Entre o fogo e a panela: movimentos sociais e burocratização

Por Passa Palavra

Publicado originalmente na página do jornal Passa Palavra em 22 de Agosto de 2010

Os movimentos sociais devem ser defendidos, e a melhor forma é impedir o avanço da burocratização. O grande desafio é a generalização das relações solidárias e coletivas estabelecidas diretamente na base dos movimentos sociais.

Por que este artigo?

Não se conseguirá superar o capitalismo sem a energia e a iniciativa dos trabalhadores, ansiosos em romper com suas atuais condições de vida e existência. Mobilizar os explorados tem sido até agora a motivação com que se formam organizações revolucionárias e sindicatos anticapitalistas. A suposição implicitamente aceita é de que a revolução é um ato de massas. No entanto, desde o início histórico do movimento anticapitalista dos trabalhadores, um inimigo trabalha para enfraquecer essa perspectiva, entorpecê-la e finalmente matá-la: a burocratização, a divisão do movimento entre uma base passiva e uma ativa elite dos “mais iguais que os demais”.

A crítica à burocratização é tão antiga quanto a própria burocratização, e tem sido necessário recomeçá-la a cada vez. Por que tal cultura está ainda tão enraizada, manifestando-se desde a social-democracia do século XIX até os pólos modernos da esquerda dita radical? Como age o vírus da burocratização, neutralizando o fervor revolucionário de velhos e novos militantes, criando o ceticismo na base do movimento e promovendo sua desmoralização? Como combater essa cultura, de modo que os movimentos sejam verdadeiros espaços de mobilização e formação, sem outros interesses em jogo além da emancipação social e destruição do Estado capitalista?

Não ignoramos, é claro, que inúmeros fatores externos tomam parte neste tabuleiro. Mas, aqui, optamos por nos ocupar com a porção da realidade que nos compete e que está ao nosso alcance: o desafio interno a toda luta social.

O desenvolvimento da burocratização

Prevenir-se contra a burocratização exige que o ativista revolucionário não perca de vista nunca que o objetivo é incentivar o processo da emancipação humana, da constituição consciente de novas relações sociais, solidárias, igualitárias e autônomas, de uma sociedade que mereça o nome de socialista. Uma transformação desse tamanho não é tarefa de partido, sindicato ou movimento social corporativo, mas de milhões de trabalhadores num processo de conscientização crescente. Movimentos, sindicatos e partidos são instrumentos surgidos na guerra de classes com o objetivo de favorecer o processo, dinamizá-lo e ampliar sua perspectiva. Mas até agora tem ocorrido que muitas vezes eles acabam por agir no sentido contrário.

Há uma ligação íntima entre a burocratização, os horizontes limitadamente corporativos e a conversão do aparelho organizativo no objetivo principal. O burocrata perde a visão da meta original, a emancipação humana, e passa a viver cada vez mais para defender seu aparelho organizativo, seu poder criado por cima da base do movimento, e teme que um processo revolucionário derrube esse seu poder corporativo — o que de fato aconteceria… — e por isso se torna um inimigo encarniçado da luta emancipatória. Por sua ação desmoralizante da luta dos trabalhadores, a burocracia é a quinta coluna do Estado capitalista nos movimentos dos trabalhadores. É o agente da classe exploradora, a face interna do inimigo de classe, beneficiando-se tanto quanto este da manutenção de uma sociedade de exploração.

É certo que às vezes os dirigentes tomam a iniciativa de se converter em burocratas, ou militantes entram já burocratizados para os movimentos. Mas não cremos que isso tenha acontecido na maior parte dos casos e, de qualquer modo, a grande questão é saber por que motivo os trabalhadores comuns, a base do movimento, permitiram a burocratização? Não se trata aqui de culpar os burocratas por terem se transformado em tal, mas de analisar o que ocorre nas lutas que torna as massas passivas e, portanto, converte os dirigentes em burocratas.

