Abertura de arquivos pode revelar pouco sobre a ditadura – Entrevista de Criméia Almeida
Por Vera Rotta – Carta Maior (22/11/2005)
Sobrevivente da guerrilha do Araguaia, Criméia Almeida avalia que a decisão do governo de abrir arquivos da Agência Brasileira de Inteligência e da extinta Comissão Geral de Investigações “é uma enrolação”. Decepcionada com o presidente Lula, ela diz que não muda o refrão: “Verdade e Justiça”.
São Paulo – No último dia 17, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva assinou um decreto determinando a transferência dos arquivos da época da ditadura militar da Agência Brasileira de Inteligência (Abin) e da extinta Comissão Geral de Investigações (CGI) para o Arquivo Nacional, para estarem à disposição do público. A abertura, ainda que parcial, foi celebrada pela Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara dos Deputados como “um primeiro passo, dos muitos que ainda precisam ser dados, no sentido de restabelecer a dignidade dos que tiveram seus direitos violados pela ditadura”.
No entanto, na opinião de Criméia Alice Schmidt de Almeida, 57 anos, sobrevivente da guerrilha do Araguaia – onde perdeu, mortos em 1973, o marido André Grabois e o sogro Maurício Grabois – o decreto presidencial “é uma enrolação”, uma medida apenas para atender exigências da ONU (que recentemente criticou duramente o país por ainda manter os documentos em sigilo), que não vai trazer nenhum dado novo para os familiares dos mortos e desaparecidos no Brasil.
“Estão jogando areia nos olhos da população. É uma medida tímida que serve muito pouco para o que nós precisamos”. Para ela, não é necessário nenhum decreto para atender as reivindicações dos familiares. Bastaria ao governo revogar o artigo 6 da Lei 11.111, de 05/05/2005, que permite ilimitadas renovações dos prazos de sigilo de documentos oficiais. A lei atribui à Comissão de Averiguação e Análise de Informações Sigilosas o poder de administrar os documentos ultra-secretos e de “manter a permanência da ressalva ao acesso pelo tempo que estipular”. Originária de medida provisória, ela regulamentou a parte final do disposto no inciso XXXIII do caput do artigo 5º da Constituição Federal, que trata do sigilo imprescindível à segurança da sociedade e do Estado.
Nesta entrevista exclusiva à Carta Maior, Criméia criticou o fato de não haver representação de outros poderes e da sociedade civil na comissão que vai estudar a liberação dos documentos. Para ela, não é possível desenvolver o processo democrático sobre o entulho ditatorial. Na conversa, Criméia fala das dificuldades da luta de 30 anos dos familiares dos mortos e desaparecidos para saber como o que aconteceu com cada um e onde estão os restos mortais dos que lutaram contra a ditadura militar. A esperança, retomada com a posse do governo Lula, de abertura dos arquivos do Exército – onde essa história permanece escondida – transformou-se em luta jurídica e na criação de comissões que pouco ou nenhum esclarecimento trouxeram ao assunto.
Carta Maior – Na sua opinião, por que o governo não abre os arquivos da ditadura e torna pública essa história?
Criméia Almeida – Para garantir a impunidade moral dos militares. Na verdade, houve um acordo tácito da esquerda com os militares para garantir algumas liberdades. Quando veio a anistia política, boa parte das cassações já estavam prescritas. Mas, de qualquer forma, alguns ainda estavam impedidos de participar politicamente. Então foi feito um acordo para garantir uma certa liberdade sindical e partidária em troca do silêncio sobre a violência da repressão, a tortura, os assassinatos e os desaparecimentos. O pior é que, enquanto o governo nega a abertura dos arquivos para a sociedade, os militares abrem seus arquivos para pessoas escolhidas, para que essa história seja contada da maneira deles. Vários livros escritos recentemente não contam a versão dos familiares, como “O Coronel rompe o silêncio”, de Luiz Maklouf Carvalho, da Editora Objetiva, e “Operação Araguaia” de Taís Morais e Eumano Silva, da Geração Editorial. Esses livros têm procurado igualar militares e guerrilheiros. Só não podemos esquecer que uns foram pagos pelo Estado para reprimir e os outros lutavam por uma ideologia.
