O Regime de Progressão Continuada e o Desafio da Democratização do Ensino
Por Debora Cristina Jeffrey
Doutoranda em Educação (FEUSP), Mestre em Educação (UNICAMP). Professora de Cursos de Licenciatura e Pedagogia da UNESP (São José do Rio Preto) e UNIRP (Centro Universitário de Rio Preto)
A exigência de alterações profundas nas concepções de ensino-aprendizagem, avaliação, além da necessidade de mudanças organizacionais no interior das escolas, levou à constituição de um consenso negativo a respeito do regime de progressão continuada na rede, principalmente com relação à movimentação dos alunos no sistema escolar, pois de acordo com o documento Planejamento 2000, elaborado pela SEE-SP (2000):
[…] se antes, ao final de cada ano letivo, aprovava-se ou reprovava-se os alunos com base no desempenho alcançado, espera-se agora, que a escola encontre maneiras de ensinar que assegurem a efetiva aprendizagem de sua clientela e conseqüentemente, seu progresso intra e interciclos. (SEE- SP, 2000, p.7).
Esta mudança no processo de avaliação do desempenho e rendimento escolar do aluno, intra e interciclos, foi considerada para alguns um avanço, ao propiciar a ampliação das oportunidades educacionais; para outros um retrocesso com implicações no rebaixamento da qualidade de ensino e no processo de aprendizagem.
Para Oliveira (1999), ao analisar a formulação das políticas educacionais estruturadas pela SEE-SP, entre os anos de 1995 e 1998, a implantação do regime de progressão continuada na rede pública estadual de ensino obteve apoio, inicialmente, com relação aos seus princípios, pelos sindicatos do magistério (APEOESP, UDEMO e APASE), apesar destes apontarem as implicações negativas na qualidade de ensino, caso fosse implementada como uma medida de promoção automática, preocupada somente, em corrigir o fluxo escolar.
Com relação à opinião pública, segundo o mesmo autor, esta parecia pouco compreender a proposta de ciclos, devido à falta de debate público, contribuindo para que vinculassem a idéia de progressão à de promoção automática, pois a medida, do modo como foi veiculada, permitiria a aprovação de alunos que não conseguiram aprender durante todo o ano letivo, diminuindo o estímulo aos estudos, devido o fim das reprovações.
Quanto aos professores, a proposta é aceita, em um primeiro momento, mas com certa cautela, segundo Paro (2000), ao julgarem necessária a adoção de outras medidas capazes de evitar que o aluno passasse de ano “sem saber”. A esse respeito, o mesmo autor evidencia, que para muitos professores, o problema que o regime de progressão continuada lhes apresenta, encontra-se na possibilidade de aprovação do aluno e não em seu aprendizado, considerando que:
O que se alega, às vezes, é que o aluno não aprendeu durante todo esse tempo, entre outros motivos, porque não tinha o estímulo (ou a ameaça) da reprovação, ou seja, ciente de que passará de ano sabendo ou não sabendo, o aluno não estuda e, por isso, não aprende. No fim, parece que tudo se resume na adoção da reprovação como um recurso pedagógico. (Paro, 2000, p. 277).
Embora o regime de progressão continuada não tenha obtido uma aceitação unânime devido as resistências à proposta, para Neubauer (1999) o impacto dessa medida, sobre os índices de reprovação e evasão, foram considerados “extremamente positivos” do ponto de vista do tempo, do custo-benefício:
Em 1998, evadem e são reprovados 1 milhão de alunos a menos do que se observava em 1994, quando, na rede estadual de São Paulo, havia 1,6 milhão de alunos evadidos e reprovados. (Neubauer, 1999, p.183).
O regime de progressão continuada, portanto, apresenta resultados positivos do ponto de vista do tempo, custo-benefício, e nesta perspectiva, o caráter quantitativo é valorizado, pois de acordo com Mello (1979), este deve sempre ser admitido como um caminho inicial para gerar a qualidade de ensino almejada. Deste modo, a preocupação em garantir a qualidade de ensino no âmbito governamental perpassa pela necessidade de regularização do fluxo escolar (expansão quantitativa) atrelada ao controle dos resultados produzidos pela escola (eficiência), via testagem sistêmica (Sistema de Avaliação do Rendimento Escolar do Estado de São Paulo – SARESP).
Portanto, a viabilização da proposta, de seus conteúdos e possíveis impactos no espaço e entre a população escolar, tornam-se questões secundárias, que devem ser atribuídas como uma responsabilidade de cada unidade de ensino, pois com a implementação do regime de progressão continuada deve existir em:
[…] cada escola uma proposta e a cada proposta uma solução, sem perder de vista que o acesso ao conhecimento é um benefício social a que crianças e jovens têm direito e é razão de ser da própria escola. (SEE-SP, 2000, p.9).