Dois inimigos de classe

As trabalhadoras e os trabalhadores, portanto, têm dois inimigos. O inimigo exterior é facilmente identificável. São os patrões, os donos das empresas e os seus administradores, os donos das terras e todos os representantes diretos destas três categorias no Estado. Mas existe ainda outro perigo, formado no interior da classe proletária, em organizações populares, nas direções de sindicatos, nas direções de partidos de esquerda, e que é mais difícil de identificar. Este perigo surge quando a base se torna passiva e, portanto, os dirigentes se tornam independentes da base, se burocratizam, se distanciam do convívio cotidiano dos trabalhadores que dizem representar e se transformam nos novos chefes das organizações que controlam. No final do processo eles converteram-se num segundo inimigo, não exterior como o outro, mas interno ao movimento dos trabalhadores.

Quando se trata de sindicatos, que gerem verbas muito avultadas, além de fundos de pensões, estes novos patrões passam a comandar uma verdadeira instituição capitalista, capaz de realizar investimentos colossais. E, deste modo, as contribuições dos trabalhadores deixaram de ser empregues para o seu objetivo original, que era o de organizar a resistência contra a exploração. Mas a disposição de grandes verbas não é indispensável para a conversão dos burocratas em novos patrões. Num processo convergente, as burocracias de muitos partidos políticos que se reivindicam de esquerda têm passado a ocupar-se com acordos eleitorais e com negociações com o aparelho de Estado, abandonando o objetivo inicial desses partidos, que era o de enfrentar o Estado capitalista e todas as suas ramificações. Esse é um fenômeno da atualidade da luta dos trabalhadores internacionalmente.

À medida que se tornam independentes da base, as burocracias sindicais e partidárias passam a conviver cotidianamente com patrões, administradores de empresa e políticos de direita. Fazem-no com o pretexto de estarem pressionando e negociando, mas a familiaridade assim estabelecida e a aquisição de novos comportamentos levam a crítica e o combate a moldar-se, adaptar-se e esfriar. Em pouco tempo, as burocracias sindicais e partidárias começam a dirigir as bases trabalhadoras com os mesmos métodos e a mesma mentalidade que são empregues pelos patrões tradicionais. Invocam o pretexto de usar mais tarde esse Estado — quando ele for hipoteticamente conquistado e se tudo der certo… — para controlar o capital. E assim se desenvolve, ainda que de forma embrionária, um capitalismo de Estado.

Ora, a História mostrou repetidamente que o capitalismo de Estado representa a mais grave derrota da classe trabalhadora perante o seu inimigo interno. O capitalismo de Estado é uma derrota tanto mais grave quanto ela é apresentada pela burocracia de esquerda como se fosse uma “grande vitória” e uma “demonstração de força” do movimento.

As derrotas dos trabalhadores

Ao longo da História vemos como até agora os trabalhadores têm sido massacrados nos grandes confrontos com o capitalismo. Quando as derrotas se devem ao inimigo exterior, por mais duras que sejam, elas provocam inicialmente um abalo terrível na capacidade organizativa dos trabalhadores, mas como a distinção entre as classes mantém-se clara, a luta recomeça mais ou menos rapidamente. As situações mais graves para a organização da classe e mais difíceis de serem assimiladas pela consciência — porque menos sangrentas, mais silenciosas e mais sofisticadas — devem-se às derrotas provocadas pela conversão dos burocratas em novos patrões, ou seja, pelo desenvolvimento de um inimigo interno. É quando se criam novos patrões a partir do interior do movimento operário que o ânimo de luta dos trabalhadores enfraquece e que a posição real dos burocratas na luta de classes se confunde aos olhos da maioria. Essas derrotas mistificam uma realidade já por si enganadora. Não se sabe mais quem é quem e com quem podemos contar para construir uma sociedade livre, das raízes aos frutos. Nestes casos as derrotas são muito profundas e duradouras.

