Reforma agrária? Que reforma?
Publicado originalmente na página do jornal Passa Palavra em 13 de setembro de 2012
Se consideramos apenas as posições tomadas nos congressos do Partido Comunista Brasileiro (PCB) e as ações governamentais, a percepção da existência de uma questão agrária no Brasil consolidou-se na década de 1950. Mas a reflexão sobre a questão agrária é bem anterior. Por parte da burguesia local, vem pelo menos desde os debates do Barão de Mauá com seus pares aristocratas do Senado quanto à “vocação” do Brasil, se agrária ou industrial. Este debate segue nos anos 1930 com os corporativistas — Roberto Simonsen e congêneres — e Octávio Brandão como voz isolada no PCB. De todo o modo, embora estrivesse colocada desde muito antes, foi a partir do fim da Segunda Guerra Mundial, em especial com o avanço da industrialização, que a questão agrária passou a ter mais peso. A concentração da propriedade da terra nas mãos de poucos latifundiários seria a causa maior da miséria, da fome, da doença e do analfabetismo no meio rural, que até então constituía a grande maioria da população nacional (em torno de 69% em 1940). Tais fatos levavam também a identificar o latifúndio como responsável pelo atraso do desenvolvimento do país. A imposição da miséria, excluindo o maior contingente populacional do mercado, bloqueava o desenvolvimento da industrialização.
Deste modo, a Reforma Agrária entrou definitivamente na pauta política. As lutas e mobilizações dos camponeses ganharam visibilidade e obtiveram o apoio de partidos, sindicatos e grupos diversos. A Reforma Agrária se transformou em um tema deveras importante e foi um dos motes para o golpe civil-militar de 1964. Naquela época o governo do general Castelo Branco criou a primeira lei de Reforma Agrária, o Estatuto da Terra. E ainda que este, tal qual a Reforma, tenha permanecido letra morta, isso não impediu que a Reforma Agrária, com a aplicação do estatuto — enquanto seu instrumento legal —, fosse a principal reivindicação do movimento rural.
Mas por que motivo o capitalismo precisa de uma Reforma Agrária? Será que precisa mesmo? E, no caso afirmativo, de que tipo de reforma agrária? O que é que se quer dizer com Reforma Agrária? Uma mobilização de massas com aspectos radicais e igualitários, ou qualquer tipo de mudança relativamente profunda da sociedade rural? É uma revolução ou uma reforma? E, se for uma reforma, que tipo de reforma?
Será indispensável uma Reforma Agrária para a modernização da agricultura?
As cartilhas de formação dos militantes costumam afirmar como uma evidência que sem Reforma Agrária não há modernização da agricultura, baseando-se no inevitável exemplo russo. Na Rússia, porém, foi a própria monarquia que começou por se modernizar no final do século XIX, e a extinção da servidão e as reformas que se seguiram tiveram como efeito o desenvolvimento do capitalismo nos campos, como Lenin bem estabeleceu na principal obra econômica da sua juventude. É verdade que a tradicional comunidade de aldeia continuava a ser um importante quadro organizativo, mas parecia inelutável que o capitalismo rural a corroesse a prazo. O principal fator de inércia na Rússia não foi o campo, mas a hierarquia política, o czarismo. É certo, porém, que as derrotas militares russas na primeira guerra mundial e a crescente dissolução do exército em 1917 aceleraram a Reforma Agrária, mas conduzida agora a partir da base. Nos anos seguintes o acesso generalizado dos camponeses à propriedade da terra apressou e ampliou o processo de concentração econômica, o que permitiu que as contradições sociais no campo chegassem, em dez anos, de 1917 até 1928, a um tal ponto que facilitou a luta generalizada contra os kulaks, quer dizer, os camponeses ricos, e permitiu a estatização da agricultura. A coletivização stalinista da agricultura não foi uma mera operação burocrática, como geralmente é apresentada, mas uma segunda revolução, onde a iniciativa popular foi drasticamente reduzida e canalizada dentro dos limites marcados pelo bureau político. Por isso a reforma agrária conduzida pelo próprio campesinato em 1917-1918 foi dirigida politicamente pelo Partido Socialista Revolucionário de Esquerda, que era então um aliado dos bolchevistas, enquanto a coletivização stalinista da agricultura foi conduzida pelo Partido Comunista, quando os socialistas-revolucionários de esquerda já tinham sido dizimados há dez anos.
