Organização política na concepção dos comunistas de conselhos

Por José Carlos Mendonça e Taiguara Belo de Oliveira

Mestrandos em Sociologia Política pela Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC.
Comunicação apresentada no 5º Colóquio Internacional Marx e Engels (Unicamp/2007) e publicada na Revista Enfrentamento – n. 03, jul./dez. 2007, p. 11-16.

Resumo:

Referenciado na obra de Rosa Luxemburg, Anton Pannekoek e Karl Korsch, este trabalho apresenta os elementos teóricos centrais da concepção de organização política nos comunistas de conselhos. Para estes, a superação do capitalismo, a ser protagonizada pelo proletariado – como classe que não pode ser segmentada ou substituída pelo partido – deve originar-se nas formas organizativas de novo tipo, geradas pela sua auto-atividade consciente. Dessa ótica, tal concepção permite tecer rigorosas críticas sobre o significado da existência de instituições que, ainda hoje designadas por conselhos, em nada mantém o conteúdo emancipatório que outrora possuira.

Introdução

Já não é novidade para ninguém que os organismos de luta da esquerda tradicional, seja ela reformista ou revolucionária, atravessam uma crise, talvez terminal, de representatividade frente à base “representada”. A credibilidade em partidos políticos e sindicatos vem persistentemente apresentando uma trajetória descendente, em função da comprovada incapacidade de ambos em evitar a burocratização e conseqüente degeneração das lutas emancipatórias, mesmo que no passado tenham cumprido um papel de relevo para conquistas sociais e políticas dos trabalhadores.
Para além desta questão atual, se nos preocupamos com a substituição do capitalismo por uma sociedade sem classes – onde as relações entre os indivíduos na produção sejam igualitárias e sem as polaridades perenes vigentes (trabalho intelectual/manual; cidade/campo; dirigentes/dirigidos) – é forçoso reconhecer que a efetivação da máxima marxiana “a libertação dos trabalhadores terá de ser obra dos próprios trabalhadores” implica o desenvolvimento de ações autônomas de massas que exigem formas de organização distintas das consagradas pelo bolchevismo.
Para os bolcheviques, orientados pela concepção de Lênin, importava organizar partidariamente os indivíduos politicamente ativos do proletariado, ou seja, sua vanguarda, agrupando-os no partido juntamente com intelectuais. A este organismo ficavam atribuídas as tarefas de conquista e exercício do poder de Estado, enquanto à classe reservava-se o papel passivo circunscrito ao âmbito econômico. Por esta acepção a idéia de práxis política fica resignada à ação de dirigentes, a quem a classe deveria seguir e subordinar-se.
Daí a importância – dentro ainda de uma perspectiva marxista de ultrapassagem do capitalismo – em se retomar a reflexão de alguns pensadores revolucionários que, ao enfocarem o tema da organização por conselhos, restituem à classe em luta atributos de existência e capacidade de atividade política próprias, furtadas pela interpretação da esquerda oficial abrangida pela tradição leninista[1].
