Tramas da exploração: a migração boliviana em São Paulo

Por Bruno Miranda e Taiguara Oliveira

Publicado originalmente na página do Jornal Passa Palavra em 07 de novembro de 2010.

Quem se depara com o brilho das vitrines e a assepsia do ambiente destas grandes lojas talvez não imagine em que condições têm sido produzidas as mercadorias que ali ficam expostas.

Os registros do Serviço Nacional de Migração da Bolívia, ao final de 2004, indicavam que pouco mais de 14% dos bolivianos viviam fora do país. Dos 9,8 milhões de bolivianos estimados mais recentemente (população total), cerca de 3 milhões estão no exterior em caráter permanente, o que elevaria a porcentagem a 23%. Os bolivianos têm emigrado a destinos conhecidos, como Estados Unidos e Argentina, e outros mais recentes, como Espanha e Brasil. Estas são as quatro principais rotas migratórias traçadas nas últimas décadas.

Quanto ao destino, as rotas indicam que, antes de 1995, o principal destino eram os EUA, mas nos últimos cinco anos tem sido a Espanha. Mesmo assim, destinos regionais, como Argentina e Brasil, se mantêm como abrigo de migrantes de menor nível de instrução formal, menor renda e menos possibilidade de mover-se intercontinentalmente. No caso brasileiro, depois de haver recebido ondas de migrantes italianos, alemães e japoneses durante o século XX, além de libaneses e coreanos, a partir dos anos 80 e princípio dos anos 90, a metrópole de São Paulo tem recebido emigrantes bolivianos de maneira massiva e incessante. Embora a migração Bolívia-São Paulo tenha iniciado na década de 50, este é o caso migratório atual mais expressivo em termos nacionais.

Os números da migração Bolívia-São Paulo são confusos: o Consulado da Bolívia na cidade calcula entre 50 e 60 mil a cifra de indocumentados; a Pastoral do Imigrante afirma haver 70 mil na mesma situação, metade dos quais no bairro do Brás, tradicional acolhedor de imigrantes; o Centro de Estudos Migratórios (CEM) considera que existem entre 60 e 80 mil, dos quais 25% estão em situação irregular; o Ministério do Trabalho e Emprego, por sua vez, estima que o número varia entre 10 e 30 mil indocumentados; enquanto o Ministério Público calcula em 200 mil o total de imigrantes na capital paulista.[1]

As causas da migração interna campo-cidade experimentada na Bolívia nos anos 80 (migrantes de 1ª geração), que incluem basicamente dificuldades decorrentes do esgotamento do campo e do avanço do minifúndio [2], fazem parte do conjunto de causas da migração transnacional a São Paulo que se inicia posteriormente (migrantes de 2ª geração) e que incluem, ademais, necessidade de força de trabalho precária e mal remunerada no setor de confecções paulista, tráfico humano para prostituição e trabalho em outros ramos, assim como narcotráfico.

Ambas as gerações de migrantes foram impactadas direta ou indiretamente pelo Decreto Supremo 21.060, instituído em 1985 pelo governo de Paz Estenssoro, através do qual milhares de mineiros e operários fabris, antes inamovíveis pela legislação laboral, foram despedidos e forçados a engrossar o trabalho informal boliviano (veja aqui). Todos os elementos contidos no decreto se somam às decisões pessoais e familiares de bolivianos em busca de trabalho. São, portanto, os trabalhadores informais aymara e quéchua que se tornam imigrantes clandestinos em São Paulo.

O estudo de Arroyo Jiménez [3] indica que três de cada dez lares da área metropolitana de La Paz participam do fenômeno de migração laboral transnacional, correspondente a uma em cada dez pessoas da mesma área geográfica, que também inclui a cidade de El Alto, principal receptora do êxodo rural na Bolívia e uma das principais cidades-origem dos trabalhadores migrantes em São Paulo. Com mais força a partir de 1985, a migração laboral transnacional foi aumentando e se tornou um fenômeno estrutural da sociedade boliviana atual.

Embora seja mais arriscada, boa parte dos migrantes com destino a São Paulo recorre à migração clandestina, pelo acesso limitado e pela falta de informação sobre os procedimentos e requisitos migratórios.[4] Com uma fronteira de mais de 3.000 km, os principais pontos de travessia são as regiões fronteiriças de Guajará-Mirim, no estado de Rondônia; Cáceres, no estado de Mato Grosso; e Corumbá, em Mato Grosso do Sul.

Além disso, trata-se de migração laboral com características sócio-econômicas bem definidas: geralmente, são pessoas do sexo masculino – embora a feminização seja crescente –, entre 18 e 44 anos, originários do departamento (estado) de La Paz, que passam a residir nos bairros centrais da capital paulista – sobretudo Brás, Bom Retiro, Pari e Liberdade.[5] Em sua esmagadora maioria, estes trabalhadores são atraídos pelas oficinas de costura ligadas à indústria da moda paulista.