Neste contexto é também inevitável o exemplo da China, onde foi necessário o Partido Comunista conduzir uma Reforma Agrária para que pudesse ocorrer a modernização econômica e a industrialização.
Mas estes dois casos serão a regra ou serão exceções? Ou será que o desenvolvimento histórico é muito mais complexo e que não existe aqui uma regra única? Os brasileiros geralmente interessam-se pouco pelos outros países, mas o Brasil está no mundo e sem entender o mundo não se entende o Brasil. Vejamos o que nos mostram outros exemplos.
As revoluções inglesa e francesa, respectivamente dos meados do século XVII e do final do século XVIII, foram em grande medida revoluções rurais que criaram uma burguesia camponesa e desenvolveram o proletariado agrícola. Mas estas revoluções ocorreram de maneira muito diferente. Na Inglaterra a revolução do século XVII não liquidou a nobreza, mas foi a nobreza que se tornou comercial e industrial. Ou seja, a mudança econômica efetuou-se na Inglaterra mediante uma aparente continuidade social.
De início, podia imaginar-se que o mesmo fosse acontecer na França, como tenderia a assinalar o aparecimento da fisiocracia. Com efeito, é significativo que a fisiocracia, que foi a primeira teoria moderna da economia e defendeu a primazia econômica do campo e a modernização econômica rural, tivesse pretendido modernizar a monarquia e não fazer uma revolução. Mas, como se sabe, a história teve outro curso e no final do século XVIII ocorreu na França uma profunda revolução social com uma ampla componente rural. Ora, no século XIX o desenvolvimento econômico da França foi mais retardatário do que o britânico e ficou ultrapassado pelo alemão.
Bastam estes exemplos para devermos pensar duas vezes, ou mesmo três vezes, antes de associarmos reforma agrária e desenvolvimento econômico. E as dúvidas não param aqui, porque é significativo que o verdadeiro arranque econômico da França se tivesse operado depois de 1814, com o regresso da monarquia. A revolução francesa no campo havia favorecido os notables, quer dizer, as pessoas mais ricas das aldeias, e estes médios proprietários camponeses que se beneficiaram com a revolução não aceleraram nem facilitaram o desenvolvimento capitalista; pelo contrário, constituíram um entrave. Por seu lado, os camponeses que se haviam revoltado contra o rei e contra a nobreza tinham-se revoltado também contra as medidas pró-capitalistas tomadas no final da monarquia. Em suma, a revolução atrasou o desenvolvimento do capitalismo francês relativamente ao capitalismo britânico.
Mais flagrantemente ainda, na Alemanha a modernização econômica e a industrialização foram feitas com os Junkers, os grandes proprietários fundiários da nobreza de tradição feudal, e não contra eles. Os Junkers não atrasaram a industrialização, mas colaboraram com ela. Do mesmo modo, no final do século XIX o Japão operou uma rápida passagem ao capitalismo e um desenvolvimento econômico acelerado sem proceder a nenhuma Reforma Agrária.
Um caso bastante mais complexo é o dos Estados Unidos. Não parece que os estados escravistas do sul tivessem prejudicado o desenvolvimento econômico. Pelo contrário, já que o regime de plantação do algodão para exportação incentivou o crescimento do país e a industrialização. Os estados do nordeste comercializavam parte do algodão do sul e, além disso, estabeleceram indústrias de fiação e outras indústrias para vender produtos manufaturados para o estados do oeste e do sul. Paralelamente, as plantações escravistas do sul eram rentáveis. Talvez o obstáculo neste caso tivesse vindo do lado do produtor, já que o caráter fixo da força de trabalho escrava impedia a mobilidade da mão-de-obra, indispensável ao capitalismo; tanto mais que o fluxo de migração interna rumo ao oeste, onde a terra era livre, diminuía o número de trabalhadores nos estados industriais do nordeste. Se esta análise estiver correta, devemos admitir que um sistema de plantação, sem escravidão mas com uma força de trabalho muito mal paga e obrigada a comprar os meios de subsistência no armazém do patrão, não é prejudicial para o desenvolvimento capitalista desde que essa força de trabalho tenha mobilidade. O certo é que nos Estados Unidos a história correu de maneira diferente e, ao contrário do caso alemão, em que os industriais se aliaram com os grandes proprietários, os Junkers, no caso norte-americano o desenvolvimento econômico resultou de uma aliança da indústria (estados do nordeste) com a pequena e média agricultura (estados do oeste) contra o sistema de plantações (estados do sul).
