A educação e as teses de inclusão social
Por Sonia Maria Rummert
Professora da Faculdade de Educação da Universidade Federal Fluminense. Integrante do Campo de Confluência Trabalho e Educação do Programa de Pós Graduação em Educação da mesma Universidade. Este artigo foi elaborado no âmbito da pesquisa Educação básica e profissional de trabalhadores. Políticas públicas e ações do Estado, do trabalho e do capital que vem sendo realizada com o apoio do CNPq.
São hegemônicos, hoje, os argumentos que conferem centralidade à educação nos processos individuais e coletivos considerados necessários ao enfrentamento da denominada exclusão social. Tais argumentos não são novos, mas adquirem contornos renovados, sobretudo quando associados às teses hegemônicas que negam o valor das teorias, tidas como metanarrativas totalitárias, particularmente, o materialismo histórico, considerado incapaz de se adequar à realidade atual, que prescinde de análises e exige, sobretudo, ação em busca de transformações cujo horizonte não é, entretanto, definido.
Para contrapor-se a argumentos de tal ordem, faz-se necessário explicitar alguns pressupostos que evidenciam o lugar epistemológico a partir do qual é tratada a educação neste trabalho. O primeiro considera que as condições sócio-econômicas características do sistema-capital não constituem uma fatalidade, não são inexoráveis. Ao contrário, foram estruturadas pelo agir humano e por ele podem ser superadas. Isto significa, também, recusar a lógica que naturaliza a pobreza e a torna objeto de medidas compensatórias.
Um segundo ponto refere-se ao fato de que no âmbito do sistema-capital, o binômio inclusão/exclusão é tratado de modo a obscurecer o paradoxo que lhe é inerente, e que só pode ser desvelado quando o analisamos em sua radicalidade. Tratado ao nível do senso comum, tal binômio não permite perceber que as formulações teórico-práticas, centradas nas propostas de propiciar a inclusão dos chamados excluídos são socialmente inócuas. E o são por diversas razões, entre as quais destaca-se o fato de que não há exclusão real no modo de produção capitalista. Mesmo aquela parcela da população que “não é mais imediatamente necessária para a autovalorização do capital” (MARX, 1984. V.1-T.2, p.48 – grifo meu) possui, hoje, funcionalidades de diferentes ordens no sistema.
Também deve ser destacado o fato de que a chamada inclusão, quando ocorre, se dá de acordo com as necessidades e parâmetros dominantes, constituindo, assim, um processo que podemos denominar como inclusão consentida. Tal forma de inclusão oferece ao sistema-capital a perpetuação do exército de reserva, que assume diferenciadas configurações em cada fase de expansão e acumulação do capital. Não menos importante é a forma simbólica de controle social das frações da classe trabalhadora, que a crença na inclusão oferece às forças dominantes, no permanente trabalho de construção e manutenção da hegemonia.
A favor das teses da inclusão podem ser contrapostos argumentos que enumeram exemplos de indivíduos, ou de pequenos grupos, que obtiveram algum tipo de êxito em seus esforços de inclusão no sistema, em particular a partir de ações de caráter formativo. Tais casos, entretanto, confirmam a constatação de que o sistema-capital necessita de uma certa permeabilidade que lhe assegure a situação de hegemonia aqui referida. Nessa perspectiva, podemos afirmar que pequenos eventos de caráter inclusivo não promovem transformações substantivas nas condições de vida do conjunto da classe trabalhadora que, submetida a cada vez mais intensos processos de precarização das condições da existência, se torna objeto de ações focais, de medidas assistenciais ou de caráter filantrópico.
É a partir de pressupostos ético-políticos como os até aqui enunciados que se apresenta a necessidade de explicitar o fato de as promessas de inclusão pela educação se revestem ou de uma intencionalidade pouco ética ou de uma ingenuidade epistemológica que não resiste à análise estrutural da realidade.
Valendo-nos do materialismo histórico dialético podemos avançar na compreensão de uma constatação apresentada, em parte significativa da literatura acadêmica, como um paradoxo. Trata-se da enunciação que destaca o fato de que o mundo, particularmente em sua fase de globalização, embora com profundas assimetrias, produz, hoje, simultaneamente, mais riquezas e mais miséria e desigualdade. Entendemos que tal fato não constitui um paradoxo. Ao contrário, estamos apenas diante de uma decorrência da estrutura do sistema-capital o qual, cada vez mais, gera riquezas de caráter material e imaterial e as privatiza, em benefício próprio.
Nesse quadro, verifica-se que as condições de assimetria sócio-econômica estão, com maior ou menor intensidade, presentes entre países e no interior dos próprios países, mesmo aqueles que ocupam as posições dominantes no quadro hegemônico internacional. Tais assimetrias, entretanto, agravam-se sobremaneira em países situados em condições de subalternidade no mundo globalizado. É precisamente esse o caso do Brasil, ao qual, no quadro da divisão internacional do trabalho, foi destinado o papel de consumidor de ciência e de tecnologia desenvolvidas nos países dominantes.