Por que surgiram os Movimentos Sociais?

Durante muitas décadas, em todo o mundo, sindicatos revolucionários e partidos socialistas eram os instrumentos por excelência e praticamente únicos da luta anticapitalista. Mas desde o início, e a partir do seu próprio interior, receberam a crítica de serem portadores do vírus burocrático.

Muitos afirmam que não se trata da degeneração de sindicatos e de partidos. Eles já nasceram errados devido à sua forma de organização, que permite às direções limitarem a iniciativa das bases. Para estes críticos, o tipo de sociedade que vamos construir está pressuposto na forma como nos organizamos para lutar. E os partidos e sindicatos, com a sua estrutura hierárquica e autoritária, seriam propícios à formação de burocracias e opostos à emancipação.

Outros recordam que houve numerosas tentativas, e algumas com êxito, de usar partidos e sindicatos como instrumentos efetivos de intensa mobilização. Mas o balanço histórico, ainda que sem um veredicto final, tem contabilizado mais fracassos do que sucessos na tentativa dessas organizações tornarem-se instrumentos insubstituíveis da luta anticapitalista.

Assim, os fracassos sucessivos dos sindicatos e dos partidos de esquerda enquanto instrumentos da luta anticapitalista levaram à constituição dos movimentos sociais. Na verdade, a relação entre partidos e movimentos sociais no Brasil passou por várias fases e é muito complexa. Os movimentos sociais urbanos da década de 1980, que lutavam por saúde, transporte e moradia, contribuíram ativamente para a formação do PT, em negação ao modelo clássico de partido internamente autoritário. Mas esta componente ativa não conseguiu evitar a burocratização da forma partidária, e os movimentos sociais tiveram de renascer, para ultrapassar os limites do partido.

A América Latina e outras regiões periféricas desempenharam e desempenham um papel fundamental nesta inovação, embora mesmo na Europa e nos Estados Unidos tenham surgido formas de organização comparáveis aos movimentos sociais. Atualmente, a constituição dos movimentos sociais tem a ver com o fato de demandas cruciais do proletariado rural e urbano por terra, trabalho, teto e demais direitos sociais não encontrarem espaço ou prioridade nas pautas corporativas ou politicistas de sindicatos e partidos de esquerda, ainda que se insista muito na forma utilitária de separação entre os chamados “instrumentos sociais” — que seriam os movimentos sociais e sindicatos — subordinados ao “instrumento político” — o partido político de turno. Porém, mais que delegação de lutas a dirigentes, nos movimentos sociais suas conquistas devem-se à ação direta dos próprios trabalhadores e não resultam de negociações entre delegados, supostamente representantes das bases. Já não se trata de encarregar direções sindicais da obtenção de uns tantos por cento de aumento salarial, perdidos depois com a inflação. Nem se trata de agrupar os trabalhadores em partidos formados em torno de plataformas doutrinárias formuladas por meia dúzia de iluminados, que levam ao autoritarismo dos únicos que possuem a chave da mítica clareza ideológica. Os movimentos sociais surgiram para unir os trabalhadores em torno de reivindicações práticas, de conquistas efetivas — incluindo a dimensão imaterial — e não simplesmente salariais ou corporativas.

O risco da burocratização dos Movimentos Sociais

Mas as instituições mudam mais depressa do que as palavras e a designação “movimentos sociais” passou por vezes a ocultar uma realidade bem diferente.

Há movimentos sociais que não são outra coisa senão partidos políticos, cuja orientação já não obedece a decisões tomadas pela base e é inteiramente determinada pela direção de um partido, subordinada hierarquicamente à burocracia dos sindicatos ou a qualquer outra estrutura externa que se eleve em instância superior.