O modelo dos conselhos fora algo, reiteradas vezes, vivenciado pelos trabalhadores nos processo revolucionários. Desde a Comuna de Paris, em 1871, se sucederam diversas experiências práticas, dentre as quais destacam-se: Rússia em 1905 e 1917, Alemanha, Hungria e Itália em 1918-20, China em 1966-67, França em 1968, Itália em 1968, Portugal em 1974-75 e Polônia em 1980-81. Estas formas institucionais constituíram exemplos concretos de poder autônomo dos trabalhadores em luta e aspirou tanto à conquista do poder quanto à direção da atividade produtiva após – e na hipótese – da conquista. Segundo Gombin (1972: 106), a teoria dos conselhos operários “propõe um conteúdo para o socialismo (a vida econômica, social e política gerida pela organização de conselhos) […] propõe um modelo de organização revolucionária do proletariado.”
Em todas as experiências em que surgira, os conselhos apresentaram um núcleo constante de características: participação direta dos trabalhadores em assembléias onde decidem eles próprios os rumos e as táticas a serem empregadas, não remuneração para cargos delegados – cujos mandatos podem ser revogados a qualquer tempo – além da constante rotatividade das funções. Nestas ocasiões, as relações hierárquicas típicas das estruturas políticas e econômicas capitalistas eram reconvertidas em relações horizontais de solidariedade.
Não se trata, claro está, de transpor automaticamente para a atualidade as experiências dos conflitos do século XX, mas observar princípios essenciais que permeiam as teses conselhistas: a) o sujeito histórico insubstituível da superação do capitalismo é o proletariado e b) a passagem para o comunismo não pode ser resumida à tomada do poder de Estado pelo partido político pretensamente representante da classe, visto que tal passagem somente pode ser erigida por obra da auto-atividade dos trabalhadores que, por meio da sua gestão direta, redimensionam o conjunto das relações sociais.
Este debate sobre a organização proletária figura como um dos maiores dilemas da esquerda: por um lado, a necessidade de criação de um instrumento de luta que viabilize alcançar um determinado propósito (libertar os trabalhadores da exploração capitalista) e, por outro, a fetichização da forma criada, ou seja, o processo pelo qual a organização torna-se a própria finalidade. Tal ocorre quando a maquina burocrática do partido – funcionários, militantes e ideólogos profissionais – passa a perseguir sua auto-sustentação no poder. Os “Revolucionários do período inicial tornam-se funcionários.”
Incidindo neste ponto, os comunistas de conselhos salientam os aspectos contra-revolucionários de instituições tradicionais como partidos e sindicatos. Na base da concepção conselhista está a aposta de que no desenvolvimento ulterior das lutas, embora surgidas espontaneamente por motivações econômicas, os conselhos possam se consolidar e passar a questionar a divisão do trabalho, a hierarquia das fábricas, o direcionamento da produção, etc. Isto significaria a superação necessária da dicotomia entre espontaneísmo e organização e, principalmente, entre luta econômica e luta política.

