Memorial dos Direitos Humanos (MDH)

UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINA

CENTRO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS

DEPARTAMENTO DE SOCIOLOGIA E CIÊNCIA POLÍTICA

MEMORIAL DOS DIREITOS HUMANOS

Objetivo Geral

O Memorial dos Direitos Humanos tem como objetivo ser um centro de referência teórico-sociológico no tratamento das informações e documentos relacionados principalmente ao período do regime ditatorial militar-civil de 1964-1985. Consideram-se entre outras as conexões sociológicas e históricas com outros períodos passados e presentes.

Sob a perspectiva das diferentes abordagens das Ciências Sociais, seu objeto é delimitado tomando como centro das atenções os acontecimentos delineados nos campos político, sócio-cultural, trabalhista, educacional e estudantil.

A memória viva e material a ser resgatada, organizada e disponibilizada, possibilitará a realização deste objetivo geral também como uma iniciativa – institucionalmente constituída – voltada à informação e à formação.

Objetivos específicos

1. Construir um acervo de documentos escritos, áudio-visuais e eletrônicos produzidos no e sobre o período em referência. Sua constituição englobará:

MEMÓRIA VIVA: entrevistas e depoimentos;

MEMÓRIA MATERIAL: livros, publicações periódicas e não periódicas, filmes e documentários, fotografias, cartazes, reproduções de produção artística e literária;

2. Promover eventos: projeção de filmes, exposições e seminários;

3. Constituir o material acima como acervo do estado de Santa Catarina, bem como de outros estados e regiões complementarmente, quando oportunidades e/ou convênios possibilitarem;

4. Servir de apoio às atividades de ensino e pesquisa na graduação e pós-graduação universitárias;

5. Servir de apoio às atividades de pesquisa e ensino do 2º grau;

6. Constituir um Portal-Memorial Brasileiro de Direitos Humanos com uma biblioteca digital, possibilitando a disponibilidade do material para livre consulta;

7. Constituir convênios com entidades, organizações e instituições universitárias para manutenção do memorial e guarda do acervo;

8. Edição do Boletim do Memorial Brasileiro dos Direitos Humanos com informes sobre os acervos, formas de consulta e notícias relacionadas ao seu referencial temático;

9. Articular a Rede Memorial Sul dos Direitos Humanos.

Estrutura

1) Local: UFSC – com sede própria a ser projetada e construída, incluindo:

-local para o acervo e consultas;

-sala de conferências, projeções e/ou vídeos;

-sala de exposições;

-sala de apoio técnico, administrativa e de reuniões.

2) Equipamentos:

-para preservação do acervo, computadores em rede, telefones, vídeo, filmadora, gravador, etc.

3) Equipe permanente:

-funcionários técnico-administrativos, bolsistas e professores.

4) Participantes:

-representantes de entidades e instituições no seu colegiado acadêmico e colaboradores voluntários.

Inicialmente o Memorial dos Direitos Humanos se utilizará das instalações do LASTRO e de outros laboratórios ou núcleos que vierem a integrar o projeto.

Justificativa

No final do ano 2004, enquanto proliferavam no noticiário local e internacional fatos acontecidos no Chile, Argentina e Uruguai referentes às punições de alguns responsáveis pelos crimes contra os Direitos Humanos durante os regimes ditatoriais desses países, e ao mesmo tempo os esforços institucionais de reconciliação nacional, no Brasil despontava a discussão sobre o direito à história, ou seja, sobre a guarda, preservação e abertura dos documentos referentes ao período 1964-1985, bem como a localização possível dos corpos dos desaparecidos políticos.

A abertura ou não dos arquivos da ditadura, assim como sua organização e preservação colocaram-se como atitudes de governo e da sociedade como um direito à história e aos direitos humanos, como condição civilizatória de um país que se propõe democrático. O compromisso formal com a democracia dependeria do menor ou maior compromisso com a memória. Se anistiar as pessoas condenadas no período da ditadura instalada no Brasil com o golpe de 1964 significou também a amnésia social e política em nome da pacificação, possivelmente isso não contribuirá com os elementos culturais e institucionais para a consolidação do Estado de Direito. Mesmo porque, na história, “os pactos da impunidade são sempre provisórios” (BERGOGLIO, 2005). O esclarecimento é a condição que requer formas de dizer “nunca mais” à barbárie.