E há movimentos sociais que, embora não dependam de um partido em particular, estão adotando no seu interior a estrutura autoritária dos partidos. Quando começam a reservar para um certo número de dirigentes, sempre os mesmos, os canais de negociação com o Estado, esses dirigentes têm como capital o controle das ações dos militantes, e os movimentos acabam por reproduzir a lógica estatal, através do autoritarismo centralizador representado pelo domínio de uns poucos sobre a maioria. Ao longo do tempo, esta consolidação de estruturas verticais e a constante negociação com o Estado, inclusive para a gestão de recursos, acaba por requerer um quadro de funcionários técnicos especializados, que, com a falta de democracia interna e a ausência de decisão das bases, passam a constituir um aparato burocrático cada vez mais poderoso. As bases já não se reúnem em assembléias para discutir e decidir; são arrebanhadas para ouvir as instruções dos dirigentes. Esses dirigentes, em vez de serem quadros que favorecem o desenvolvimento das lutas, convertem-se em donos destas lutas. Pretendem evitar as relações de solidariedade direta entre as bases dos movimentos, fazendo com que as relações sejam estabelecidas apenas entre “quadros dirigentes”.

O que leva a esta transformação? Num movimento, tanto pela terra como por teto, transporte ou por qualquer outro objetivo, a vida das pessoas tem de ser diferente desde o início, elas têm de se organizar de uma maneira que rompa com a sociedade dominante; em todas as dimensões de sua vida tem de haver mais autonomia e mais coletividade. Ou seja, as formas de organização coletiva têm desde o início de ser distintas das que vigoram no capitalismo. Se isso não ocorre ou se essa distinção vai se enfraquecendo, então a base do movimento afasta-se dos processos de decisão.

Vai se consolidando, assim, um novo espírito burocrático, que impregna as novas gerações de lutadores. Militantes valorosos e cheios de dinamismo vão-se submetendo e se subordinando a este espírito, pois acabam tendo como horizonte esse tipo de liderança. Quem desconhece isto e não teria mil exemplos para relatar?

Um dos critérios para avaliar se pode ou não formar-se uma classe de novos chefes no interior de um movimento social consiste em saber em que medida as direções são controladas pela base, em que medida a base consegue determinar às direções as suas necessidades e o seu dinamismo. O outro critério consiste em averiguar se as direções se esforçam por promover a autonomia da base e por incentivar as decisões coletivas e as relações de solidariedade na base; ou se, ao contrário, procuram a todo custo reforçar a sua autoridade e deixar a base sem voz e sem um campo de atuação direto.

Trata-se de saber, em cada caso, se um movimento social é um instrumento à disposição da luta dos trabalhadores ou se ele se baseia numa lógica que instrumentaliza os trabalhadores e os seus anseios para os fins específicos de uma elite dirigente. Neste caso a iniciativa das bases é reduzida a uma aparência, destinada à perpetuação da força interna, e a uma imagem, destinada à propaganda externa. O objetivo deixa de ser a construção de relações sociais novas, solidárias, diferentes das relações capitalistas, e passa a ser formulado em termos apenas quantitativos: número de pessoas, número de ônibus, número de aparições na imprensa e listas de cadastros. Nos movimentos sociais em que isto ocorre, os trabalhadores ficam reduzidos a cifras, como são numa fazenda, numa fábrica, num canteiro de obras ou numa carteira de investimentos, e os burocratas usam essas cifras na mesa de negociações.

Algumas práticas nocivas no interior de Movimentos Sociais: cadastros e listas de presença

Uma das práticas danosas que vem ganhando espaço nos movimentos sociais brasileiros é a de listas de presença, passadas em diversas atividades, sejam assembléias, reuniões políticas ou atos públicos considerados importantes pela direção. Ao invés de servirem como instrumento para manter o contato e a comunicação entre companheiros, estas listas estabelecem uma classificação entre os militantes, e aqueles que tiverem mais presenças e mais pontos têm acesso supostamente garantido às promessas do movimento: casas, bolsas em Faculdades, cursos de formação, loteamentos. Há ainda outra modalidade mais estruturada de pontuação, consolidada em cadernos e cadastros de militantes, que têm seus pontos marcados por cada atividade que realizam, como, por exemplo, participar em campanhas eleitorais para um determinado candidato. Isso quando não são também meio de controle e monitoramento para pura prestação de contas do movimento junto ao Estado, em razão de convênios e parcerias afins estabelecidas com ele.

