Democracia e Universidade: A reforma que não reforma

Por Fernando Ponte de Sousa

No Brasil, a reforma universitária tem sido apresentada recorrentemente por todos os governos, inclusive os da ditadura instaurada com o golpe de estado de 1964, além dos vários governos precedentes.
Mais recentemente, nos governos desde a “nova república”, o tema, além de recorrente, é a premissa através da qual se desenvolve grande parte dos debates, na elaboração da Constituição promulgada em 1988, na definição e aprovação (em meados de 1990) da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, além dos grupos de trabalho e projetos que se seguiram deste período. Por que não questionar a reforma universitária como premissa? Não seria outra, a premissa?
O anteprojeto de lei do governo Lula, já na sua terceira versão entregue em 25 de julho de 2005 pelo ministro da Educação[2] ao Presidente da República, partindo da  mesma premissa e propósito: aborda a questão universitária pela chamada reforma .
Mantida esta premissa, parece então que a universidade é um foco privilegiado dos governos. Na realidade, é o contrário. O descaso dos governos, com a “casa do saber”, tem sido uma constante, e a proposição de ser necessária uma reforma é apresentada como uma quase verdade, quando utilizada como justificação ou argumento de legitimação do descaso. Ou seja, é como se todos os problemas, a começar pelo descaso governamental, só pudessem ser resolvidos através de uma reforma universitária. E enquanto a mesma não vem, “aceita-se” ou justifica-se que as coisas estejam como estão. Ao findar um governo, lamenta-se que a reforma não foi feita e, ao iniciar-se outro, retoma-se o debate – o da reforma.
Com esta premissa pauta-se a agenda de debates dos governos, das organizações sindicais e estudantis, das entidades dos administradores das universidades e, de simulacro em simulacro, constrói-se um espectro, uma reforma que não reforma. E esta é a síntese do governo Lula, pelo menos neste âmbito: um projeto para que as coisas permaneçam como estão, ou sejam como são; com a retórica da reforma (sem se saber o que vai ser de fato aprovado no Congresso, se é que vai ser aprovado com a fragmentação da chamada base governista) consagra-se o descaso com o ocultamento dos mecanismos realmente decisivos.
A reforma, no debate governamental, como simulacro, aparece numa discussão sem contextualização – sem uma análise crítica. Nenhum histórico, nenhum balanço analítico da situação das universidades pelo menos nas últimas décadas, nenhuma análise relacionando-as ao ensino fundamental e médio, nenhuma análise relacionando-as aos laços de dependência do país e das políticas econômicas, nenhuma análise das relações de poder, das definições institucionais e das universidades como valor, além de sua naturalização no mercado. O pior, não apenas quanto à ausência de metas realistas, é a omissão ao desafio da necessária descolonização.
Reduzida aos aspectos pontuais, a discussão fica empobrecida, prisioneira das divergências operacionais, tais como percentagem de afro-descendentes e índios,  percentagem dos oriundos das escolas públicas, confirmando o notório abandono da universalidade: pela legislação constitucional, têm direito a ingressar no ensino superior todas as pessoas que  concluem o ensino médio, a despeito das diferenças, disparidades, desigualdades e contradições.
O paradigma de crise societária, como premissa, mesmo que como conceito ad doc, não é considerado, por conta de não considerar seu referencial e seu aprofundamento, apesar da discussão do controle social como quesito de funcionalidade institucional. Por exemplo, o que se requer da universidade pública como parte do sistema educacional, sem relevar que sua existência é questionável quando o encanto é apenas com o que tem convertibilidade em preços? E sendo assim, estamos sustentando os termos de uma universidade que não existe mais? Talvez seja esse o conteúdo do descaso do poder público com a universidade pública que um dia foi um projeto prioritário para o Estado e para a nação. Será este um movimento social pretérito? Na hipótese de não se concordar com isso, é necessário então observar a impotência da universidade ante a deterioração de sua própria reprodução qualitativa em ambiente de estéril competição.
Florestan Fernandes, neste quadro sócio-histórico, já falava da necessidade de uma outra premissa: a da rebelião intelectual do universitário, da expansão dos dinamismos culturais do pensamento crítico independente e da politização explícita através dos valores fundamentais da universidade livre e democrática. Fala-se aqui de uma profunda revolução democrática da sociedade, e não de uma “reforma” universitária.
Intrigantemente, o debate de uma intervenção propositiva – não-contestatória, anti-insurgente e anti-negativa – ganhou consenso nos núcleos dominantes da república, e tem nas reformas o estabelecimento de políticas públicas na aplicação de um consenso já velho – quem sabe morto ? –: o consenso de Washington. O programa do capitalismo tardio do governo Lula, retardatário, reafirma os “ajustes estruturais” aplicados nos últimos 20 anos na região, interditando o debate de alternativas. Na realidade, trata-se de um consenso que se deu menos na economia e mais na política, devido à necessidade sistêmica de controle social.