Neste aspecto, a constituição de um Memorial, voltado à documentação e à atividade de preservação dos direitos políticos e sociais como direitos humanos, tomando como base o Brasil dos anos 60 até a contemporaneidade, expressa um compromisso contra o autoritarismo, como o melhor dos caminhos para que, com a informação e a consequente formação, possam as gerações do presente e do futuro elaborarem e viverem seus projetos.

A oportunidade institucional desse Memorial proposto é fundamentada na Lei 8.159/91, a lei dos arquivos e a Medida Provisória nº 228, que altera os prazos do decreto nº 4.553, de 2002.

As controvérsias quanto às limitações do aparato legal sobre os “arquivos da ditadura” foram também movimentadas com as notícias amplamente divulgadas no início do ano de 2005 sobre a queima clandestina de documentos do período em foco.

Enfim, parece preponderar, pela repercussão dos últimos acontecimentos, que não mais pertence ao executivo, mas à Justiça e à história as controvérsias, e à sociedade a posse efetiva dos documentos.

Uma dupla relação se apresenta então: se por um lado ainda é inseguro o juízo político e normativo sobre a ditadura e a violação do Estado de Direito, por outro lado as instituições não se prepararam para o esclarecimento, quer dizer, para a guarda dos documentos e testemunhos que possam subsidiar a informação e a formação com o compromisso realmente consolidado com a democracia em todos os seus ângulos reais e não apenas na formalidade do argumento.

A Lei da Anistia (promulgada no dia 29 de agosto de 1979) foi um marco do início da redemocratização do país (MEZAROBBA, 2004). Mas, apesar do avanço democrático no período, o julgamento dos torturadores e o paradeiro dos desaparecidos políticos durante a ditadura ainda permanecem como dívida do país com sua história.

A dívida, nesta dimensão ética e de responsabilidade moral, resulta da resistência como dignidade e solidariedade. São as palavras presentes na maioria dos depoimentos dos ex-presos políticos (FREIRE; ALMADA; PONCE, 1997), como sendo valores formados nos momentos mais desafiadores, nas prisões, como uma formação ética a ser proposta para um país que ainda não se debruçou, sobre esses valores, para sua própria história recente. São valores que queriam preservar e agora destacar, possivelmente orientados por uma visão prospectiva, de como acontecimentos de uma história recente podem estar relacionados a fatos das relações sociais contemporâneas.

Qual a importância deste argumento ético? É possível que o esquecimento torne oculta a face autoritária, cultive algum tipo de terror. Quando isto ocorre, uma condição se coloca com o esquecimento, o deliberado falseamento dos fatos (FREIRE; ALMADA; PONCE, 1997, p.46). Portanto, o esquecimento não é um “déficit de atenção”(THEODORO, 2004), é um ato de natureza política e ideológica.

Diferentemente do tratamento dado ao Estado Novo da Era Vargas, a recente ditadura brasileira não foi estudada nas dimensões mais profundas das suas conseqüências. Por exemplo, é ausente uma avaliação do seu enraizamento como cultura do medo e conformismo social. Assim como a ótica do dia-a-dia dos seus prisioneiros como uma memória viva é demasiadamente incompleta em Santa Catarina e nos outros estados do país, onde um público curioso por conhecer aquele período político reclama pela memória de seus protagonistas – é um assunto de inconcluso debate, pois relacionado à consolidação da democracia.

Os sofrimentos, as angústias, assim como as esperanças e alegrias, se para alguns são objetos de psicologização, para os protagonistas da resistência à ditadura são dimensões da vida sem as quais não se forma uma cultura civilizatória.

É como se a violência do silêncio imposto pelas armas fosse menor comparado à violência do silêncio causado pela intencional ignorância dos fatos (FREIRE; ALMADA; PONCE, 1997). Essa é a ignorância que sustenta a recorrência ao autoritarismo, tornado cotidiano, quando o direito torna-se a exceção.

O golpe militar de 64 foi também um ato de violência contra as instituições. O Congresso Nacional foi fechado em 1966, 1968 e 1977, sindicatos, escolas e entidades estudantis foram invadidas e fechadas, jornais foram censurados, prenderam, torturaram e mataram. Como início da violência política nos anos 60, o golpe de Estado contou com a participação de militares, empresários, políticos e apoio dos Estados Unidos e da Igreja.