Assim, para se conseguir mobilizar as pessoas, recorre-se ao mesmo padrão que o da empresa capitalista ou das instituições disciplinares estatais. Ainda que se convença o militante de que é possível conseguir mudanças e que isto depende do esforço e do comprometimento pessoal, no caso de ele não ter tempo ou condições físicas e psíquicas, ou mesmo de não querer se engajar em determinada atividade, existe uma lista de espera que forma um “exército de reserva de militância”, tal como no capitalismo há um “exército de reserva de desempregados”. Trata-se de uma forma de gestão e de controle que, ao invés de fortalecer os processos de formação e emancipação, os esvazia, substituindo-os pela intimidação e pela coação. O fato é que tais números e cifras tornam-se, na prática, o “capital político” que o corpo dirigente tem a oferecer às demais burocracias, sejam elas diretamente entranhadas no Estado, estejam elas fora dele (no âmbito da própria “esquerda”).

Outras práticas nocivas: problemas de financiamento

O tipo de relacionamento que cúpulas de movimentos sociais, órgãos estatais, ONGs e fundações privadas mantêm entre si, no que se refere ao modelo de financiamento que vem sendo crescentemente adotado por estas novas organizações de classe, constitui outro dado muito preocupante.

A chamada onda neoliberal, que liquidou paulatinamente aquelas poucas instituições tradicionais que, bem ou mal, amparavam setores sociais mais pauperizados, fez surgir, aos montes, uma nova modalidade de gestão dos conflitos: o financiamento de projetos sociais obtidos a partir de editais. A análise deste circuito econômico, mantenedor de grande parte dos movimentos sociais, evidencia que a tendência à burocratização, aqui criticada, não acontece em decorrência de eventual fragilidade de caráter, ou desvio ideológico, de que nossas direções venham a padecer. Longe disso! O problema é ainda mais profundo, pois estamos diante de um mecanismo estrutural bastante sutil, por meio do qual entidades que surgem enquanto iniciativas contestatórias podem converter-se em organismos de contenção das demandas sociais.

Por um lado, até que o capitalismo acabe, é compreensível que a criação de condições concretas para se travar as lutas exija o emprego de certa quantidade de recursos, e que, à primeira vista, obter a concessão para gerir generosas quantias apareça sempre como uma tática a ser considerada. Contudo, inquietam-nos as situações em que os movimentos sociais ficam inteiramente dependentes desta forma de financiamento, utilizando-as sem qualquer estratégia mais consistente, e sobretudo relegando para segundo plano a invenção de formas autônomas de se manter. Aliás, antes de mais nada, conviria perguntar: por qual motivo governos, ONGs ou mesmo empresas privadas estariam dispostos a financiar a atividade de movimentos que se afirmam anticapitalistas?

O centro da questão consiste em demarcar com clareza em que medida a dependência financeira não estaria comprometendo a independência política. Afinal, é de se esperar que para serem contemplados pelo projeto que pleiteiam, os movimentos tenham de se adequar às formas e conteúdos impostos pelos órgãos financiadores. Além disso, muitos movimentos acabam reféns desta lógica, voltando sua militância quase que exclusivamente para a obtenção de mais recursos, deixando de lado o verdadeiro combate ao capital.

Eventualmente acomodados a este sistema de financiamento, os movimentos sociais vão-se deixando ser moldados e, assim, cercados por instâncias externas à sua organização. Neste caso, tal como ocorreu com os sindicatos durante a vigência do modelo corporativista, são os órgãos financiadores, estatais ou privados, que acabam por imprimir o ritmo e a qualidade das lutas, através do poder que detêm sobre o fluxo e a injeção, direta ou indireta, dos recursos.