Desprovidos de seus documentos pessoais, nestas oficinas eles são submetidos a condições de trabalho semiescravo, em jornadas que podem chegar a 18 horas sob o sistema de cama-quente [os trabalhadores revezam-se nas mesmas camas], sem poder sair às ruas por dias (ou meses em casos extremos) para evitar as denúncias de que são ameaçados pelos donos desses estabelecimentos clandestinos (em geral, bolivianos e coreanos).[6]

Se na Bolívia os trabalhadores informais ao menos ocupam o espaço público, calçadas, ruas e avenidas, transformando o cenário de cidades como La Paz e El Alto em feiras gigantescas a céu aberto, quando chegam a São Paulo eles dificilmente se sociabilizam longe das diminutas oficinas, sem as condições de higiene e segurança no trabalho suficientes, sob risco de doenças fisiológicas e psico-sociais. Nestes espaços, podem ficar “aprisionados” até que consigam pagar as dívidas contraídas com seus coiotes [7] e/ou donos de oficinas, de acordo com o rendimento que obtêm com seu próprio ritmo de produção. Ao sair, ainda sofrem a xenofobia e o racismo característicos de uma cidade historicamente segregadora como São Paulo.

O trabalhador informal migrante de La Paz e El Alto é um trabalhador que se origina de um mercado de trabalho marcado por pequenas oficinas familiares de costura de sapatos e tecidos andinos. Nos primeiros anos da década de 90, surgiram no altiplano boliviano centenas de oficinas de confecção de caráter familiar e/ou semiempresarial, nas quais a jornada de trabalho também pode ser exaustiva e chegar a 12 horas. Nessas oficinas, pratica-se ainda o sistema aprendiz-mestre de ofício, que data do início do século XIX, e não existe uma divisão do trabalho especificamente capitalista entre proprietários e trabalhadores. São estas mesmas oficinas que têm sofrido a perda de costureiros qualificados que decidem migrar para São Paulo e Buenos Aires.

Mesmo qualificados previamente para o trabalho na indústria têxtil paulista, em São Paulo precisam adequar-se à produção by stress. Os migrantes recebem por peça de roupa produzida, que variam entre R$ 1,00 a R$ 2,00 a unidade, chegando a alcançar mensalmente algo entre R$ 200,00 e R$ 250,00, menos de um terço do piso oficial da categoria (R$ 766,00). Dependendo da época do ano, correspondente aos momentos de maior produção têxtil, sempre conforme o calendário da moda paulista, os bolitas [8] podem chegar a receber de R$ 500 a R$ 700 por mês. Independentemente da época, a alimentação é oferecida pelo próprio dono da oficina de maneira precária.[9]

Por trás das vitrines

A presença de marcas de roupa e grandes magazines conhecidos na cadeia produtiva que se beneficia desta mão-de-obra barata tem sido detectada e divulgada pelos auditores da Secretaria de Inspeção do Trabalho, ligada ao Ministério do Trabalho e Emprego do estado de São Paulo. Quem se depara com o brilho das vitrines e a assepsia do ambiente destas grandes lojas talvez não imagine em que condições têm sido produzidas as mercadorias que ali ficam expostas. Apesar de estarem jurídica e tecnicamente distantes daquilo que acontece nas insalubres e invisíveis oficinas de costura, estes grandes centros de compras, que se gabam de sua sofisticação, modernidade e bom gosto, são estreitamente dependentes desta forma mais brutal de exploração do trabalho. As Lojas Marisa, por exemplo, mais de uma vez denunciada ao Ministério do Trabalho, constituem um bom exemplo de que, quando se trata da busca pelo lucro, não há qualquer contraditoriedade entre o lícito e o ilícito.

Com mais de 90 milhões de peças vendidas anualmente e mais de 40 milhões de clientes, a rede possui em seu cadastro empresas contratadas que por sua vez mantêm relações comerciais com outras empresas subcontratadas vinculadas a dezenas de pequenas oficinas de costura com imigrantes bolivianos. Segundo os auditores, as empresas fornecedoras intermediárias funcionam “como verdadeiras células de produção da empresa Marisa Lojas S/A, todas interligadas em rede por contratos simulando prestação de serviço, mas que, na realidade, encobertam nítida relação de emprego entre todos os obreiros das empresas interpostas e a empresa autuada”.[10]

Nessa cadeia de subcontratação, na presença de processos terceirizados, quarteirizados ou quinteirizados, empresas como as Lojas Marisa não se responsabilizam pelas relações de trabalho semiescravo existentes, ainda que a produção das oficinas na base da cadeia muitas vezes seja exclusiva à empresa contratante, que por sua vez define as condições de preço e qualidade dos produtos, a maquinaria utilizada e até a organização do trabalho.