A forma-partido na concepção conselhista

Para uma apreensão geral do lugar que a forma-partido ocupa na teoria do comunismo de conselhos pode-se partir da leitura dos escritos de Anton Pannekoek e Karl Korsch, dois dos principais expoentes dessa corrente. Antes porém será necessário deter-se naquela que pode ser considerada a precursora do conselhismo: Rosa Luxemburg. Autora e ativista revolucionária que talvez seja quem mais concentrou em sua obra a tensão resultante das relações entre organização/espontaneidade, vanguarda/massas, classe/partido e, desse modo, tenha rasgado horizontes para a consolidação de tal vertente.
Já em 1904, polemizando com Lênin nas Questões de Organização da Social Democracia Russa, Rosa Luxemburg (1991) postula: “Organização, esclarecimento e luta não são aqui momentos separados […] são apenas diferentes aspectos do mesmo processo.” Em seu entendimento, a tendência ultracentralista de Lênin admitia o princípio da intervenção direta, disciplinada e decisiva das autoridades centrais em todos os âmbitos e manifestações locais do partido. Lênin estaria a subestimar a capacidade de organização autônoma e direta das massas e, com isso, cindia a atividade conspirativa de uma minoria da vida cotidiana das massas. A concepção burocrática de partido leninista desliga as pessoas encarregadas de funções políticas especiais do solo real da luta de classes elementar e reduz os membros ativos da organização a simples executores das vontades de “uma dúzia de espíritos superiores”.
Na apreciação da revolucionária polonesa, a vivacidade da organização partidária deve se localizar no seio da ação espontânea das massas e não no produto teórico da cabeça genial de um dirigente. Dessa maneira, o partido cumpriria tarefas de manutenção, fomento e avaliação constantes das formas históricas sempre renovadas das lutas empreendidas pelas massas, e não prescreveria receitas prontas e detalhadas dos rumos a serem trilhados. Concentrar poderes na direção partidária seria fortalecer, perigosamente, o conservadorismo inerente à direção de qualquer partido e obstar o livre desenvolvimento das atividades políticas da classe. Coordenação e unificação serão os princípios da organização partidária, caso contrário “Os meios viram-se contra os fins”. Portanto, era indispensável que o partido abrisse caminhos para que o movimento operário encetasse suas experiências por si mesmo e maturasse a sua disposição revolucionária a partir de seus próprios erros, “infinitamente mais fecundos e valiosos que a infalibilidade do melhor ‘comitê central.’ ” (Luxemburg, 1991: 58-59).
Em A Revolução Russa, escrita no ano de 1918, a autora, ao mesmo tempo em que reconhece a perspicácia e a coragem revolucionárias do partido bolchevique por sua capacidade de mobilizar as massas e levá-las às últimas conseqüências, expõe suas desavenças em relação às medidas políticas que haveriam abafado e impedido o alargamento dos espaços públicos. Da perspectiva luxemburguista, a dissolução da Assembléia Constituinte, o cerceamento da liberdade de imprensa, do direito de associação e reunião e de outras liberdades democráticas obstruiu qualquer tipo de fonte de experiência política e teria interrompido a revolução ascendente.
Os desdobramentos burocráticos da revolução de 1917 teriam evidenciado a insuficiência dos pressupostos de Lênin e Trotsky, para quem a revolução socialista consistiria na mera execução de um programa revolucionário pré-concebido, a ser aplicado pelo partido energicamente. Para ela, programas políticos guardariam apenas as diretrizes balizadoras, sem a capacidade de indicar quais as melhores medidas práticas a serem tomadas em todos os domínios da revolução social. O socialismo concebido por Rosa é um produto histórico nascido na própria “escola da experiência”, impossível de ser outorgado ou decretado.
Em novembro de 1918, pouco antes de ser assassinada, ao analisar os últimos acontecimentos da conjuntura alemã, suas proposições sobre os conselhos de operários e soldados como força política revolucionária ganham toda força, expressas no programa que redigiu intitulado O que quer a Liga Spartakus? (1991) Ali, a autora radicaliza sua defesa do socialismo enquanto obra das massas populares no momento em que evoluem da luta cotidiana e deixam de ser massa governada e passam, por si mesmas, a edificarem sua vida política e econômica, numa “autodeterminação consciente e livre”.
Para tanto, caberia à classe substituir todos os órgãos herdados da dominação burguesa – parlamentos, administrações municipais – pelos seus próprios órgãos de classe, os conselhos de operários e soldados. Rosa, dessa maneira, demonstra não crer no caráter transformador que parlamentos e assembléias nacionais pretensamente teriam de instituir por decretos o fim da sociedade capitalista. Antes, é necessário confiar à classe trabalhadora todos os postos e funções, ou seja, a totalidade do poder político.
No entanto, no tocante ao caráter do partido, Rosa tomará posição pelo partido de massas como se depreende desta passagem:

Aliás, é completamente errado pensar ser do interesse do movimento operário repelir o afluxo em massa dos elementos dispersos em conseqüência da progressiva dissolução da sociedade burguesa. A proposição segundo a qual a socialdemocracia representa os interesses de classe do proletariado e, por conseguinte, o conjunto dos interesses progressistas da sociedade e de todas as vítimas oprimidas pela ordem social burguesa não é para ser meramente interpretada no sentido de que no programa da socialdemocracia todos esses interesses estão idealmente sintetizados. Esta proposição torna-se verdadeira através do processo de desenvolvimento histórico, em virtude do qual a socialdemocracia, também como partido político, gradualmente se torna o abrigo dos elementos mais variados e mais insatisfeitos da sociedade, transformando-se realmente no partido do povo contra uma ínfima minoria da burguesia dominante. (LUXEMBURG, 1991, p. 56.)