O diagnóstico tende a se mostrar igualmente grave quanto mais se desce na pirâmide organizacional que caracteriza este tipo de relação, e se adentra as formas pelas quais as receitas são geridas e distribuídas internamente. Antes de mais nada, lembremos que são raríssimas as situações em que o conjunto do movimento, sobretudo as suas bases, tem oportunidade de opinar quanto à finalidade dos recursos; esta decisão, normalmente, é de competência quase que exclusiva dos departamentos financeiros. Já não é novidade que uma significante parcela dos gastos fica destinada à manutenção do quadro administrativo da organização. Porém, tem-se tornado comum que também os quadros políticos acarretem despesas fixas aos movimentos, constituindo uma verdadeira e pesada folha de pagamentos; o que, no linguajar dos movimentos sociais, tem sido chamado de “liberação do militante”.

Mais uma prática nociva: a “liberação” de militantes

O “militante liberado” é aquele membro da organização que, além de ter cobertas as despesas relativas especificamente à atividade que lhe é atribuída, tem no movimento a sua principal fonte de renda, ou seja, salário, serviços e outras facilitações em espécie. Apesar de preservar, na maioria das vezes, as mesmas convicções originais que o levaram à ação política, o dado objetivo é que esse militante revolucionário, como num passe de mágica, converte-se em funcionário da organização a que pertence, com direito a todos os predicados que esta condição lhe impõe, visto que, até por uma questão de sobrevivência, ele passa a atuar segundo critérios de eficiência e produtividade.

Incentiva-se assim um clima policialesco, baseado na medição quantitativa do desempenho, que leva ao aprofundamento das relações de concorrência entre os militantes. Quando isto ocorre, o companheiro de luta é visto também como um rival, seja para se favorecer com as conquistas do movimento, seja para ocupar postos dentro da estrutura verticalizada da organização. E mesmo para aqueles “militantes liberados” que acabam não correndo atrás desta produtividade, por acomodamento ou “cacife político” [peso ou prestígio político] dentro das organizações, o resultado para os movimentos não é menos prejudicial. De uma forma ou de outra, vão despontando deste modo personalidades autoritárias perante a base e subservientes perante a direção. O carreirismo, a competição desenfreada e as táticas autoritárias para reprodução do poder interno são consequências imediatas desta situação.

Resultado funesto: o esgotamento das assembléias e dos espaços formativos

À medida que se acumulam e se desenvolvem aqueles vícios de organização, as bases são desmobilizadas. As formas de organização coletiva da base do movimento vão-se descaracterizando e perdendo o entusiasmo.

Assim, a base cada vez menos se reúne de maneira livre e não hierarquizada em verdadeiras assembléias, para discutir e decidir sobre a maneira de lutar e reconstruir as suas vidas. Ainda que em teoria as decisões sejam tomadas a partir de assembléias, estas geralmente passam a servir apenas para legitimar uma linha previamente decidida pelas direções ou pelas tendências majoritárias, em reuniões de cúpulas de delegados e representantes, isto quando as assembléias não são apenas outro nome para expor os informes da direção, não tendo os militantes de base, sequer, direito à palavra.

Qualquer semelhança com a lógica e retórica eleitoral não é mera coincidência. E quando se aproximam as eleições, muitos movimentos sociais, apesar de se dizerem independentes dos partidos, mostram-se vinculados a certos políticos, a ponto de mudarem o discurso para as necessidades da campanha. Não é raro que isto provoque um distanciamento e mesmo uma divisão interna na base dos movimentos. As consequências desta atuação são ainda mais graves porque subestimam a inteligência das pessoas, que sabem muito bem que aquela contida ou “retomada do trabalho e da luta”, a cada dois anos, sempre nas vésperas de grandes eleições, não passa de uma pura encenação, em detrimento dos interesses reais dos trabalhadores, tidos por trouxas.