A responsabilidade de cada unidade escolar em viabilizar a proposta do regime de progressão continuada, definir um projeto pedagógico articulado tanto à nova medida como à realidade da escola, minimizando seus possíveis impactos, é assegurada, a partir da concessão pela SEE-SP, de uma maior autonomia pedagógica, financeira e administrativa.
Para Neubauer (1999), a concessão desta maior autonomia tem como propósito facilitar a tomada de decisões acerca do projeto pedagógico da escola que deve definir, além disso, o tratamento a ser dado aos conteúdos curriculares; os métodos de ensino empregados; o uso mais adequado do tempo e do espaço físico; o gerenciamento dos recursos humanos e materiais que recebem para realizar o projeto, considerando que:
A autonomia, entretanto, tem como contrapartida a responsabilidade e o compromisso. Assim, deve ser acompanhada de um sistema criterioso de avaliação dos resultados da aprendizagem dos alunos e de condições para que as escolas respondam por eles. (Neubauer, 1999, p. 174).
Além da autonomia, a avaliação torna-se outro principal elemento norteador do regime de progressão continuada, pois cabe à escola a responsabilidade de estruturar um projeto pedagógico capaz de garantir o acesso, a permanência e o sucesso escolar do aluno, sendo avaliada pela SEE-SP com relação ao cumprimento dos objetivos educacionais e resultados de aprendizagem dos alunos. Para Hutmacher (1995), esta nova forma de regulação caracteriza-se por um controle baseado na conformação dos objetivos e afinidade de ação entre as escolas, pois:
Neste novo modelo de regulação, o poder político-administrativo define as finalidades e os objetivos a atingir, mas transmite o mínimo possível de directivas, afectando um orçamento global ao estabelecimento de ensino. No interior deste quadro, os profissionais usufruem de uma grande liberdade para encontrar as modalidades, as vias e os meios para realizar os objetivos. Os estabelecimentos prestam contas de seus resultados através de uma avaliação a posteriori, que mede a distância entre os resultados e os objectivos (e não a conformidade com as directivas), cuja interpretação integra parâmetros do contexto. (Hutmacher, 1995, p.56, grifos do autor).
Assim, com relação ao regime de progressão continuada, a SEE-SP não só orienta os encaminhamentos ou elementos necessários à organização escolar, como também avalia os resultados educacionais obtidos pela escola, introduzindo modalidades avaliativas diferenciadas que, segundo Barreto (2001), ora centra-se na oferta dos indicadores educacionais de qualidade de ensino, valorização do produto da aprendizagem, focalização de alguns aspectos cognitivos do currículo, através da realização de avaliações externas, como o SARESP; ora pautam-se no processo de aprendizagem, e na capacidade da escola em trabalhar a diversidade dos alunos.
O regime de progressão continuada, enquanto uma medida adotada para corrigir o fluxo escolar no Ensino Fundamental, é implementada na rede de ensino em um cenário educacional de redefinições do papel da avaliação e do conceito de qualidade de ensino.
Assim, se a avaliação, de acordo com a autora retratada anteriormente, configura-se entre perspectivas qualitativas e quantitativas de qualidade de ensino, contribuindo para o aumento das incertezas e ansiedades entre os professores, dificultando o desenvolvimento de práticas avaliativas de caráter formador, o regime de progressão continuada apresenta-se como mais um elemento de indefinição da prática educativa no interior da escola, ao colocar em questão seu papel social, o processo de aprendizagem, e aquisição do conhecimento, fatores que trouxeram inúmeras implicações nas unidades escolares.
Contudo, embora o regime de progressão continuada tenha ampliado as demandas educacionais das escolas é preciso considerar a representatividade da rede estadual de São Paulo na oferta do ensino fundamental e as implicações desta medida sobre a população e o cotidiano escolar. De acordo com dados do Censo Escolar 2002, respondia até aquele ano por 54,8% das matrículas do ensino fundamental, sendo destas 40,4% de matrículas da 1ª a 4ª séries e 69, 7% de 5ª a 8ª séries. Com relação ao total de alunos do Ensino Fundamental, o Estado de São Paulo possuía 5.994.936 alunos, dos quais 50,8% eram atendidos no ciclo I e 49,2% no ciclo II.
Estes dados, divulgados pelo Censo Escolar 2002, apontam ainda o predomínio da rede pública estadual no atendimento ao Ensino Fundamental, que se encontra totalmente universalizado. Porém, alguns problemas como a distorção idade-série, as taxas de reprovação e abandono, ainda são questões que precisam ser solucionados.