Esta necessidade de controle social se apresenta aqui como mistificação. A existência empírica do interesse geral, com a qual justificam as reformas, está separada de sua existência substancial. A verdade é que o “interesse geral” existente em si não é realmente geral e que o interesse geral empírico real não é mais que formal.
O projeto apresenta uma universidade ideal, embora pobremente idealizada. Destituída do elemento constituinte – pois não traz à existência outro interesse, que não os interesses já dominantes – consagra a educação como produto financeiro e particular/não universal.
Este conteúdo (da reforma universitária) precisou ser apresentado como um assunto do povo, “a ilusão de que o interesse do povo é um assunto geral” (Marx, 1972, p.99), como ilusão da consciência prática. Comete, ao simular debates com a sociedade civil, a separação do em si, (a universidade) e do para si (os fins) da substância, constituindo um misticismo abstrato. Quer dizer, o que se apresenta como reforma universitária, de interesse geral, tem uma substância particular.
A reforma é apresentada como assunto de interesse geral – das universidades particulares, das filantrópicas e comunitárias e das públicas (municipais, estaduais e federais) e dos excluídos do ensino superior. É o momento de realização como classe do ser em si, agora como para si, do governo Lula, mas não da classe dos trabalhadores, e sim dos capitalistas do ensino.
Pontualmente, no conjunto das medidas do governo, entre outras, destaca-se,  como verdade escandalosa, o conteúdo real, aquela que repassa vultosos recursos públicos para as empresas de ensino, sob a retórica (formal) da inclusão dos mais pobres, quando na prevalência do geral (como real) a aplicação deveria ser nas universidades públicas para atender todos. Como política de estado, “o elemento constituinte não é mais do que a mentira sancionada, legal, dos Estados constitucionais, pois afirma que o Estado é o interesse do povo, ou que o povo é o interesse do Estado. Esta mentira torna-se patente quando se analisa o conteúdo ( MARX, 1972, p 100). Em suma, o conteúdo real da democracia formal é que a universidade não é para todos.
Por outro lado, no ambiente econômico constituído pelo consenso, é impossível a universalidade dos direitos sociais e educacionais, conforme definidos de forma declaratória na Constituição vigente. Para ilustrar o argumento, basta lembrar uma situação: somente no primeiro semestre de 2005, o setor público gastou R$ 80,129 bilhões como pagamento de juros, equivalente a 8,6 % do PIB (Folha de São Paulo, 29/07/2005). Como se sabe, este encargo advém do considerável volume da dívida federal que estava, até esta mesma data, em R$ 845,4 bilhões, sendo que, somente de janeiro a fevereiro do mesmo ano, o aumento da dívida pública em títulos do governo federal foi de cerca de R$ 18,7 bilhões. Destaque-se ainda a dívida externa líquida de 130 bilhões de dólares, com reservas líquidas em dólar muito distantes de superar a histórica condição de vulnerabilidade. Sua origem básica, no plano decisório de política de governo, é a emissão de novos títulos e os juros altos. Pode-se observar, na literatura da área, como há uma relação entre renda e disparidades na educação e como o crescimento do PIB não tem necessariamente uma relação positiva com tais aspectos, especialmente no caso brasileiro, cujo crescimento é de minguante expectativa para este ano (2005), variando de 2,5% a 3,0%  conforme o organismo avaliador.
No plano social e incluindo-se aí o educacional, os indicadores continuam então apontando, paralelamente à pujança dos lucros dos banqueiros, observa-se a pobreza da renda do povo.
Certamente, dada a crise política que ameaça o governo – e, é bom lembrar, não pelo seu programa de governo, mas sim pela dilaceração dos grupos de poder que o apóiam (cujos ilícitos são tipificados, no instituto penal, como formação de quadrilha) –  a manutenção das taxas de lucro dos grandes capitais também é uma questão política.
Fala-se agora de um “pacto com a decência”, da formulação de uma agenda positiva que preserva a área econômica. E, como noticiado recentemente: “Preocupados com a crise política, grandes empresários, banqueiros e governo – FEBRABAN, FIESP, CNI, BNDES – unificaram o discurso e defendem uma agenda positiva para que a economia não seja abalada pela crise política” (Folha de São Paulo, 31/07/05, p. B-1). A estabilidade requerida significa, neste consenso, os ganhos do grande capital por conta dos juros, da dívida, do deslocamento dos direitos sociais para produtos bancários, da eliminação de direitos trabalhistas.
Este é o conteúdo das chamadas reformas, que interdita o debate das questões de fundo com a discussão de aspectos pontuais, incluindo a reforma do  ensino superior.
