cerne da atividade intelectual, nos seus temas e objetivos de trabalho teórico, é o esforço mais difícil nas condições precárias do movimento socialista no Brasil. O mais difícil porque teve de enfrentar a dor da separação, do desenraizamento e não ceder à tentação “plebeísta” de permanecer junto aos seus, na condição subalterna.

“Ofício”
São esforços que supõem um tipo de preparação intelectual muito rigorosa e planejada. Tarefa que ele enfrentou com a atitude de um trabalhador dedicado: teve de aprender o “ofício”. Como o operário que escolhe e vai construindo as próprias ferramentas sobre a marcha, na medida em que as testa. Não porque é um improvisado, mas porque essas são as condições em que se lança à tarefa.

O projeto de se tornar um intelectual foi acalentado com o “retorno” à escola que deixara após a 3a série, aos 17 anos, quando resolveu fazer o curso de madureza, após uma infância marcada pelo trabalho para a sobrevivência da micro-família: ele e a sua mãe. Entre os seus “ofícios terrestres” contam-se o de engraxate e garçom. Todavia, esse retorno aos estudos não o fez abandonar o que ele chamava de “cultura do inculto” (1980, p. 144) na qual havia crescido e que o levava a enfrentar os obstáculos intelectuais com as armas da solidariedade. Compensava as suas defasagens e as dos seus colegas ensinando e aprendendo com os companheiros de curso.  (Depois, a sua atividade acadêmica estaria pautada pelo objetivo da construção de uma equipe à par e como parte integrante da sua produção individual.)

Depois do ingresso na universidade,encontraria obstáculos acrescidos pela prática dos professores estrangeiros (que não falavam Português, de obrigar os seus alunos a estudar diretamente os autores, às vezes na língua original, sem mediação de manuais mais gerais, que permitissem dimensionar a contribuição dos mesmos dentro da área de conhecimento à qual os autores pertenciam. Essa prática, se bem apontava para uma formação de maior qualidade, esbarrava com a formação dos alunos brasileiros em geral. No caso do jovem Florestan, o problema era ainda maior, considerando que saia de um curso de madureza e vinha de um ambiente social completamente alheio à academia. Sem o “capital cultural” necessário para se colocar à altura das exigências dos professores, o projeto de se tornar um cientista social só podia se sustentar na “fé” (sim, fé) no conhecimento e no seu “orgulho plebeu” que alimentavam sua vontade. A sua graduação corria paralela a um esforço compensatório de autodidatismo que funcionou na prática como um outro curso universitário.

Os seus estudos não impediram que mantivesse vínculos com o frágil movimento político socialista da época e se dedicasse a traduzir Marx. Isto pode aparecer um tanto desarticulado do seu trabalho na universidade, tanto pelos autores quanto pelos temas de investigação acadêmica aos quais dedicou sua primeira fase de produção, mas o seu projeto era de grande fôlego e exigia, em primeiro lugar, por um lado treinar o uso das ferramentas teóricas por ele recém apropriadas, testar o seu alcance e, junto com isso, ganhar o “direito”, o prestígio, o reconhecimento necessário junto aos seus pares e professores.

Em qual medida toda essa parafernália teórica poderia ser utilizada para melhor conhecer o Brasil? E, ao mesmo tempo, quais estudos originais permitiriam chamar a atenção da academia para o seu trabalho? As pesquisas sobre os tupinambás, sobre o folclore na cidade de São Paulo e sobre o lugar do negro na sociedade brasileira correspondem a esse momento.

Porém, como diz Otavio Ianni (in: AAVV, 1998), antecipam ou são indício de uma intenção que ainda não podia ser explicitada. Seja pelo estágio de desenvolvimento das Ciências Sociais no Brasil (pela fortuna de estudos e produção teórica por um lado, pela preparação dos seus quadros por outro), seja pela destreza e familiaridade com o ofício que o próprio Florestan havia atingido. Seu trabalho era a longo prazo. Mas, para além da oportunidade -Florestan chamava “oportunismo” (1978)- desses primeiros trabalhos, há neles algumas constantes que perdurariam em toda a sua obra:

1.      o foco temático nos vencidos, nos “humilhados e ofendidos”, nos “condenados da terra” é revelador da finalidade subjacente no projeto todo, presente inclusive nas suas obras mais generalistas e áridas: a emancipação social;

2.      a utilização do instrumental aprendido na análise de objetos brasileiros, testando-o rigorosamente, é menos submissão “estratégica” aos seus mestres e mais recurso realista do “artesão” da teoria para reconhecer objetivamente a utilidade de cada ferramenta. O que permite o abandono de uma, o uso restrito a determinados materiais de outras, o ajuste necessário das que a isso se prestarem.