Alguns indicadores podem, para os limites deste trabalho, constituir exemplos bastante expressivos do quadro de assimetria sócio-econômica em que estamos mergulhados no país, segundo indicações de Pochmann (2004). Dos 40 milhões de domicílios aqui existentes, 10 milhões são considerados insalubres e 2 milhões não possuem, sequer, energia elétrica. Aproximadamente 21 milhões de pessoas não têm acesso à água tratada. Das necessidades elementares aqui abordadas, cuja negação ao direito de acesso pode significar, por extensão, a negação do direito à vida, podemos passar para dados diretamente relacionados à hoje chamada sociedade do conhecimento e, neste campo, podemos destacar a informação de que, segundo a União Internacional de Telecomunicações, apenas 8,2% da população brasileira possuíam acesso a computadores em 2002.
Evidentemente, tais indicadores não foram produzidos pela baixa escolaridade da classe trabalhadora ou, mesmo, pelos mais de dezessete milhões de analfabetos do país. Não é demais lembrar que, desde o final dos anos de 1950, o educador Paulo Freire afirmava ser o analfabetismo um problema, mas que alfabetizar não representava a sua solução. O que se verifica, ao contrário, é o fato de que as condições de escolarização da sociedade brasileira constituem uma das mais claras expressões de nosso padrão estrutural de desigualdade.
A partir da década de 1990, as forças dominantes retomam, com ênfase, as teses da Teoria do Capital Humano, ressignificadas segundo as conveniências do padrão de acumulação flexível, ressaltando a importância, para o capital, da educação da classe trabalhadora. Assim, a educação passa a ser apresentada pelo discurso dominante como a chave para que o país se torne uma economia competitiva no quadro hegemônico internacional.
Diversas iniciativas são tomadas pelo Estado, sobretudo no âmbito da educação profissional e, com menor intensidade, no plano da elevação da escolaridade no nível de ensino fundamental, principalmente a partir de 1995. Tais iniciativas, referentes à educação da classe trabalhadora, entretanto, constituíram e constituem, sobretudo, um processo de distribuição de ilusões. Tanto pelo anteriormente exposto, quanto pelo fato de que a esmagadora maioria das iniciativas de elevação de escolaridade e de educação profissional apresenta baixa qualidade e se volta, sobretudo, para a execução do trabalho simples, que demanda precário grau de apropriação de fragmentos de conhecimentos científicos e tecnológicos.
Chegamos, assim, aos primeiros anos do século XXI, com claros indicadores de que nem a educação assegura, por si, o acesso ao emprego e, conseqüentemente, à inclusão no sistema-capital, nem o Estado assumiu, efetivamente, o compromisso com a universalização do direito à educação. Tal afirmação pode ser facilmente constatada por dados recentes. No que tange, especificamente, à questão da ocupação (sem que possamos questionar, aqui, o conteúdo do conceito) indicadores do IBGE informavam, no ano de 2005, que a taxa de desocupação da PEA de dez anos ou mais de idade, por anos de estudo, assim se configurava: 6%, sem instrução ou com até 3 anos de estudo, estavam desocupados; os que apresentavam escolaridade entre 4 e 7 anos de estudo apresentavam um índice de desocupação de 9,7%. Finalmente, daqueles que declararam ter 8 ou mais anos de estudo, 11,3% estavam desocupados. Como vemos, a desocupação não se reduz para os que apresentam maior escolaridade, ao contrário do insistentemente anunciado.
Em que pese a difusão, pelo Estado, da crença no valor intrínseco e isolado da educação, também não se verifica a necessária convergência entre o anunciado e as políticas efetivas no âmbito educacional. Para os limites deste trabalho, podemos valer-nos de dados do Ministério da Educação e do IBGE, acerca da situação de escolarização de jovens e adultos, que, por serem suficientemente eloqüentes, prescindem de maiores comentários para corroborar nossa argumentação. Como já mencionado, há no Brasil, atualmente, mais de dezessete milhões de pessoas, de quinze anos ou mais, analfabetas. Já a população brasileira, de quinze anos ou mais com menos de 4 anos de estudo, chega a um total de 31.831.178 de pessoas. Dessas, apenas 2.406.223 freqüentam a escola para a elevação de sua escolaridade. Uma escolaridade entre 4 a 7 anos de estudo é registrada por 36.087.339 pessoas, das quais somente 5.276.120 estão na escola (Fontes: PNAD/IBGE/2003 e Tabulações MEC/SECAD – 2004).