Esta defesa de um partido policlassista, no programa e em sua composição, impede que Rosa possa encaixar-se plenamente na corrente conselhista e a afasta de um campo comum de entendimentos, por exemplo, com aquele que foi talvez o teórico mais rigoroso do comunismo de conselhos: Anton Pannekoek (1873-1960).
Holandês de nascimento e tendo militado até a primeira guerra na socialdemocracia alemã, Pannekoek expressou um núcleo de concepções acerca da relação partido/classe que a reorientava por completo. O partido, enquanto organização erigida em torno de idéias políticas específicas, deixa de ser direção para transformar-se em instrumento da ação da classe, agrupamento em torno de interesses comuns. Seu pensamento sobre a forma-partido era derivado das três teses intelectuais que conformavam a base das suas formulações: a concepção materialista da história que coloca a luta de classes como o agente da evolução social; a luta de classes travada de modo consciente, e a ação das massas revolucionarizadas em luta pela gestão dos meios de produção.
A forma-partido entendida como organização-processo está nos antípodas da organização de tipo bolchevique ou socialdemocrata, institucionalizada de modo perene e dotada de complexos mecanismos e órgãos de direção e transmissão. Se à classe como um todo compete fazer a revolução ao partido caberia então

[…] encontrar e indicar pelo estudo e discussão o melhor caminho de ação para a classe operária. No entanto, esta educação não deve ser dirigida somente aos membros do grupo ou partido mas sim à massa da classe operária. É ela que deve decidir nas suas reuniões de fábrica e nos Conselhos, qual a melhor maneira de agir. Mas para que decidam da melhor maneira possível devem ser esclarecidos por opiniões bem ponderadas e vindas do maior número de lados possível. […] ir ao encontro dos operários, por exemplo, por meio de panfletos populares que esclareçam os trabalhadores explicando as principais mudanças da sociedade, e a necessidade de uma direção dos operários por eles mesmos, em todas as suas ações como em todo o trabalho produtivo futuro (PANNEKOEK, 2007a).