CM – Mas qual o objetivo do governo Lula, formado também por pessoas que foram vítimas dessa repressão, manter este acordo?
CA – Essas pessoas que hoje compõem o governo foram vítimas, mas também foram “beneficiadas”. Elas passaram a concorrer nos partidos políticos e se elegeram deputados, senadores e inclusive presidente, como é o caso de Lula.
CM – De certa forma, então, os militares ainda têm muito poder neste país?
CA – Quanto a isso eu não tenho a menor dúvida. Eles não mandam sozinhos, mas ainda tem muito poder.
CM – Já são 30 anos de luta dos familiares para recuperar a história da repressão. Quais foram as maiores dificuldades neste processo?
CA – Foi sempre uma luta muito difícil. Num primeiro momento, a gente tinha dificuldade de conviver com a sociedade em geral, devido à nossa condição de ex-preso. Meu filho, por exemplo, tinha problemas na escola por ser filho de desaparecido político e de ex-presa. Outra dificuldade foi com os próprios companheiros que também foram perseguidos. Nós (familiares) persistimos nessa busca e eles foram disputar eleições, em sindicatos, em partidos e achavam que a gente ficava só insistindo numa coisa do passado; achavam que era preciso olhar para frente. Mas, para mim, esse olhar para frente não exclui o passado, senão a gente corre o risco de repetir o que foi feito e não aprender com a experiência. Essa não é uma luta do passado, é uma luta do presente. A busca por informações, o direito à informação é uma característica da democracia. Não há democracia sem informação. A informação garante poder e aqueles que a detém têm mais poder que os outros, ferindo o princípio de que todos são iguais perante a lei.
Encontramos esse tipo de dificuldade. Diziam que a gente era muito sectário, que estávamos cutucando a fera com a vara curta, que o processo democrático estava só se iniciando e nós poderíamos por tudo a perder. Essa é uma visão muito distorcida, de que é possível desenvolver o processo democrático em cima do entulho ditatorial. Ou seja, basta colocar o entulho embaixo do tapete que a democracia vai ser límpida e transparente.
CM – Quais as seqüelas disso para a sociedade brasileira hoje?
CA – Acho que hoje a sociedade brasileira paga por isso. Todo esse processo de violência policial, tortura nas delegacias, assassinatos, desaparecimentos dos presos comuns é fruto dessa história. Ou seja, democratizaram mais a tortura. É irônico. Esse processo de aumento das diferenças sociais, o aumento considerável da riqueza para uns e da pobreza para a maioria é conseqüência de toda uma prática política, administrativa, de Estado, que foi mantida debaixo do tapete, que permite corrupção, e aí a informação é usada quando convém, por quem tem. Por exemplo, a lei do sigilo – nº11.111, de 5 de maio de 2005 – é um fator que entrava a democracia. Ela não veio para promover a pacificação nacional, nem o bom convívio da sociedade. Um exemplo bem claro disso é que em 2004, quando se discutia a questão da abertura dos arquivos por causa do processo do Araguaia, o ministro da Defesa [general Felix] disse que a abertura dos arquivos poderia trazer inconvenientes para a esquerda e coisas do gênero. Ou seja, ameaçou a esquerda com as informações que eram de poder exclusivo dele. Mas não disse quais.
CM – E no caso de existirem informações inconvenientes, qual a sua posição?
