Florestan Fernandes: a formação pela práxis

Por Robinson dos Santos

Doutorando em Filosofia na Universidade de Kassel – Alemanha. Bolsista do Serviço Alemão de Intercâmbio Acadêmico (DAAD)

O texto a seguir toma como base algumas informações sobre o “período de formação” dispostas em meu livro “Saber e Compromisso: Florestan Fernandes e a escola pública”, editado pela Universidade de Passo Fundo/RS.

Uma década se passou desde que Florestan Fernandes passou a viver entre nós de uma outra forma: em nossa memória. É valiosa e volumosa a produção acadêmica por ele deixada, produção comprometida não apenas com a compreensão profunda da realidade brasileira mas também com a sua transformação. Compromisso explícito em sua atuação tanto dentro quanto fora da universidade e que o levou até o Congresso Nacional para ocupar por dois mandatos o cargo de Deputado Federal pelo Partido dos Trabalhadores entre 1987 e 1994. Entretanto, não é meu propósito, neste pequeno ensaio, escrever sobre Florestan como político engajado e nem sobre o professor-pesquisador. Penso que são muitos os méritos dele nestas duas condições e muitas das suas idéias permanecem atuais. Gostaria sim de privilegiar para esta reflexão alguns aspectos que antecedem os já mencionados em sua trajetória e que entendo como decisivos tanto para sua opção política quanto acadêmica.

Existe em Florestan Fernandes algo que é pressuposto e que, simultaneamente, extrapola os manuais e as metodologias, algo do qual e com o qual muito pode ser ainda ensinado e aprendido. Refiro-me aqui à sua formação pré-acadêmica ou à educação por ele recebida e construída fora da universidade, isto é, no mundo da vida, por meio da práxis. Esta formação pela práxis se dá antes e durante o período de escolarização.

O próprio Florestan afirmava que aquilo que se deve entender por formação não pode ser reduzido ao aspecto acadêmico. Embora a formação deva compreender e, até mesmo é complementada com a academia, aquela não depende única e exclusivamente desta. Formação não é sinônimo de academia. As raízes da sua formação estão, portanto, fixadas num momento anterior, que foi marcado desde muito cedo pela necessidade de trabalhar para o sustento material de sua vida. E admitia mais tarde:  “Eu nunca teria sido o sociólogo em que me converti sem o meu passado e sem a socialização pré e extra escolar que recebi através das duras lições da vida” [2]. Deste modo, o título deste texto fica esclarecido.

Florestan Fernandes nasceu na cidade de São Paulo aos 22 de Julho de 1920. Com a perda de seu pai, sua família passou a contar com ele e sua mãe, que trabalhava como doméstica. A colaboração do filho para poder arcar com as despesas do lar foi um fator que precocemente ensinou muito ao menino. Contava ele com apenas seis anos de idade quando começou a trabalhar e, por conseqüência, a interagir na vida social. No seu currículo, portanto, estão também os trabalhos como  engraxate, auxiliar de marceneiro, carpinteiro e alfaiate. Foi a partir destas e de outras experiências, como conta ele que, pôde penetrar  no mundo da sociedade e sentir nas relações entre os adultos a voracidade do homem lobo do próprio homem. Mesmo sem conhecer as grandes teorias que explicitavam o que está por trás das relações sociais, o menino já iniciara a captar, intuitivamente, pelo fato de ser um partícipe ativo do mundo do trabalho. Apesar das dificuldades enfrentadas, ele encontrava alento e inspiração. “Eu não estava sozinho. Havia minha mãe. Porém, a soma de duas fraquezas não compõe uma força. Éramos varridos pela ‘tempestade da vida’ e o que nos salvou foi nosso orgulho selvagem…” [3].

Outro aspecto que merece nota neste aprendizado precoce de Florestan é o contato com a diversidade cultural e o aprendizado (pela prática) da geografia da cidade a ela relacionada. Por conta das mudanças de emprego de sua mãe, conheceu e morou em vários bairros de São Paulo. Morou, inclusive, por alguns períodos, na casa dos próprios empregadores de sua mãe. Isso despertou a atenção de Florestan para as diferenças sociais e étnicas. Tal socialização foi decisiva na sua vida, pois o convívio na diferença e com a diferença foi o alicerce sobre o qual ele construiu valores como o respeito, a solidariedade e a tolerância. “O caráter humano chegou-me por estas frestas, pelas quais descobri que o ‘grande homem’ não é o que se impõe aos outros de cima para baixo ou através da história; é o homem que estende a mão aos semelhantes e engole a própria amargura para compartilhar a sua condição humana com os outros…” [4].