Entre 1998 e 2002, a defasagem idade série reduziu consideravelmente: a taxa da 1ª série caiu de 5,8% para 2,8% em 2002; a taxa da 8ª série diminuiu de 42,4% em 1998 para 27,9%. Para a SEE-SP (2002), esta redução da taxa de defasem idade-série “é um poderoso indicador da democratização do acesso e da permanência dos jovens no ambiente escolar” com reflexos no atendimento da população, tais como: a) aumento da matrícula no período diurno; b) descongestionamento progressivo das classes e diminuição das matrículas nas séries iniciais; c) aumento de estudo da população.
Com relação à evolução das taxas de aprovação, reprovação e abandono, da rede de ensino do Estado de São Paulo, o levantamento realizado pelo Centro de Informações Educacionais – CEI (2003) apontou os seguintes dados, entre 1998 e 2002:
Taxas de Aprovação, Reprovação e Abandono – rede estadual de São Paulo 1998/2002 | |||
Ano | Aprovação | Reprovação | Abandono |
1998 | 93,4 | 2,0 | 4,6 |
1999 | 92,2 | 3,3 | 4,5 |
2000 | 91,0 | 4,3 | 4,7 |
2001 | 91,8 | 5,1 | 3,1 |
2002 | 92,0 | 5,1 | 2,9 |
Fonte: SEE-CIE (2003).
Se o contexto educacional da rede estadual de ensino apresentou uma evolução nas taxas de matrícula, atendimento com a universalização do Ensino Fundamental, os indicadores de rendimento apontam uma pequena redução das taxas de aprovação, reprovação, enquanto o abandono tem queda considerável, entre os anos de 1998 e 2002, período da implantação do regime de progressão continuada.
No ano de 1998, as taxas de aprovação são de 93,4% e reprovação 2%, representando, no período analisado, os melhores índices apresentados, pois a partir de 1999, há um crescimento inverso: o da reprovação. Assim, considerando que o regime de progressão continuada deveria reduzir a reprovação, nota-se que este processo não se consolida, permanecendo estável, entre os anos de 2001 e 2002, com uma taxa de 5,1%.
Inversamente a esta situação, as taxas de abandono mantêm a tendência de queda progressiva, em 1998, a taxa de 4,6% cai para 2,9%, em 2002. Esta redução pode ser compreendida como um reflexo do programa de regularização do fluxo escolar: Classes de Aceleração; e de políticas compensatórias do governo Federal, como: Bolsa Escola, Renda Mínima e Programa de Erradicação do Trabalho Infantil (PETI), que incentivaram a permanência tanto dos alunos com sucessivas reprovações como daqueles que viviam em situações risco.
Porém, o crescimento das taxas de reprovação entre 1999 e 2002 pode ser justificado através de dois fatores:
a) Introdução da avaliação de ciclo implementada pelo SARESP (Sistema de Avaliação do Rendimento Escolar do Estado de São Paulo) no ano de 2001, que analisou o ciclo I e ciclo II do Ensino Fundamental, e influenciou, diretamente, na avaliação final de desempenho do aluno, aumentando a taxa de reprovação na 4ª série de 6,5% em 2000, para 10%, em 2001; e na 8ª série de 5,9%, em 2000, para 8,6, em 2001.[1]
b) Problema de adaptação das escolas as mudanças necessárias ao êxito da proposta do regime de progressão continuada.
Este segundo ponto é reconhecido pela Secretária de Educação, Rose Neubauer, durante entrevista ao jornal O Estado de São Paulo, de 01 de Outubro de 2000, ao declarar que:
Em 98, as escolas deixaram todo mundo passar e nós sabíamos disso, mas em 99 já começou a mudar a situação. (Neubauer, 2000).
Além disso, na mesma entrevista, a Secretária afirma que o aparato para a recuperação das defasagens do aluno existe, mas, nem todas as escolas “estão se apropriando dele, porque continuam com a prática tradicional”. Por isso, a Secretária atribui os problemas de rendimento dos alunos às escolas, que não estão assumindo a responsabilidade para se organizarem e assegurarem uma avaliação séria.
A fala de Neubauer, a respeito da responsabilidade das escolas sobre o rendimento dos alunos, encontra-se expressa no documento: Planejamento 98, elaborado pela SEE-SP (1998), que atribui às unidades escolares a assumirem a própria organização de suas atividades escolares de modo que sejam capazes de superar o fracasso escolar, tendo em vista que:
Cada escola conhece ou pode conhecer seus problemas concretos e a força que deve mobilizar para resolvê-los, com a participação direta de sua equipe com envolvimento do sistema. Assim, a cada escola uma proposta e, a cada proposta, uma solução, sem perder de vista que o acesso ao conhecimento é um benefício social a que crianças e jovens têm direito e é razão de ser da própria escola. (SEE-SP, 1998, p.4).