A multinacional de origem holandesa C&A também integra a lista das grandes redes varejistas [retalhistas] que utilizam trabalho forçado. Desde 2004, tem sido identificada presença de trabalho migrante boliviano em oficinas subcontratadas pela rede, nas quais as jornadas de trabalho chegam a 14 horas diárias para um salário médio mensal de R$ 300,00. A multinacional ainda é acusada de manter fornecedores que utilizam mão-de-obra subcontratada de falsas cooperativas em Bauru e outras cidades do interior de São Paulo.[11]

As redes de subcontratação que permitem ao capital evitar “custos externos” está diretamente relacionada com o trabalho precarizado. Dessa maneira, a força de trabalho andina, através das redes de subcontratação, mantém a reprodução da indústria têxtil paulista em condições de acumulação flexível, o que é cada vez mais estimulado pela necessidade de se competir com os produtos chineses. São as relações sociais e comerciais entre os trabalhadores migrantes, donos de oficina e grandes redes de roupa varejista que estruturam a cadeia produtiva no ramo da confecção.

Mesmo estando dispersos pelas ramificações da cadeia de subcontratação, os trabalhadores migrantes trabalham sob o ritmo e o controle altamente hierarquizado da empresa contratante, que aplica seus sistemas just-in-time e inclui auditorias de qualidade na forma de vistorias. Mais do que informais, os costureiros andinos são clandestinos, condição ainda mais propensa à super-exploração, ideal para os requisitos do capital que depende da transferência de valor entre as empresas contratadas e subcontratadas.

Apesar da iniciativa da Superintendência Regional do Trabalho e Emprego de São Paulo (SRTE/SP) de criar, em 2007, o Pacto Municipal Tripartite Contra a Fraude e a Precarização e pelo Emprego e Trabalho Decentes em São Paulo, a condição dos trabalhadores migrantes tem mudado pouco ou quase nada. A iniciativa, que também envolve as redes Riachuelo e Renner, se trava quando o assunto é responsabilizar o grande capital por questões trabalhistas “que já não lhe competem”.

PS: Enquanto preparávamos este artigo, tornava-se público o uso de trabalho semiescravo, nas mesmíssimas condições descritas acima, para a confecção de 230 mil coletes para recenseadores do IBGE [Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística]. Neste caso, a empresa vencedora de uma licitação de RS 4,3 milhões repassou mais de 99% da sua produção para terceiros. Uma dessas empresas, por sua vez, subcontratou uma oficina de costura localizada no bairro da Casa Verde, em São Paulo, que mantinha 15 bolivianos sem visto em jornadas de trabalho que iam das 7 às 22h, de segunda a sábado. Ressalte-se que o edital de licitação lançado pelo IBGE proibia qualquer tipo de subcontratação.

Notas

[1] Dados recolhidos de reportagens da ONG Repórter Brasil e de Cymbalista, Renato; Iara Rolnik Xavier. A comunidade boliviana em São Paulo: definindo padrões de territorialidade, Cadernos Metrópole, n. 17, São Paulo, dic. 2007.
[2] Desde a reforma agrária de 1953, as terras do altiplano boliviano foram repartidas em parcelas. Com o passar dos anos, estes lotes foram sendo acoplados a pequenas e médias propriedades, dando origem aos minifúndios. Tendo chegado ao seu limite, este modelo de repartição de terra não é capaz de absorver mais mão-de-obra além daquela já empregada.
[3] Arroyo Jiménez, Marcelo (coord.). La migración internacional: una opción frente a la pobreza. Impacto socioeconómico de las remesas en el área metropolitana de La Paz. La Paz: PIEB, 2009.
[4] A ausência de informação adequada pode explicar a baixa quantidade de imigrantes bolivianos anistiados pelas últimas iniciativas do governo brasileiro: foram 27 mil anistias em 1981, 30 mil em 1988 e 37 mil em 1998.
[5] Nobrega, Ricardo. Migraciones y modernidad brasileña: italianos, nordestinos y bolivianos en San Pablo. In: Novick, Susana (comp.). Las migraciones en America Latina. Políticas, culturas y estrategias. Buenos Aires: CLACSO, 2008.
[6] É o que revela o trabalho jornalístico realizado pela ONG Repórter-Brasil, que tem acompanhado o caso do trabalho semiescravo de imigrantes bolivianos em São Paulo.
[7] Responsáveis pelo recrutamento dos migrantes através de rádios bolivianas locais e anúncios em jornais, além da travessia fronteiriça clandestina e chegada a São Paulo.
[8] Termo xenófobo e racista usado para identificar os migrantes bolivianos em São Paulo.
[9] Dados recolhidos de reportagens da ONG Repórter Brasil e de Cymbalista; Xavier, 2007.
[10] De acordo com a reportagem da ONG Repórter Brasil, de 17/03/10.
[11] Segundo reportagem da ONG Repórter Brasil, de 14/04/08.

Fonte: Jornal Passa Palavra.

Disponível em: http://passapalavra.info/?p=31342. Acesso em 13 nov. 2010.

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