No período de sua escolarização as dificuldades econômicas não foram poucas. Sua mãe trabalhava na casa de dona Hermínia Bresser de Lima quando Florestan nasceu. Ali Florestan viveu até os três anos de idade e ela (dona Hermínia) tornou-se sua madrinha. Após este período mudam-se para diversos locais na cidade de São Paulo. Anos depois, quando Florestan já tinha seis anos, voltou a morar na casa de sua madrinha. Enquanto morou ali, também estudou numa escola primária particular do Brás. Florestan admitia que este convívio com a família Bresser despertou nele muito a percepção das diferenças sociais, do padrão de vida que ele e sua mãe levavam em relação aos outros e percebeu o quanto era importante a instrução. Dizia ele: “Aquilo que poucos da plebe conseguiam ter, a idéia do que era a outra vida, a vida dos ricos, dos poderosos – eu era capaz de perceber através de experiências concretas. Isso foi importante porque me levou a valorizar a instrução, a querer ler e estudar, a procurar uma ponte para não me conformar com aquela situação que eu ficava” [5]. Certamente, a presença e o incentivo tanto de sua mãe quanto de sua madrinha foram fatores importantes para a construção de uma postura em que o conformismo não tinha lugar. Duas referências muito próximas de Florestan que, ao mesmo tempo, mostravam a ele duas condições sociais radicalmente diferentes.  Depois, voltando a morar com sua mãe, freqüentou o Grupo Escolar Maria José, da qual o diretor ficara seu amigo. Diz ele: “Lá fui munido com o mínimo de requisitos da vida na cidade; pois aprendi a ler, escrever e contar; e a escola não foi tão sofrível, já que adquiri os rudimentos para me tornar um autodidata exemplar” [6]. O senso de que muito daquilo que aprendia e aprenderia ainda dependia fundamentalmente dele mesmo acelerou a construção de sua personalidade autônoma. Aprender não é receber o conhecimento de modo passivo, pelo contrário é a apropriação ativa do conhecimento e depende, fundamentalmente, de uma decisão radical.

No terceiro ano, Florestan teve de interromper seus estudos para dedicar-se em tempo integral ao trabalho. Só com 17 anos é que retornaria aos bancos escolares. Entretanto, cabe ressaltar que Florestan levou consigo algumas lições que jamais abandonaria: “hábitos higiênicos e ideais de vida (…) um certo amor pela leitura e a vontade de ligar minha curiosidade aos livros que me caíssem ao alcance da mão” [7]. Ainda lembrava ele: “A minha vida ficou uma vida de autodidata, sempre com aquela ambição de aprender, de saber. Não porque eu quisesse fazer do estudo um trampolim para ir para outro mundo, mas porque eu via que aquilo era uma dimensão da vida, uma coisa necessária. Houve muitos canais pelos quais eu aprendi a definir a instrução, o livro, a leitura, a aprendizagem com valores” [8]. Ele queria realmente romper com a “castração cultural” e assim fez seu próprio caminho de autodidata. Esta experiência foi fundamental e continua inspirando ainda hoje estudantes, intelectuais e professores.

De emprego em emprego Florestan chegou ao Bar Bidu, na rua Líbero Badaró. Ao lado havia um sobrado no qual instalou-se o Ginásio Riachuelo. Ele conta que “os professores iam ao bar tomar seu lanche, depois das aulas. Eu sempre ficava atento aos fregueses com os quais podia aprender alguma coisa” [9].

Ali os caminhos do jovem Florestan se decidiram. Através de uma concessão de um professor ele conseguiu fazer os estudos sob pagamento reduzido. Com o auxílio de um dos fregueses, Manuel Lopes Teixeira (Maneco), Florestan conseguiu um outro emprego, na Novoterápica, com o qual seria possível custear seus estudos e manter a si e sua mãe. Relata ele que lá teve seus primeiros flertes com o socialismo: “Na Novoterápica conheci o Scalla, auxiliar do Maneco. A família dele era vinculada ao socialismo. E havia um italiano, que depois se casou com uma irmã dele, recém-chegada da Itália com idéias muito frescas sobre o movimento socialista europeu. Eu tinha lido muitos livros, mas sem sistematização. O contato com essa família serviu par tornar as coisas mais claras para mim. E comecei a freqüentar as redações de O Estado de São Paulo e, principalmente da Folha da Manhã, onde conheci o Hermínio Sacchetta, que era líder do movimento trotskista, ligado à IV Internacional. Assim, em 1943, me tornei militante do Partido Socialista Revolucionário (…)” [10]. No Ginásio, Florestan logo se mostrou determinado. Como trabalhavam durante o dia (ele e alguns colegas), o diretor deu a chave do prédio onde funcionava o ginásio. Assim permaneciam estudando lá após as aulas até uma ou duas horas da manhã. Aos poucos se formou um pequeno, mas fiel grupo de estudos. Lembra ele: “Passei, então, do pato ao ganso. As minhas leituras desordenadas adquiriram outra direção e, pela primeira vez, passei a ler os clássicos com afinco e a me concentrar sobre a literatura, especialmente a brasileira (…) O Riachuelo converteu-se em um segundo lar, ou melhor, em um ‘lar coletivo’. Tomamos conta do prédio nos sábados pela tarde e durante todo o dia nos domingos (…) Se não era uma comunidade escola, tínhamos uma escola-comunidade e, sob o seu impulso, a minha imaginação se abriu para além do imediato, do cotidiano e para os ‘grandes problemas’ da literatura, da filosofia e da época; autores de segunda ordem, mas conhecidos, entraram em nossas cogitações (…) Hoje um analista exigente sentiria pena do jovem que é condenado, pela sociedade em que vive, a percorrer caminhos tão tortuosos e íngremes para chegar à ‘Ilustração’. Para nós aquilo era puro mel e uma revolução” [11].