CA – Eu defendo que, se realmente existem essas informações, elas devem ser públicas, porque só fortalecem a democracia. Nosso objetivo não é prejudicar indivíduos de esquerda nem de direita e sim fortalecer a sociedade, informar a sociedade. Se alguém de esquerda tem algo de desabonador nesses documentos, que seja posto para fora. A sociedade tem o direito de conhecer, inclusive, as mazelas dos seus ídolos. E a sociedade também sabe fazer a distinção entre uma informação correta e uma provocação meramente policial. Quando houve a abertura dos arquivos do DOPS de São Paulo – claro que de arquivos já limpos, pelo Romeu Tuma, que era o chefe da polícia federal, na época – muita coisa se pôde saber a respeito do período. Obtivemos muitas informações de mortos e desaparecidos sem que isso ameaçasse a democracia.
CM – Como você acha que esse material deve ser tratado?
CA – Essa é uma questão muito séria. Acho que tanto os arquivos do passado quanto daqui para frente tinham que ser inventariados. Por exemplo, um documento sobre a febre aftosa, produzido pelo governo, que deve ser sigiloso por questões econômicas, políticas ou comerciais. Se ele foi decretado sigiloso, é preciso ficar claro por quem foi, quando foi e até quando. E se tiver que ser prorrogado, por que e quem determina. Porque a gente sabe que houve censura da ditadura sobre a epidemia de meningite acontecida em São Paulo em 1972 e 1974. A censura de uma epidemia é questão seriíssima de saúde pública. Talvez muitas mortes pudessem ter sido evitadas naquela época se a população tivesse sido alertada do risco da epidemia. Então quem for fazer um documento sigiloso sobre a febre aftosa ou sobre a gripe aviaria, que estão na moda, tem que assumir a responsabilidade por esse sigilo. Isso tinha que estar previsto em lei.
CM – Como isso se aplicaria aos documentos militares da época da ditadura?
CA – Esse inventário tem que ser retroativo. Se o governo quer manter documentos da época da ditadura sob sigilo, tem que dizer à sociedade quais documentos ele tem e por que quer manter o sigilo. Porque não existe guerrilha nenhuma em curso, nem luta armada. Então qual a justificativa para o sigilo? Pra mim a justificativa é preservar os militares. E acho até sintomático que eles estejam falando agora, porque creio que, do ponto de vista penal, eles entendem que seu crime está prescrito. Só que pelas leis internacionais o crime de desaparecimento não prescreve. É um crime continuado, porque não basta dizer que os desaparecidos estão mortos. Até hoje só isso foi dito, nada mais. É preciso que seja dito quando e onde foram mortos.
CM – Você falou que Romeu Tuma entregou arquivos limpos. Corre-se o mesmo risco hoje?
CA – Sim, por isso é importante garantir daqui pra frente – e na lei isso tinha que constar – que haja esse inventário. As pessoas têm que assumir o que fazem. Não pode ser como se trata a questão da repressão no Brasil até hoje, que teria sido a reação de grupos que, se sentindo ameaçados pela esquerda, se tornaram violentos. Isso não é verdade. Foi uma ação do Estado executada pelas forças armadas, submetidas a um comando.
CM – Você tem idéia de onde esses arquivos possam estar?
CA – Suponho que se encontrem nos órgãos de informação do Exército, Marinha e Aeronáutica, na Polícia Federal e na Abin.
CM – Volta e meia surge a notícia de destruição dos arquivos, como o caso do incêndio na base área de Salvador, do lixão em Porto Alegre e outro em Fortaleza. E então os militares afirmam que não existe mais nada. O que de verdade existe nisso?
CA – Eles costumam dizer que esses documentos foram todos incinerados. Cada um fala uma data. Uns dizem que é em 75, outros em 97. Não é verdade. O que pode ter sido incinerado é o papel, mas já foi microfilmados e hoje, provavelmente, estão digitalizados. O papel que aparece queimado é para a sociedade ter a impressão que esses arquivos não existem mais. Ou então eles dizem que são arquivos individuais, para a gente ter a impressão de que cada um levou uma pasta para casa quando acabou a ditadura. Pegou seus documentos e botou debaixo do braço. E, de repente um queima e joga fora; outro põe no lixo, e que a gente não vai ter mais nada. Eu não acredito nessa história. O Exército não queimaria essa história assim. Isso foi um aprendizado para eles. Eles mesmos falam nos arquivos que foi a primeira experiência real de enfrentamento, principalmente em relação ao Araguaia. Eles não vão queimar esses documentos. Isso hoje faz parte das aulinhas nas academias militares. O governo deveria tomar uma atitude em relação a esses arquivos particulares porque, na verdade, eram arquivos públicos, foram feitos com dinheiro público. É um patrimônio. Essas pessoas, que têm arquivos em casa, deveriam ser intimadas e terem os documentos requisitados. Além disso, deve haver uma punição para essa atitude.