A par destas considerações, nota-se que a concepção de organização política em Pannekoek diverge radicalmente da de Lênin, a qual supõe a necessidade constante da classe operária ser dirigida por uma minoria. Para o primeiro, os partidos podem até assumir uma função importante numa fase preliminar. Contudo, à medida que os conflitos e as lutas se intensificam, devem ser ultrapassados pelos objetivos avançados do proletariado. Manter a classe num nível inferior significaria, na prática, mantê-la sob controle e repressão.
O bolchevismo, por sua vez, institui um modelo de partido organizado por princípios de eficácia, nos moldes da divisão de trabalho capitalista, isto é, acentuando o distanciamento entre concepção e execução das tarefas revolucionárias. Em outras palavras, quando o Partido Comunista – PC apregoa sua ascensão ao poder e sua centralidade no processo revolucionário, relega à classe o papel secundário e passivo de segui-lo e apóia-lo. Residiria aqui a base para o surgimento de uma nova classe dominante – burocratas ou gestores – emergir e perpetuar os fundamentos das relações capitalistas. “O capitalismo de mercado” – diz-nos Pannekoek – “se transforma em capitalismo de Estado” (PANNEKOEK, 2007c).
Outra marca característica da forma-partido para o comunista de conselhos é o anti-parlamentarismo em oposição de principio à tática dos PCs de ingressar nos parlamentos – diante da impossibilidade imediata de ultrapassagem do capitalismo – para pelo menos transformá-los em órgãos de oposição. De acordo com esta tática, o parlamento se transforma em arena privilegiada de disputas entre classes antagônicas e promover pequenas reformas e ampliar direitos tornam-se as finalidades práticas do partido. Por conseqüência, em nome da necessidade de formar maioria parlamentar, os PCs estão obrigados à realização de alianças com outros partidos da ordem, o que os leva, invariavelmente, ao abandono dos interesses reais dos trabalhadores e à perseguição de interesses próprios.
Do estudo das eclosões revolucionárias na Rússia de 1905 e 1917 e das que, em menor escala, ocorreram na Alemanha em 1918, é que o conselhista holandês extrai os princípios organizativos da ação revolucionaria autônoma do proletariado, os soviets ou “Conselhos Operários”. Estes devem servir – e isso é importante frizar – tanto à tomada do poder político e social pelos trabalhadores, quanto à direção do trabalho produtivo depois da conquista. Impossíveis de serem previamente definidas em detalhes, estas organizações – produzidas historicamente no seio dos conflitos de classe mais importantes sob diferentes denominações – figuram como o modelo mais apropriado à classe em luta, a verdadeira alavanca da revolução. Pannekoek, em largos traços, refere-se a uma organização onde cada qual participa ativamente da ação e da direção, uma instituição que ao não reservar lugar para dirigentes profissionais impossibilita a autonomização dos comitês/comissões, eleitas para funções executivas pelos conselhos, em relação ao conjunto da classe.
Na sua perspectiva, os conselhos operários não devem ser gerados por iniciativas de grupos revolucionários, mas sim pelas manifestações espontâneas motivadas pela solidariedade e paixão entre os trabalhadores. “A revolução proletária” – alerta Pannekoek – “exige também que o conjunto da classe operária saia da sua situação de dependência e ignorância para ascender à independência e construir um mundo novo” (PANNEKOEK, 2007b). Somente por esta maneira é possível empreender uma organização sem enredar-se nas armadilhas das regras burocráticas. Isto significa que uma organização autônoma e revolucionária só pode resultar da árdua aprendizagem obtida na escola dos processos de luta.
Em grandes processos revolucionários, a nova classe ascendente carece criar suas próprias formas institucionais. As quais, originariamente surgidas como organismos ilegais dentro da ordem capitalista, robustecem sua estrutura e funções, na medida em que a revolução cresce, até substituírem por completo os antigos órgãos políticos estatais e os de administração da produção. A organização fundamentada nos conselhos representa apenas os trabalhadores e não confere direito de voto ao cidadão em geral, como no parlamentarismo. Assim entendida, é a autêntica realização da ditadura do proletariado, como teorizada por Marx e Engels.
Por fim, coube ao alemão Karl Korsch (1886-1961) fornecer a base filosófica à concepção organizativa conselhista pela negação da concepção leninista. Segundo ele, a “ortodoxia” – que engloba a socialdemocracia de Kautsky e o bolchevismo de Lênin – constituiria a legitimação ideológica da paralisação e fracassos do movimento operário. Assim, empenha-se numa formulação teórica que privilegie a ação espontânea e autônoma da classe enquanto relativiza o papel da vanguarda.
Em primeiro lugar, subverte o conceito de vanguarda no plano da teoria. Pois entende que ao se supor a consciência portadora da necessidade histórica enquanto algo independente e exterior à classe, resultante de uma teoria exógena (alheia à práxis por apenas contemplar empiricamente o mundo objetivo) e acabada (que se pretende portadora da chave dos destinos universais), o bolchevismo faz do marxismo uma pura ideologia, de onde emergiria inevitavelmente um poder burocrático.
Em segundo lugar, no plano da prática política critica a linha adotada por Lênin, e atribui a ele a pretensão de atingir os objetivos de uma revolução proletária valendo-se de formas políticas (sejam partidárias, de poder ou estatais) que anteriormente foram eficientes para atingir objetivos de uma revolução burguesa. Ou seja, enquadra esta doutrina nos termos de uma teoria e prática jacobinas. [2]