Assim, a questão da Reforma Agrária insere-se em contextos históricos muito mais complexos do que a simples relação entre o setor rural e a restante economia. Por isso, parece ilegítimo pretender que uma Reforma Agrária — mesmo independentemente de saber qual o tipo dessa reforma — seja indispensável ao desenvolvimento econômico. A ausência de uma revolução ou de uma Reforma Agrária pode não revelar uma sociedade esclerosada. Pelo contrário, pode revelar uma sociedade que foi capaz de se modificar internamente e de se adequar às novas necessidades. Nesta perspectiva, é indispensável distinguir uma mudança exclusivamente dirigida para as estruturas econômicas e uma mudança mais ampla, incluindo a renovação da composição das classes dominantes.
E no Brasil?
Perante estas interrogações, o que significa exatamente mencionar a Reforma Agrária no Brasil? O debate contemporâneo sobre a Reforma Agrária no Brasil divide-se basicamente em dois pólos antagônicos.
Por um lado, há os que, como Zander Navarro [1], defendem que o momento da Reforma Agrária já passou, que a modernização da sociedade leva inexoravelmente a um processo de êxodo do campo, convertendo os camponeses numa classe agonizante. Além disso, argumentam que não mais existe grande volume de terras improdutivas disponíveis para redistribuição, pois os latifúndios tradicionais foram convertidos em empresas de agronegócio, não cabendo, portanto, limitação do seu tamanho. Deste modo, a Reforma Agrária seria irrelevante para o desenvolvimento rural, em decorrência da modernização tecnológica da agricultura, do aumento da produtividade e do lucro gerado nas fazendas do agronegócio. Para os opositores e céticos em relação à Reforma Agrária, os assentamentos assemelham-se a “favelas rurais” ao invés de fazendas bem-sucedidas.
No entanto, a precariedade de muitos assentamentos pode ser explicada pelo tipo de política governamental adotada, ou pela falta dela. Segundo um estudo governamental de 2002, de todos os assentamentos constituídos entre 1995 e 2001, 55% não tinham eletricidade, em 49% faltava água potável, em 29% não havia escola de nível fundamental e 62% careciam de acesso a assistência médica de emergência, acentuando-se, ainda, o fato de muitos assentamentos terem sido criados em áreas distantes dos mercados locais e serviços públicos. Ainda assim, apenas 12% dos lotes agrícolas haviam sido abandonados [2].
Por outro lado, os que defendem a Reforma Agrária enfatizam que ela é uma política eficaz contra a secular injustiça social do Brasil, pois conseguiria diminuir a desigualdade social. Argumentam ainda que a maioria dos latifúndios não conseguiria sobreviver sem os vultosos subsídios públicos e que tampouco o agronegócio é tão eficiente quanto propagam as grandes empresas midiáticas, bastando constatar que o governo continua a utilizar os índices de produtividade do Censo Agropecuário de 1975.
Além disso, os defensores da Reforma Agrária destacam que, de acordo com o Censo Agropecuário de 2006, a maior parte dos alimentos consumidos no país é produto da agricultura familiar: mandioca (92%), carne de frango e ovos (88%), banana (85%), feijão (78%), batatas (77%), café (70%) e leite (71%) [3].
Mas vejamos. Se o Brasil vem de um longo passado histórico de agricultura em sistema de plantagem com produção de subsistência existindo a reboque, parece estranho que os defensores da agricultura familiar reivindiquem como conquista aquilo que é exatamente a reprodução do mesmo sistema que combatem. Aquelas estatísticas do Censo Agropecuário de 2006 apenas demonstram com números que mais de cinquenta anos de políticas de Reforma Agrária não resultaram em qualquer mudança significativa da estrutura agropecuária brasileira. Interessante seria se os defensores da agricultura familiar mostrassem dados a indicar seu avanço em setores onde o agronegócio e a plantagem dominam, e mesmo estes ainda precisariam levar em conta arrendamentos e meações. Mas como isto não existe, pois esses setores exigem economias de escala impossíveis de alcançar para a agricultura familiar, a persistência de uma derrota é apresentada como conquista.