Só para não esquecer, trata-se de um governo que se elegeu com um Presidente da República que fez carreira propondo o contrário. Como dizia Lula: “(…) banqueiro tem que ter medo do PT. Não é normal num país os banqueiros ganharem o que estão ganhando aqui” (Revista Caros Amigos, nov. de 2000); “(…) Não podemos, não queremos e não devemos pagar a dívida externa” (Diário do Grande ABC, out. 2002).
O teor explicativo da mistificação se expõe aí com todas as letras. Nada como o governo ser eleito em nome do trabalho, para a realização de classe do capital tomado como interesse geral.
Por fim, trata-se aqui não de proferir a negação completa das reformas como movimento social anti-sistêmico, mas de acentuar que, na mistificação acima referida, o movimento é outro: o que se apresenta como iniciativa de governo, neste âmbito, é uma anti-reforma. Isso se tomarmos os elementos reformadores, populares e populistas, insurgentes e revolucionários que marcaram épocas na história da região. Vários movimentos reformistas autênticos são conhecidos desde o século XIX e ainda serão resgatados quando nos propusermos a mudar o nosso lugar na história.
Lembre-se aqui o movimento universitário de Córdoba, as instigantes análises de Mariátegui sobre o espírito colonial e colonizador da educação na república de colonização espanhola e portuguesa, as análises de Florestan Fernandes considerando o caráter autocrático da revolução burguesa no Brasil, além das manifestações pelas reformas nos anos 60 reprimidas no seu percurso pelo golpe de estado de 1964.
O que se apresenta agora, com a reforma universitária do governo Lula, é a retomada da linha básica iniciada com a ditadura, mas sob outras feições, como uma anti-reforma.
Ajusta-se a universidade ao que ela já é: a transferência de recursos públicos para a expansão do sistema privado, legalização da privatização de atividades das universidades públicas, esvaziamento da competência da qualidade como padrão unitário, das universidades federais, através de rigoroso arrocho salarial, estabelecimento de “ilhas de competência” na utilização de recursos públicos com as parcerias entre grupos e empresas. Trata-se de uma reforma que não reforma. Uma anti-reforma, pois apesar de um ou outro aspecto muito pontual, segue na tendência contrária do movimento pela educação pública, notabilizado na década de 1950 até meados de 1960 e retomado na discussão do capítulo III da Constituição (Da educação, da Cultura e do Desporto) promulgada em 1988.
Na Constituição de 88, estão estabelecidos a gratuidade do ensino público, a gestão democrática e a responsabilidade do Estado no financiamento das instituições públicas. Trata-se, portanto, de efetivar os referidos artigos e não de burlá-los. É o que acontece com o artigo 213, que estabelece que as instituições filantrópicas e comunitárias poderão receber recursos públicos; mas, ao estabelecer o pagamento de bolsas para as empresas privadas, burla-se a constituição.
Ao colocar como agenda a reforma, deslocam-se, portanto, as questões de fundo: um projeto de sociedade e a responsabilidade do Estado, o aprofundamento dos desafios que assolam o país, discutindo com as universidades públicas suas metas de expansão para atendimento das reais demandas sociais e direitos da população. A anti-reforma distancia-se da necessidade da revolução democrática no país, e sua postulação como premissa é uma mistificação. As transformações necessárias à universidade serão possíveis na medida que se associem às transformações da sociedade. Seu metabolismo não é um movimento à parte. Vai além da mentira, sancionada porque conta com a cumplicidade de instâncias internas das instituições.
Mario de Andrade, com Macunaíma (1928), elaborou uma rapsódia muito mais criativa, porque crítica da síntese que não é; noutras palavras, enuncia a justaposição sem síntese, pois não alcançara a unidade de um povo. A reforma, nessa inspiração, é uma paráfrase de nossa história social. A falta de um sentido histórico – porque tomada pela subsunção real ao capital – é uma improvisação, como se o Brasil fosse incapaz de um fim como razão orientadora.
Como nas demais reformas, a premissa básica do governo Lula, tal como em Macunaíma, é: o povo não é sujeito e sim figurante. Nestes termos, lembrando novamente Florestan Fernandes (1977), o protagonismo não se objetiva na reforma universitária; depende, principalmente, da rebelião intelectual do universitário.

Referências Bibliográficas:

BARROS, Guilherme. Governo e empresários se unem contra a crise. Folha de São Paulo, 31 de julho de 2005, p.B-1.
Constituição da República Federativa do Brasil. São Paulo: Editora Saraiva, 1990.
FERNANDES, Florestan. Circuito fechado . São Paulo : Hucitec, 1977.
Universidade Brasileira: Reforma ou revolução? São Paulo Omega, 1975.
KARL, Marx. Crítica da filosofia do direito de Hegel. Porto: Editorial Presença, 1972.
MARIÁTEGUI,  José Carlos. Sete ensaios de interpretação da realidade Peruana. São Paulo: Alfa- Omega, 1975.