A transferência de responsabilidade para a escola resolver seus próprios problemas com autonomia, não é um acontecimento casual influenciado, diretamente, pelo regime de progressão continuada, mas por um processo decorrente da reforma do Estado, que na área da educação, de acordo com Martins (2001), configurou-se pela:
a) Flexibilização das instituições, tendo em vista a adaptação às demandas de seus usuários;
b) Desconcentração do poder e descentralização de sua gestão, com a delegação da autonomia;
c) Relação entre qualidade da educação e verificação do desempenho da rede de escolas, a partir da responsabilização de seus principais atores;
d) O uso de novas tecnologias pela escola na gestão do sistema e das unidades.
Para a mesma autora, esta nova configuração no processo de gestão da educação, no Estado de São Paulo legitima-se, não pela delegação da autonomia, mas, via delegação de normas e procedimentos a serem cumpridos, representando um paradoxo, pois ao mesmo tempo em que as medidas legais e orientações normativas são implantadas, caso do regime de progressão continuada, incentivando o exercício da autonomia escolar para a elaboração coletiva do projeto político pedagógico, são estabelecidos rigorosos procedimentos de organização das escolas, considerando:
A idéia mágica de que bastam novas normas para que a realidade se transforme automaticamente, via de regra, tem constituído o cerne da política educacional paulista. No entanto, os atores responsáveis por sua materialização vêm promovendo a lucidez necessária para a gestão da escola pública, (re) significando o discurso oficial que lhes imputa responsabilidades e lhes outorga uma autonomia normativa. (Martins, 2001, p.428).
A re-significação do discurso oficial, analisada pela autora, que tem imputado responsabilidades e outorgado uma autonomia normativa às escolas, com relação ao regime de progressão continuada, pode ser destacado através da resistência à proposta; pelo cumprimento de rotinas burocráticas que dificultam o trabalho coletivo no espaço escolar, diante das novas imposições e mudanças necessárias para a concretização da medida; falta de condições para a realização de um trabalho diversificado.
Tais fatores comprometem, assim, o propósito do regime de progressão continuada de reduzir a reprovação, ampliar as oportunidades educacionais e garantir a qualidade da educação com eqüidade, pois os rigorosos procedimentos de organização da escola, as inúmeras medidas legais e orientações normativas, representam um entrave à proposta, dificultando, assim, uma alteração na cultura escolar seriada e nas práticas escolares.
[1] – Levantamento realizado pela CIE/SEE-SP e divulgado no documento: Desempenho Escolar da Rede Estadual do Estado de São Paulo (2003).
___________
Referência Bibliográfica
BARRETTO, E. S. S. A avaliação na educação básica: entre dois modelos. Educação e Sociedade, n.75, p.48-66, ago.2001.
HUTMACHER, W. A escola em todos os seus estados das políticas de sistemas às estratégias de estabelecimento. In: NÓVOA, A. As Organizações Escolares em Análise. 2ª ed. Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1995.
MARTINS, A. M. A Autonomia Outorgada: uma Avaliação da Política Educacional do Estado de São Paulo (1995-1999). Ensaio, v. 9, n. 33, p. 415-442, out./ dez. 2001.
MELLO, G. N. Fatores intra-escolares como mecanismos de seletividade no ensino de 1º Grau. Educação e Sociedade, n.2, p.70-78, jan.1979.
NEUBAUER, R. Descentralização da educação no Estado de São Paulo. In: COSTA, V. L. C (Org.). Descentralização da Educação: novas formas de coordenação e financiamento. São Paulo: FUNDAP: Cortez, 1999, p. 168-187.
OLIVEIRA, S. R. F. Formulação de Políticas Educacionais: um estudo sobre a Secretaria de Educação do Estado de São Paulo (1995-1998). 1999. Dissertação (Mestrado em Educação) – Faculdade de Educação. Universidade Estadual de Campinas.
O ESTADO DE SÃO PAULO. Secretária diz que responsabilidade da escola. Estadão on line. Domingo, 01 de Outubro de 2002.
PARO, Vitor Henrique. Porque os professores reprovam: resultados preliminares de uma pesquisa. Ensaio, v. 8, n. 28, p. 273-282, jul./set. 2000.
SECRETARIA DE ESTADO DA EDUCAÇÃO DE SÃO PAULO. Escola de Cara Nova: Planejamento 98 (Progressão continuada). São Paulo: SEE, 1998.
_____. A Construção da Proposta Pedagógica da Escola: A Escola de Cara Nova / Planejamento 2000. São Paulo: SEE, 2000.
_____. Centro de Informações Educacionais. Censo Escolar 2002: Dados Preliminares. Boletim Informativo, ano I, n. 1, ago. 2002.
_____. Falando sobre taxas de atendimento no Estado de São Paulo. Boletim Informativo, ano I, n. 4, set. 2002.
______. O que é defasagem: a defasagem idade-série na rede estadual entre 1998 e 2002. Boletim Informativo, ano I, n. 5, out. 2002.