Os defensores da Reforma Agrária afirmam também que este tipo de modo de produção agrícola apresenta maior produtividade por hectare (em terras de menor qualidade) do que as fazendas de grande escala, gerando ainda um maior número de empregos no campo (87%) e de forma mais barata [4].
Para muitos de seus defensores, a Reforma Agrária traria igualmente ganhos no manejo ecológico, que seria próprio da agricultura familiar, em contraste com o agronegócio, caracterizado pela criação de gado em grande escala e pela alta dependência de defensivos químicos.
Ora, a afirmação de que a agricultura familiar, nas condições de atraso tecnológico em que continua a ser praticada no Brasil, seria mais produtiva do que o agronegócio baseia-se em vários malabarismos. Por um lado, as culturas intensivas são sempre mais produtivas por hectare do que as culturas extensivas. Por área plantada, as hortas e os pomares são sempre mais produtivos do que os campos de cereais, daí o papel que desempenham na produção de alguns alimentos. A comparação da produtividade por hectare deve ser feita, por isso, entre a cultura intensiva em explorações familiares tradicionais e a cultura intensiva em explorações capitalistas modernas e usando novas tecnologias. Por outro lado, quando afirmam que a agricultura familiar gera um maior número de empregos no campo, os defensores desta modalidade de Reforma Agrária estão implicitamente dizendo que esse tipo de exploração é muito menos produtivo em termos de força de trabalho. E quando acrescentam que os empregos são gerados de forma mais barata na agricultura familiar do que no agronegócio, os defensores daquela modalidade de Reforma Agrária estão implicitamente reconhecendo que o sistema de trabalho doméstico constitui uma forma gravosa de auto-exploração.
Em que terreno se situa esta polêmica?
A partir de 1970, em menos de quatro décadas a situação do país sofreu mudanças fundamentais. Uma delas foi a inversão da população rural e urbana. Em 1980 a população urbana já era de aproximadamente 68%, contra 32% da rural, invertendo a proporção de 1940. De acordo com o censo de 2010, a população residente na área rural é agora inferior a 16%; e estimativas contidas em relatório de 2012 da ONU para o habitat prevêem que a taxa de urbanização no Brasil deva chegar a 90% até 2020 [5].
Note-se, porém, que a concentração da população nas cidades não é imediatamente sinônimo do declínio da agropecuária. Segundo o Censo 2010, dos 5.565 municípios brasileiros somente 284 (5,1% do total) ultrapassaram os 100 mil habitantes, e sua população somada chegava a 105.626.953 pessoas (54,91% do total). Os 5.279 municípios restantes (94,86% do total) estão abaixo dos 100 mil habitantes, e sua população somada era de 86.649.231 pessoas (45,04% da população brasileira total). Ora, a maioria destes municípios restantes tem sua economia diretamente ligada à produção agropecuária ou ao extrativismo. Se é assim, embora hoje mais de 80% da população brasileira resida em cidades, pode dizer-se que quase metade da população brasileira vive da agropecuária ou de serviços a ela relacionados. E se levarmos em conta que muitos municípios com população maior que 100 mil habitantes têm economia agrária, esta estimativa pode alcançar até mais da metade da população brasileira. É certo que o campo está em franco esvaziamento, mas isto não significa que as cidades brasileiras sejam menos agrárias nem que as suas periferias estejam desligadas da produção agropecuária. Nesta perspectiva, entende-se que a nova conjuntura do país tivesse determinado a alteração no padrão geral das migrações, diminuindo os fluxos para o Sudeste, ao tempo em que se intensificam os movimentos entre cidades pequenas e médias, sobretudo no Centro-Oeste.
É ainda naquela perspectiva que devemos entender o crescimento das periferias e favelas. Ora, um dos efeitos alardeados da reforma agrária seria o de contribuir para conter ou mesmo reverter em partes o êxodo rural, reduzindo consequentemente a pobreza urbana e atenuando os índices de criminalidade e as expressões de violência nas cidades, além de fortalecer os pequenos municípios brasileiros. Curiosamente, esta tese não está nada distante da idéia de que a violência e a criminalidade são geradas pelo trabalhador pobre. E assim se repõe, uma vez mais, outra divisão no seio da própria classe, pretendendo que os mais pobres são os mais perigosos.