CM – Existe um processo tramitando na Justiça, movido pelos familiares dos mortos e desaparecidos no Araguaia, desde 1982. O que se pedia nesse processo e em que situação ele se encontra?
CA – Esse processo foi iniciado ainda no governo ditatorial do general João Baptista Figueiredo e pedia o esclarecimento sobre a circunstância da morte e a localização dos corpos dos guerrilheiros. Ele andou muito lentamente. Em 1989, o juiz Vicente de Araújo Leal julgou a sentença desfavorável aos familiares, alegando que tudo que queríamos já havia sido concedido pela Lei da Anistia e que o processo não tinha sentido. Ele mal julgou o mérito da ação e deu seu parecer desfavorável. Esse juiz, posteriormente, foi nomeado ministro do Superior Tribunal Federal pelo governo Fernando Henrique e, mais tarde, se aposentou acusado de vender habeas corpus para o narcotráfico. Ele tinha sido oficial da polícia no Ceará nos anos 70 e fez alguns cursos nos EUA. Era uma pessoa finíssima. Nós recorremos e ganhamos o direito de ter o mérito da sentença julgado em 1992. O processo foi julgado 10 anos depois, em 2003, e nós ganhamos a sentença. A partir daí, o governo Lula criou uma Comissão Interministerial de Trabalho sigiloso para esclarecer as questões da sentença (Decreto nº 4.850, de 2 de outubro de 2003). Esta comissão, como era sigilosa, se fez alguma coisa não sabemos de nada. Ou seja, não sei como o sigilo vai responder à sentença. Além disso, a criação da comissão desautorizou uma outra já existente, nomeada pelo governo Fernando Henrique em 95 – a comissão da lei 9.140, que tinha como tarefa à busca do reconhecimento dos mortos e desaparecidos. Isto foi um grande golpe, porque a comissão da lei nº 9.140 já era muito limitada. O governo criou um a nova comissão e entrou com vários recursos. Então ganhamos a causa em meados de 2003 e até hoje não levamos. Está é a realidade desse país.
CM – Por que a Comissão Interministerial ainda não entregou nenhum relatório? Os prazos estão sendo cumpridos?
CA – Ela tinha o prazo máximo de 180 dias, já com as prorrogações, que terminou em abril de 2004. E nada nem ninguém mais fala dela, a não ser a gente que resmunga. O governo não fala mais nada e se essa comissão fez alguma coisa foi sigiloso e nós não temos conhecimento.
CM – A comissão não precisa prestar contas?
CA – O problema é quem cobra do governo. Nós familiares cobramos, ou melhor, esperneamos. Todas as audiências que pedimos com o presidente Lula, onde a gente poderia cobrar isto dele, foram negadas. Quer dizer, nós ficamos aguardando, esperneando, porque espernear foi o que mais fizemos nestes 30 anos.
CM – Por que o presidente Lula não recebeu os familiares dos mortos e desaparecidos até hoje?
CA – Porque ele não tem como justificar a não aceitação das nossas reivindicações. Porque ele vai ouvir o que ele não quer. Por isso ele não nos recebe. Ele já conhece as nossas reivindicações de antes de ser eleito; nem precisaria nos receber. Era só atendê-las. As nossas reivindicações são muito velhas, a gente não muda o refrão: “Verdade e Justiça”.