O Romance Político Contemporâneo

Por Florestan Fernande

O romance, como fenômeno cultural que é, tem sua evolução delimitada e determinada pela própria transformação da sociedade. Exemplo disso é a preocupação dos romancistas pelas massas, dando origem ao que muitos chamaram, erroneamente, de romances populistas e até romances intencionais de tese e romances sociais, que no fundo é uma das consequências das modificações das sociedades ocidentais e sua repercussão nas esferas da nossa cultura.

Estes romances, todavia, correspondem ao advento das massas nos seus primeiros momentos e porisso atualmente tem, para nós, um valor quase só documentário. Hoje, o campo do romance moderno, quando se propõe servir como documentação da vida humana, é muito mais amplo. Ele tenta fixar, sobretudo, o aspecto atual do fenômeno, isto é, a luta que se trava em quase todos os países entre as massas e a classe dominante – a burguesia. Como estes elementos contam com o poder organizado, o poder político – o Estado – essa luta se apresenta principalmente como luta política. E o romance se apresenta caracteristicamente como romance político, tal como Steinbeck, Silone, Ehrenburg, etc. Predominantemente o seu material, incluindo não só temas relacionados às aspirações das massas e seu modo de vida, incompatível com seu estado de fato e a civilização moderna, como a luta pelo poder, as transformações reacionárias operadas na própria organização política da sociedade, por meios artificiais, como tentativas violentas e desesperadas de defesa (assim como o fascismo na Itália e o nazismo na Alemanha), e ainda o aproveitamento desonesto das forças e ideias da próprias massas, pelos mesmos políticos da classe dominante, visando desviá-las de seus objetivos e impedir a transferência do poder. Em certos aspectos, êsses autores enriquecem o romance, desviando-o um tanto de suas tendências e reduzindo um pouco a importância do que se pode chamar própriamente de ficção. Tornas-e cada vez mais um prolongamento ou uma continuação da vida que uma simples fuga pela imaginação. Porisso, é um romance sobretudo dinâmico, envolvendo ação no duplo sentido – no que nos vem da tradição romanesca e no que se refere à própria vida – afastando-se muito dos quadros estáticos do romance retratista ou paisagista, apesar de objetivo, como “espelho da vida”.

Nesse sentido o trabalho de Ilya Ehrenburg – “A Queda de Paris” – tem grande valor para nós. Muitos, mesmo, dizem que não se trata própriamente de romance, mas de um ampla reportagem histórica ou política. Mas é claro, tornando-se um prolongamento ou uma continuação da própria vida, o romance tende cada vez mais a tornar-se reportagem, desdobrando-se no fundo em vários pequenos romances ou novelas, mais ou menos concatenadas, reaparecendo aqui, sumindo ali. Enredo, unidade e progresso, ação romanesca, etc., continuam a servir como critérios na análise de um romance; mas, dia a dia perdem o seu valor lógico e crytico, servindo melhor para autores do passado, tal como o belo o bom gosto, etc., deixando de ter mesmo também muito de seu valor técnico. É essa uma das consequências do romance moderno, dinâmico e em certos aspectos cinematográfico.

Por isso o romance de Ilya pode ser chamado como quiserem: romance histórico – situa-se na fase que vai de 1935 até à “debacle” da França; social – analisa os diversos grupos operários e dirigentes e põe em evidência a mentalidade de cada um; político – trata da luta pelo poder e da luta pela preservação nacional; “populista” – porque se prende muito à necessidades das massas; e o que mais se queira. O romance contemporâneo, tentando sobretudo reunir muito material e principalmente material humano, torna secundária e sem importância essa questão de categorias. É uma reportagem, e uma reportagem pode ser ao mesmo tempo tudo isso.