No que se refere, especificamente ao ensino médio, é importante destacar que, em 2003, apenas 34,7% da população entre quinze e dezessete anos estavam na escola e que o ensino médio era ofertado em apenas 11,5% dos estabelecimentos de ensino do país, segundo o Censo Escolar do Ministério da Educação de 2003. Embora não tratemos, especificamente, do ensino superior, não é excessivo ressaltar o fato de que de acordo com o mesmo Censo, apenas 7,4% da população entre dezoito e vinte quatro anos estavam matriculados nesse nível de ensino (Fonte: PNAD/IBGE/2003).
O acompanhamento das políticas públicas de educação do atual governo evidencia o fato de que muito pouco foi efetivamente realizado no sentido de universalizar a educação básica, no Brasil. Entretanto, várias iniciativas focais foram implementadas, atendendo a pequenos contingentes populacionais, aos quais são oferecidas possibilidades de elevação de escolaridade, com caráter precário e aligeirado, porém anunciadas como portadoras potenciais de inclusão.
Especificamente no que se refere à juventude, cuja importância é com insistência anunciada nos discursos dominantes, temos, hoje, o registro de aproximadamente cinqüenta programas, distribuídos por dezenove ministérios, todos predominantemente marcados pelo caráter focal e emergencial. Aqueles relacionados, direta ou indiretamente, à formação profissional estão centrados na formação profissional inicial, que, de acordo com o Decreto 5.154, de julho de 2004, se dá independentemente do nível de escolaridade, o que permite colocar em plano secundário a terminalidade da educação básica.
A título de ilustração, podemos destacar, no âmbito do Ministério do Trabalho e Emprego, o Programa Jovem Empreendedor, que em 2004 apresentava a singela meta de atendimento a quatro mil jovens entre dezesseis e vinte e quatro anos, a serem estimulados a desenvolver atividades autônomas ou se dedicar a pequenos negócios, valorizando as teses do auto-empreendedorismo. Também o Programa Primeiro Emprego, atendendo a público de mesma idade que o anterior, é considerado, na área, um dos grandes fracassos do governo federal, seja pela pouca capacidade de sensibilização do empresariado, seja pela gradativa redução dos recursos a ele destinados.
O Ministério da Educação é responsável por outras iniciativas focais, fragmentadas e de metas muito aquém do contingente populacional demandante. Entre elas podem ser destacados o Projeto Escola de Fábrica (RUMMERT. 2005), a partir do qual são abertas salas de aula em empresas de qualquer tipo, para que o capital treine jovens, de dezesseis a vinte quatro anos, de acordo com suas necessidades imediatas, e o Programa de Integração Social do Jovem (Projovem) que promete, no prazo de um ano, garantir elevação de escolaridade, formação profissional inicial e capacitação para atuação comunitária. Entre as opções de formação profissional oferecidas pelas duas iniciativas, encontramos a oferta de cursos para a execução de trabalhos domésticos, reparos em costura etc, que explicitam a perspectiva de naturalização da pobreza e de ações que visam manter os trabalhadores em situação de permanente subalternidade.
Pretendeu-se apresentar, aqui, alguns dados sobre da situação educacional do país, com o objetivo de explicitar o fato de que, a despeito de recorrentes argumentos, não é a educação por si e em si, que poderá reverter, por exemplo, o próprio quadro educacional brasileiro, expressão clara de um modelo sócio-econômio gerador de absurdas desigualdades. Também destacou-se o fato de que não existem, até hoje, consistentes e reais intenções de universalizar a educação básica a partir de iniciativas que assegurem a todos, sem distinção de classe, formação geral, acesso às bases do conhecimento científico-tecnológico e formação política. Esses pilares da escola unitária estão longe da classe trabalhadora e assim continuarão enquanto a perversa lógica do sistema-capital prevalecer sobre os direitos inerentes a todos os seres humanos.
Referências Bibliográficas
BRASIL, Decreto nº 5.154 de 23 de julho de 2004. Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2004-2006/2004/Decreto/D5154.htm
IBGE. Síntese de indicadores sociais – 2004. Rio de Janeiro: IBGE, 2005 (Não incluída a população rural da Região Norte do país)
Marx, Karl. O Capital. Capítulo XIII. V.I. Tomo 2. São Paulo: Abril Cultural, 1984.
Pochmann, Márcio (e outros) Atlas da exclusão social. São Paulo: Cortez, 2004.
Rummert, Sonia Maria. Projeto Escola de Fábrica – atendendo a “pobres e desvalidos da sorte” do século XXI. Perspectiva: Revista do Centro de Ciências da Educação da Universidade Federal de Santa Catarina. Florianópolis. V.23, n.2 – junho/dezembro 2005. p.303-323.
Fonte: Revista Espaço Acadêmico. http://www.espacoacademico.com.br