Aquilo que outrora sucedeu aos núcleos de base dos partidos políticos de esquerda no Brasil, convertidos em simples comitês eleitorais, ameaça agora ocorrer também nos espaços internos dos movimentos sociais, apesar de estes terem nascido da crítica histórica à burocratização dos partidos e dos sindicatos. Ao invés de serem as primeiras experiências de um novo ciclo, os movimentos sociais correm o sério risco de se tornarem as últimas experiências do velho ciclo.

Mas os Movimentos Sociais não estão condenados!

Será que, tal como antes, as bases irão se restringir a simples correias de transmissão, obedientes a decisões tomadas de forma alheia à sua dinâmica? Não sejamos tão pessimistas!

O grande desafio interno à classe trabalhadora atualmente é a generalização e a consolidação das relações solidárias e coletivas estabelecidas diretamente na base dos movimentos. Há cozinhas comuns? Há creches comuns? Há outros espaços formativos horizontais? Como estão organizados? Trabalhador que é afastado deste processo vai tender a afastar-se e a delegar. Isto não são detalhes, são o próprio motor do movimento.

Na imediata sequência deste desafio interno vem outro: a superação das formas de controle exercidas pela hierarquia burocrática, que aniquilam as relações diretas de solidariedade nas bases dos movimentos. Se as relações forem determinadas apenas pelos quadros dirigentes, se as decisões passarem unilateralmente dos dirigentes para os demais espaços e forem transpostas para os canais de negociação, isto significa o triunfo do sistema autoritário do Estado capitalista que, teoricamente, se pretendia criticar e combater. E que se precisaria criticar e combater de forma qualificada, talvez como nunca antes.

Para evitarmos que isto aconteça, além do combate evidente contra o inimigo exterior da classe trabalhadora, contra os donos das empresas e das terras e os seus representantes explícitos dentro do Estado, é urgente prosseguir uma crítica — e uma autocrítica — atenta ao inimigo interior às nossas organizações, a todas as burocracias em gestação, aos candidatos a novos chefes.

Ora, a maior parte dos movimentos sociais continua a constituir um campo onde a luta contra a burocratização pode ser travada com condições de êxito. Parece-nos que esse campo não deve ser abandonado. Pela sua dinâmica interna e pela sua capacidade de superar os limites do corporativismo, lutando por bandeiras mais amplas que unificam diversos setores da classe trabalhadora, os movimentos sociais podem prosseguir um novo ciclo marcado pelo fortalecimento da luta anticapitalista. Os movimentos sociais devem ser defendidos, vale a pena defendê-los e a melhor forma de o fazer é impedir o avanço da burocratização.

Para afastar o confronto com as bases, os candidatos a novos burocratas e chefes recorrem geralmente ao argumento de que estaríamos fornecendo armas e munições aos inimigos exteriores. Argumentam que a crítica às burocracias sindicais teria como efeito a “divisão interna” e o fortalecimento dos proprietários e dos administradores das empresas. Que a crítica às burocracias dos partidos e de vários movimentos sociais teria como resultado reforçar os capitalistas e o seu governo. E pretendem que tais críticas deveriam confinar-se a certas instâncias internas das organizações, o que significa que os dirigentes só poderiam ser criticados pelos demais dirigentes, num círculo vicioso. As vozes críticas internas vêem-se convertidas nos supostos “verdadeiros inimigos”, enquanto as burocracias em gestação ganham o tempo necessário para se desenvolver e enraizar-se. Aliás, são estas burocracias que se preocupam acima de tudo em manter o seu poder internamente — gastando a maior parte de seu tempo com isto —, buscando eliminar qualquer voz dissonante que ouse questionar as suas posturas e mesmo dificultando, o quanto for possível, a entrada de outros companheiros e companheiras que poderiam somar-se à luta, por medo de perder seus privilégios e posições de comando.