Na síntese de Caio Navarro de Toledo: “Abril de 1964 representou, de um lado, um golpe contra as reformas sociais que eram defendidas por amplos setores da sociedade brasileira e, de outro, representou um golpe contra a incipiente democracia política que nascera em 1945 com a derrubada da ditadura do Estado Novo.” (TOLEDO, 2004, p.67).

É pouco tempo para a avaliação sócio-política daquele período, daí a necessidade de estudantes e professores, cidadãos e cidadãs, terem um centro de referência, que estimule e possibilite, com um memorial pertinente, os estudos em diversas áreas de pesquisa acadêmica e não acadêmica.

Neste plano se coloca a discussão, que a sociedade brasileira faz timidamente, das questões e formulações do pensamento social dos anos 60, que envolviam várias dimensões como objetos de diferentes projetos políticos. Muitas questões (agrária, urbana, fiscal, educacional e saúde) não foram superadas, apesar dos vários governos civis sucedâneos do governo ditatorial.

Será que o autoritarismo de Estado aprofundou raízes mais fundas que o conhecido?

Combinando o autoritarismo institucional (atos institucionais) com a censura e as ações policiais (abertas e clandestinas), os protagonistas da ditadura, com a cumplicidade de parcelas de setores influentes, e através dos mecanismos de intimidação da população, parecem ter plantado como cultura política o medo, requisito para o silêncio e o conformismo (SOUSA, 1994).

Nessa mesma linha de investigação, Maria Helena Moreira Alves indaga: “Quais são as sequelas que ficaram em nossa sociedade deste longo período de ditadura e repressão?” (ALVES, 2005, p.13).

A iniciativa memorialista não é caricatamente “abrir pacotes” e “desenterrar defuntos”. É perceber a continuidade da história e compreender como a fragmentação das relações sociais torna as pessoas mais vulneráveis aos diversos tipos de violência. Não é a fragmentação da ruptura de um processo histórico em curso, mas a fragmentação das relações humanas.

O Memorial cumpre não favorecer o esquecimento, não como simplesmente possibilitar que se possa lembrar; objetiva contribuir para que se possa ultrapassar determinado lugar da história (THEODORO, 2004).

Posto assim, o Memorial não é o instituto da vingança nem do perdão, mas o espaço relacional para que as gerações digam estar presentes no avanço da conquista de direitos e no fortalecimento da democracia.

Na linha de desenvolvimento do “Projeto Brasil: Nunca Mais”, iniciado em 1979, o Memorial Brasileiro dos Direitos Humanos institui-se como continuidade do amadurecimento e consolidação das iniciativas que visam materializar o objetivo de que “nunca mais se repitam as violências, as ignomínias, as injustiças, as perseguições praticadas no Brasil de um passado recente” (Brasil: Nunca Mais, 1985, p.13). E objetiva também contribuir com a pesquisa, o estudo e a formação de gerações atuais e futuras em bases éticas, políticas e socialmente anti-autoritárias e emancipatórias.

Isso será possível, entre outros fatores, com a contribuição da universidade, ao conjugar diferentes núcleos de pesquisa e de formação para expor os elementos e as condições de sustentação e de superação de um sistema autoritário.

Referências Bibliográficas citadas

BERGOGLIO, Jorge. Opinion: Bergoglio, la impunidad y la memoria. LA NACIÓN LINE, 2004. http://www.lanacion.com.ar/01/04/15/o04.htm

MEZAROBBA, Glenda. 25 anos de anistia: um processo inconcluso. IN: Revista Novos Estudos Cebrap: São Paulo, nº 70, novembro/2004, p.19-32.

FREIRE, Alídio; ALMADA, Izaís; PONCE, J. A. de Granville. Tiradentes: um presídio da ditadura – memórias de presos políticos. São Paulo: Editora Scipione Cultural, 1997.

THEODORO, Janice. A memória dos anos 60 e (porque não) dos 70. IN: Revista Tempo Brasileiro: Rio de Janeiro, nº 158, julho-setembro/2004, p.167-196.

SOUSA, Fernando Ponte de. Histórias inacabadas: um ensaio de psicologia política. Maringá: EDUEM, 1994.

ARNS, Paulo Evaristo. Brasil : nunca mais. 11. ed. Petropolis: Vozes, 1985.

TOLEDO, Caio Navarro de. 1964: O golpe contra as reformas e a democracia. IN: O golpe militar e a ditadura – 40 anos depois (1964-2004).