Porém, uma das regras da demografia no capitalismo é o abandono dos campos e a concentração de pessoas nas cidades, decorrente de dois motivos: por um lado, à medida que o capitalismo se desenvolve na agropecuária, aumenta a produtividade, medida tanto por área como por força de trabalho; por outro lado, o crescimento da indústria e dos serviços, concentrados nas cidades, requer mais força de trabalho. Quanto a este último aspecto, o referido relatório da ONU para o habitat conclui exatamente que são os centros urbanos os impulsionadores da economia não apenas no país mas em toda a região da América Latina e do Caribe, concentrando-se nas cidades os serviços e a indústria; sendo elas responsáveis por dois terços do Produto Interno Bruto de toda a região; tendo crescido seis vezes o número de cidades na região desde os anos 1960, o que a torna uma das regiões mais urbanizada do mundo, com cerca de 80% do total da população (588 milhões de pessoas) vivendo em cidades – ficando atrás da América do Norte (82,1%) e Europa (84,4%).
Este relatório da ONU mostra também que aumentaram a desigualdade e as contradições sociais nas cidades, sendo que 111 milhões de pessoas na região vivem em habitações precárias. Mas no sistema capitalista a única forma de travar a migração dos campos para as cidades é o atraso econômico, tanto diminuindo a produtividade da agropecuária como freiando o crescimento da indústria e dos serviços. Será que para evitar a precariedade das periferias urbanas devemos manter o atraso econômico tanto nos campos como nas cidades? Convém que este dilema seja deixado bem explícito, perante a defesa daquela noção de Reforma Agrária.
É que as alternativas não se limitam àquele dilema. Outra alternativa é a criação e o desenvolvimento de uma unidade de luta entre os trabalhadores que permaneceram no campo e aqueles que migraram para as periferias e as favelas das cidades, incluindo migrações sazonais para empregos temporários na indústria agrícola e na construção civil. A este respeito, vale a pena ver o vídeo Zona Crítica, que ainda foi produzido dentro do MST. Esta é a única perspectiva compatível com o crescimento econômico, mas não se insere no programa estrito de uma Reforma Agrária.
Além disso, o crescimento econômico dos últimos anos, com a oferta de empregos nas cidades, nomeadamente na construção civil, e a crise da agricultura camponesa, em que cerca de 90% dos agricultores familiares estão com enormes dificuldades econômicas [6], coloca sérios obstáculos nesta conjuntura para tal proposta de Reforma Agrária.
A questão fica ainda mais complexa ao verificarmos que, por um lado, os programas de assistência focada, nomeadamente o Bolsa Família, têm retirado milhões de pessoas da miséria extrema e garantido acesso a alguns serviços básicos. Remetemos aqui para a série de artigos que o Passa Palavra publicou sobre o Programa Bolsa Família.
Por outro lado, a agropecuária e o agronegócio já não obedecem ao velho modelo latifundiário. Modernizaram-se e aumentaram muito os níveis de produtividade, estando na origem de uma parte substancial do superávit comercial. Neste contexto, recordamos um artigo publicado no Passa Palavra em que se defende que a transformação das commodities num dos principais pilares da economia brasileira não corresponde a nenhuma regressão tecnológica nem a um regresso ao Brasil-colônia. Curiosamente, a tese de que a importância assumida pelas commodities na economia brasileira equivale a uma desindustrialização do Brasil deve-se sobretudo a Bresser Pereira. Não há dúvida que se trata de um notável intelectual e de um economista arguto, mas, para que o debate ficasse mais claro, seria bom que aquelas pessoas que na extrema-esquerda defendem a tese da desindustrialização reconhecessem a sua origem política.