Compreende-se que os candidatos a novos chefes usem aqueles argumentos, mas não nos deixemos iludir, porque a nossa omissão ou inércia é que seria mortal para os objetivos da emancipação. Lembremos de que as derrotas mais graves da história dos trabalhadores têm sido provocadas justamente pelos novos patrões formados no interior dos partidos e dos sindicatos, sobretudo quando eles conseguem, usando em seu benefício próprio a força da classe trabalhadora, ter acesso a espaços de poder. Ora, o Estado oferece-lhes tais espaços e estimula a sua ocupação por eles, até porque sabe que estes candidatos a novos patrões almejam simplesmente inserir-se nesses espaços, sem os derrubar e transformá-los radicalmente. A História é repleta de exemplos neste sentido. Há alguém que em sã consciência duvide disto ou seja ingênuo ao ponto de menosprezar este verdadeiro risco? Deixaremos os movimentos sociais seguirem pelo mesmo caminho?

Da nossa parte, pensamos que as vozes críticas surgidas no interior dos movimentos devem ser incentivadas e ampliadas, para aprimorar o combate anticapitalista. As condições de vida neste início de século exigem ainda mais que os trabalhadores repensem e recriem formas autônomas e emancipatórias de organização, capazes de enfrentar o novo cotidiano brutal vivido pela maioria da população. Se fosse verdade que as vozes críticas acabassem por fortalecer os inimigos externos e ocorrer que as bases permitam que as práticas burocráticas prevaleçam dentro dos movimentos, então estaríamos condenados a deixar o terreno livre para o inimigo interior se consolidar e crescer. Ou seja, sob o pretexto falso de obtermos vitórias a curto prazo, estaríamos preparando a nossa derrota certa a longo prazo.

Como combater a burocratização?

A Comuna de Paris — a primeira vez que a classe trabalhadora tomou o poder, por dois meses, na capital francesa em 1871 — lembra os santos ou os Evangelhos, aquilo com que as Igrejas e todos os crentes dizem que estão de acordo, mas que ninguém pratica. Do mesmo modo, não há partido, nem grupo, nem movimento revolucionário que não proclame a sua admiração pela Comuna de Paris e a sua fidelidade aos princípios organizativos formulados pela Comuna. Só que a admiração e a fidelidade, na esmagadora maioria dos casos, ficam apenas nas palavras.

E que princípios eram esses? Aplicados aos dias de hoje, seriam:

* Se existe um movimento social, é porque há ali uma “base de massas” formada por inúmeras pessoas cheias de anseios e aptidões para contribuir pela transformação social. As circunstâncias da luta nem sempre permitem as assembléias gerais, fazendo-se necessária muitas vezes a delegação de poder. No entanto, quem delega deve controlar: esse princípio deve ser a cláusula inviolável na constituição de todo movimento, aceito, garantido e praticado por todos. A aplicação dessa norma, com as consequências da substituição de coordenações, direções e comitês mal avaliados — mas nunca excluídos, cabendo sempre novas oportunidades aos militantes — deve ser encarada como natural.

* As atividades de direção jamais podem ser vistas como especialização de funções. Toda a base deve ser estimulada a assumir responsabilidades orgânicas, de preferência rotativas, que enseje uma massa crítica de capacidade dirigente.

* As atividades de direção inevitavelmente tendem a afastar o dirigente do cotidiano vivenciado pela base. Um burocrata consumado já despreza essa realidade e esse convívio, seu pesadelo é um dia voltar a viver e lutar com seus antigos semelhantes. Antes que isso ocorra, os dirigentes, enquanto exercerem tais funções, devem sempre reabastecer sua índole no convívio com as contradições sentidas na prática por seus representados.

Fonte: Jornal Passa Palavra. Disponível em: http://passapalavra.info/?p=27717. Acesso em 10 dez. 2010.

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