Aos poucos Florestan foi alargando seu horizonte cultural, o que, segundo ele, o converteu num intelectual e fez com que pensasse em fazer um curso superior e tornar-se um professor. Inicialmente, ele pensava em ser químico, mas os horários eram incompatíveis com seu trabalho. Após concluir o Curso de Madureza no Riachuelo, Florestan, graças a um recurso previsto no próprio curso, estava habilitado a se candidatar ao curso preparatório, da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras, como também tentar a seleção para o curso de Ciências Sociais e Políticas. Florestan, por cautela, se inscreveu nas duas seleções e comenta que “os candidatos às ciências sociais, por exemplo, faziam um exame escrito e um exame oral de sociologia (na argüição oral, diante dos dois Bastides e de outro professor do qual não me lembro, coube-me discutir um trecho de De la Division du Travail Social )” [12].

Nos exames de seleção para o curso preparatório, Florestan ficou em segundo lugar numa proporção de dez candidatos por vaga. Para cursar as ciências sociais havia trinta vagas, vinte e nove candidatos e só seis foram classificados. Florestan ficou em quinto. Ele optou por este curso porque era possível conciliar com seu novo trabalho e, principalmente, porque este se identificava com seus interesses intelectuais mais profundos. As aulas eram densas e, além disso, os professores eram estrangeiros, o que obrigou os alunos a aprender o francês, o italiano e o inglês para poder acompanhar as aulas.

Daí para frente Florestan foi conquistando seu espaço dentro e fora da universidade. “Sentia-me à vontade com os colegas e era um estudante promissor para alguns professores (…) O importante para mim, é que essa aceitação criava as perspectivas para realizar uma vocação intelectual insuspeitada. O caminho estava aberto para me tornar um professor e para chegar até onde o meu talento e a minha capacidade de trabalho pudessem levar-me” [13]. Estes o levaram a ser um dos grandes pensadores do Brasil nas Ciências Sociais. Sua formação nos permite ver bem aquilo que Marx descreve como veredas abruptas para chegar ao topo luminoso da ciência. Florestan passou a viver em nossa memória em 10 de agosto de 1995.

[2] FERNANDES, F. A sociologia no Brasil. Petrópolis: Vozes, 1977, p. 142.

[3] Idem, ibid., p. 143, grifos do autor.

[4] Idem, ibid., p. 145.

[5] FERNANDES, F. apud SOARES, Eliane Vera, Florestan Fernandes: o militante solitário. São Paulo: Cortez, 1997, p. 23.

[6] FERNANDES, F. A sociologia no Brasil. Petrópolis: Vozes, 1977,  p. 146.

[7] Idem, ibid., p. 146.

[8] FERNANDES, F. apud SOARES, Eliane Veras, Op. cit., p. 23.

[9] FERNANDES, F. A sociologia no Brasil. Petrópolis: Vozes, 1977,  p. 147.

[10] VENCESLAU, Paulo de Tarso. Florestan Fernandes. Disponível em Instituto Florestan. Acesso em abril de 2001.

[11] FERNANDES, F. A sociologia no Brasil. Petrópolis: Vozes, 1977, p. 149.

[12] Idem, ibid., p. 155. Os dois Bastides a quem Florestan faz menção são, pois, os professores Roger Bastide e Paul Arbousse Bastide.

[13] Idem, ibid., p. 162.

Fonte: Revista Espaço Acadêmico http://www.espacoacademico.com.br