(in) Conclusões: forma-partido e conselhos hoje

João Bernardo (1991)  fornece-nos um quadro teórico válido para entendermos a maneira pela qual estas formas institucionais, originariamente criadas num sentido de luta contestatória, tornam-se mecanismos da própria continuidade da dominação capitalista. Por esta via de compreensão, a sucessão de formas variadas de existência do capitalismo processa-se não apenas por modalidades repressivas, mas, sobretudo, por ciclos de absorção dos conflitos. Este processo de assimilação, tênue e sofisticado, não se resume à cooptação pessoal de antigos integrantes e dirigentes “traidores” da causa proletária. Em sua sagacidade, tal processo é capaz de integrar na estrutura capitalista as próprias instituições de lutas autônomas que historicamente o proletariado em luta cria. Resultam, neste sentido, do próprio processo de degeneração dos órgãos de deliberação livremente gerados. Isto quer dizer que as organizações continuam a existir formal e nominalmente, porém, com o conteúdo das práticas sociais plenamente desfiguradas.
Parece-nos que é justamente isto que ocorre hoje com algumas instituições, cujos nomes vemos encher as bocas dos paladinos da “democracia participativa”. Se no âmbito administrativo do Estado elas aparecem sob insígnias do orçamento participativo, conselhos gestores, conselhos municipais, estaduais ou nacionais de políticas setoriais, etc.; no âmbito empresarial encontramo-las nos Círculos de Controle de Qualidade, na legalização das comissões de fábrica, na co-gestão, etc; sem falar nas ONGs, nos cooperativismos e nas economias solidárias. Os partidos e os sindicatos por sua vez, assimilados de longa data, cumprem uma dupla função neste quadro de integração capitalista: agentes apologéticos destas instituições e, simultaneamente, peças componentes de seu funcionamento. Representam hoje, para a história das lutas derrotadas, não a tragédia e sim a farsa.
Do ponto de vista da emancipação dos trabalhadores, tal qual a máxima de Marx exposta no início do texto, os critérios a serem observados devem ser: Quais os princípios organizacionais que regem estas novas instituições? Temos aí – ainda que tendencialmente – relações sociais igualitárias, horizontais e coletivistas capazes de subverterem o caráter hierárquico das estruturas capitalistas? Com efeito, qualquer resposta que identifique na concretude das instituições citadas alguma similitude, para além das nomenclaturas, faria Rosa, Pannekoek e Korsch revirarem-se em seus túmulos.

[1] Incluem-se aqui as vertentes stalinistas, trotskistas, maoístas, etc.
[2] Para uma noção das diversas dimensões da contribuição teórica de Korsch, ver SUBIRATS, Eduardo et. al. Karl Korsch o el nacimiento de una nueva época. Barcelona: Anagrama, 1973. Além de sua obra magna KORSCH, Karl. Marxismo e filosofia. Porto: Afrontamento, 1977.

Referências:

BERNARDO, João. Economia dos Conflitos Sociais. São Paulo: Cortez, 1991.
GOMBIN, Richard. As origens do esquerdismo. Lisboa: Dom Quixote, 1972.
LUXEMBURG, Rosa. Questões de organização da social democracia russa. In: A revolução russa; introdução, tradução e notas de rodapé: Isabel Maria Loureiro.  Petrópolis: Vozes, 1991.
LUXEMBURG, Rosa. O que quer a Liga Spartakus?. In: A revolução russa; introdução, tradução e notas de rodapé: Isabel Maria Loureiro.  Petrópolis: Vozes, 1991.
TRAGTENBERG, Maurício. Rosa Luxemburg e a crítica dos fenômenos burocráticos. In: LOUREIRO, Isabel Maria & VIGEVANI, Tullo (orgs.). Rosa Luxemburgo: a recusa da alienação. São Paulo: FUNDUNESP, 1991, pp. 37-47.
PANNEKOEK, Anton. Carta à Socialisme ou Barbarie. Disponível em http://dominiopublico.mec.gov.br/download/texto/ma000049.pdf. Acesso em 28 maio 2007(a).
PANNEKOEK, Anton. Os conselhos operários. Disponível em http://www.terravista.pt/ilhadomel/1188/os_conselhos_operarios.htm. Acesso em 20 maio 2007(b).
PANNEKOEK, Anton. Partido e Classe. Disponível em http://www.geocities.com/autonomiabvr/partido.html?20074. Acesso em 04 fevereiro 2007(c).

Fonte: Revista Enfrentamento.
Disponível em: http://enfrentamento.sementeira.net/enfrentamento03.pdf. Acesso em: 10 jun 2010.

[1] Para uma noção das diversas dimensões da contribuição teórica de Korsch, ver SUBIRATS, Eduardo et. al. Karl Korsch o el nacimiento de una nueva época. Barcelona: Anagrama, 1973. Além de sua obra magna KORSCH, Karl. Marxismo e filosofia. Porto: Afrontamento, 1977.

[1] BERNARDO, João. Economia dos Conflitos Sociais. São Paulo: Cortez, 1991.