A técnica de Ehrenburg é simples: apresenta sucessivamente todos os personagens principais e o cenário – o fundo social, político, econômico e moral – destacando sobretudo o essencial deste e as idéias daqueles. Depois segue, simultaneista, contrapontisticamente, o destino de cada um. Mas não há, contudo, predomínio de uma “novela” sobre outras… Denise, que no inicio parece uma personagem secundária, acaba revelando-se um dos centros do romance; André vive mais ou menos até ao fim, mas não se salienta como seria de esperar, e inesperadamente Michaud torna-se, praticamente, o personagem principal – com alguns traços autobiográficos, mesmo.

Simbolicamente é possível, entretanto, estabelecer-se uma hierarquia. Teríamos, de um lado, o desaparecimento do mundo aniquilado e sem raízes no presente, de Desser, Jeanette e do instabilíssimo Lucien Tessa o intelectual que se redime pela aniquilação do passado e pela aceitação trágica da autodestruição. Acima dêles teríamos Pierre Michaud e talvez André, que sente sem compreender, mas luta bravamente; e também Denise e a maravilhosa Agnés (todos os que constituem as raizes da vida futura). O plano baixo e humanamente inferior é constituido pelo rebotalho político dos Paul Tessa, dos Villard, dos Grandel, dos Breteuil, dos Weiss, dos Montigny prontos sempre para a especulação, para trair, servindo a reação e com medo do espantalho das reivindicações do povo. É, pois, bem uma galeria contemporânea, sem lhe faltar acentos verdadeiramente intelectualísticos e até um certo sabor de ligação afetiva aos valores que estão em crise. Os tipos apresentados, porém, salvam-se quase todos – e também não poderia ser diferente dado o caráter de seu romance.

Um dos aspectos mais interessantes do livro é o que se refere à parte destinada ao “amor”. Parece que este ganha em extensão no que perde em profundidade, na literatura moderna. Se não prende do começo ao fim, como acontecia antes, pelo menos o número de novelas garante-lhe a possibilidade de aparecer continuamente. Assim, mesmo, no romance de Ilya, o embate travado entre o amor novelesco e o fundo político termina com a predominância deste. Passa para um plano especial, mas não absorvente; quase secundário, porém, seria melhor dizer equitativo. Há alguns “flirts” e os casos passageiros de Lucien mas, o que fica de novelesco não é romântico: as ligações platônicas de André e Jeanette e o reflexo nelas de nossa vida desorganizada e em crise, tornando impossível ir além: talvez seja uma posição falsa, essa de Enrenburg; todavia, para dois temperamentos assim tão instáveis, o amor, para ser solução, precisa ter muito de ideal e de irrealizável – é o peso de sua herança cultural e da vida mesma dos dois, com a guerra terrível contra a Alemanha e a desagregação política de permeio. O outro lado da Jeanette se revela com Desser, e na insegurança de ambos, uma espécie de afeição como auxílio mútuo é o que fica; biológicamente com suas relações com Lucien, Marechal e outras mais passageiras. Em todo o caso, o “romance” de Jeanette e André está deslocado do meio. O de Michaud e Denise é muito mais real e humano, batendo ali dois corações. Ele dura até o fim mas a situação não é para romancinhos de amor – há as greves, a guerra na Espanha, a guerra contra a Alemanha. E o romance de amor fracassa novamente. O mesmo acontece com o de Agnés e Pierre. Não passa, pois de acidente.

O que fica e domina todo o livro é a vida na França – em certos aspectos de Paris – de 1935 até a invasão alemã. A luta dos operários, a traição da “Frente Popular” aos seus princípios, as manobras da reação, as do facismo e do nazismo, a traição do govêrno, a fuga da sociedade requintada e o sacrifício do povo – por fim a capitulação temporária diante do tacão nazista. E também a repulsa viva do povo francês, à organização da propaganda subterrânea e a grande esperança de um mundo melhor de Denise, Michaud e de Claude.

Fonte:
Folha da Manhã, 27 de julho de 1944. Neste texto foi mantida a grafia original