Isto não é ecletismo ou pragmatismo, e sim compreensão das tarefas colocadas a cada momento da sua formação pessoal, que não era independente do campo das Ciências Sociais que então se desenvolvia, dos seus colegas, discípulos e colaboradores.

O cuidado com os seus livros que sua filha, a companheira e socióloga Heloísa Fernandes, observou e descreveu com tanta vivacidade (in: AAVV, 1998) quando a doação da biblioteca de F1lorestan Fernandes para a universidade de São Carlos,revela para mim seu escritório como o “quartinho das ferramentas” de um artesão de bom ofício.

O companheiro e cientista social Paulo Martinez, que o auxiliou nos cuidados da sua biblioteca, costumava se surpreender com a organização dos volumes numa seqüência que era toda própria. Assim como só o ferramenteiro sabe porque coloca aquela chave de fenda do lado dessas brocas numa ordem precisa adequada a uma maior economia de esforços. A ordem dos livros supunha uma organização interna que era a ordem da idéias de Florestan. Não a do roteiro do saber sistematizado imposto pela rotina da média dos cursos acadêmicos ou dos manuais de biblioteconomia. Mas a resultante de um trabalho crítico, original, sobre esse saber sistematizado.

O companheiro e sociólogo argentino Horacio González, que esteve exilado no Brasil e hoje é responsável pela Biblioteca Nacional da Argentina, lembrava de uma cena no escritório de Florestan. Discutia-se um tema e o mestre, antes das palavras acudirem aos seus lábios, fez um gesto com o braço, assinalando um setor lá no alto das estantes. O autor e as citações tinham uma localização física no quartinho, que remetia à memória de um trabalho intelectual realizado. As idéias, assim articuladas, prolongam o intelectual assim como a ferramenta prolonga a mão do carpinteiro. O gesto do braço de Florestan é metáfora viva desse fato.

O PT
O crescimento das lutas sociais no Brasil e o conseguinte surgimento do PT apresentaram-se como uma oportunidade, uma possibilidade para o exercício mais pleno da sua condição de sociólogo militante. Assim o atesta seu trabalho parlamentar e na Constituinte, mas também a sua participação em toda a vida do partido.

Guardo como um tesouro a lembrança dos seus diálogos com militantes populares, apresentando a todo momento seu ouvido atento, sua sagacidade interpretativa e um humor orgânico, nunca dispersivo, a serviço sempre da sua atividade político-pedagógica junto ao movimento.

Lutou dentro do PT, com toda a força que a sua saúde lhe permitiu, com toda a inteligência e as suas qualidades de polemista, pelo programa socialista e pela construção de um partido de características socialistas, revolucionário. Nada mais longe da sua avaliação do que imaginar que essas duas aspirações chegariam pelo curso natural, como uma fatalidade. Muito menos com uma frágil tradição de organização socialista independente.

Reiterava sua preocupação pela necessidade de manter vínculos entre o partido e as lutas sociais. Ultimamente, preocupava-se com as questões teóricas colocadas pela “revolução científico-tecnológica” e o processo mundial da luta de classes. Apontava para estas questões como o mestre consciente de não ter tempo para uma pesquisa que considera prioritária.

Deixou-nos uma vasta obra, graças à qual conhecemos melhor as características e possibilidades de transformação da sociedade brasileira. Essa obra é fundamental para os militantes socialistas.

Deu testemunho do intelectual que floresceu da plebe, sendo, entre todos os intelectuais, o primeiro, para negar o estigma que pesa sobre o povo brasileiro. Ao mesmo tempo, manteve-se fiel à sua classe até no último gesto. Com sua vida apontou assim para uma possibilidade de encontro para todos os deserdados e os intelectuais.

Bibliografia

FERNANDES, Florestan. A condição de Sociólogo. São Paulo: Hucitec, 1978.

_______. A sociologia no Brasil. Petrópolis: Vozes, 1980.

FERNANDES, Heloísa. “Amor aos livros –reminiscências de meu pai em sua biblioteca”. In: AAVV. Florestan ou o sentido das coisas. São Paulo: Boitempo, 1998.

IANNI, Otavio. “A sociologia do Brasil”. In: AAVV. Florestan ou o sentido das coisas. São Paulo: Boitempo, 1998.
fonte: Revista Espaço Acadêmico