Ampliando a análise de modo a incluir toda a agricultura, convém saber que, de acordo com uma notícia publicada no Valor Econômico em 11 de Julho de 2012, um levantamento realizado pela OCDE estabeleceu que “a produtividade da agricultura brasileira cresceu o dobro da média mundial na ultima década, ou cerca de 4% ao ano”. “O crescimento da produtividade brasileira passou de 0,9% ao ano, em média, entre 1961 e 1970, para 4,04% entre 2001 e 2009”. Para efeitos de comparação, a “Rússia e Ucrânia, que saíram de níveis baixíssimos, conseguiram altas de 4,29% e 5,35% ao ano, respectivamente, na última década”. Porém, “no caso dos EUA, um dos maiores produtores mundiais, o ganho médio de produtividade aumentou de 1,21% para 2,26% ao ano na última década” [7].
O que seria a Reforma Agrária hoje?
Deste modo, se nas décadas de 1950 e 1960 era dominante na esquerda a tese de que sem a Reforma Agrária o Brasil permaneceria numa condição de subdesenvolvimento, esta situação modificou-se com o transcorrer dos anos e o país desenvolveu-se em muitos aspectos relevantes a despeito de não realizar tal Reforma. Por isso, e ainda que a reivindicação de uma Reforma Agrária não se tenha extinguido, principalmente pelo poder de mobilização e pelas ações dos movimentos camponeses, notadamente o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), a partir dos anos 2000 a Reforma Agrária vem cedendo espaço para outros temas e está já sendo questionada no interior dos próprios movimentos rurais. Acresce que os movimentos mais eficazes de luta pela terra no país, na última década, têm sido os movimentos indígenas e o movimento quilombola.
Na realidade, os assentamentos resultaram de pressões sociais e ações localizadas e pontuais, com vistas a regularizar ocupações e resolver conflitos e tensões, e não resultaram de qualquer luta generalizada pela Reforma Agrária. “O que veio se produzindo ao longo dos anos, isso sim, ainda que se possa questionar a sua eficácia, foi uma política para a reforma agrária, ou para os beneficiados por suas intervenções, mesmo que não lhes seja exclusiva, e que ganha corpo em programas e iniciativas focados na agricultura familiar. A questão que fica, portanto, é se ainda há espaço hoje para a reforma agrária” [8].
Nem os programas de assistência nem o crescimento econômico saldaram o gigantesco e histórico passivo do Brasil na área rural. A riqueza gerada continua sendo extremamente concentrada. No campo — em comparação com o meio urbano — continuam os maiores índices de desigualdade, os baixos níveis de escolaridade, as carências em atendimentos básicos como saúde, saneamento, cultura, direitos. Para Grzybowski [9], esta desigualdade no campo, aprofundada pelas diversas formas de exploração e marginalização, em particular dos trabalhadores assalariados, se deve exatamente ao “sucesso” do modelo de desenvolvimento modernizador, que reproduz em escala ampliada a exclusão já existente no meio rural, não se tratando, pois, de “falta” de desenvolvimento. De acordo com uma dirigente do MST, “por esta lógica — do capital — atualmente não haveria mais uma questão agrária em aberto, a reforma agrária foi realizada, não como gostaríamos, mas às avessas, pelo capital” [10]. Para os defensores da Reforma Agrária, se mantivermos o olhar nos impactos da “modernização conservadora” sob a perspectiva do trabalho, e para amplos setores da sociedade brasileira, perceber-se-á que a questão agrária permanece aberta, pois tem efeitos negativos nas condições de vida dos trabalhadores e agricultores familiares, na distribuição de renda e riquezas no país e no que eles consideram como manejo ecológico do meio ambiente e como produção de alimentos saudáveis e a preço acessível para a maioria da população. Apesar dos avanços no campo jurídico institucional, os constrangimentos no campo econômico mantiveram a desigualdade inalterada.
A modernização conservadora também tem suas implicações na esfera política, constituindo uma representação oligárquica e solapando a extensão democrática dos direitos de cidadania da população mais pobre, especialmente no meio rural. E assim a sobre-representação política dos latifundiários equivale ao acesso privilegiado aos cofres públicos. Entre 1995 e 2006, estima-se que a representação política dos latifundiários e do agronegócio foi de 2.587 vezes maior do que a dos camponeses pobres e sem-terra. A representação política média dos proprietários de terra foi de um deputado federal para cada 236 famílias, enquanto a dos camponeses sem-terra foi de um deputado para cada 612 mil famílias. No plano econômico, de 1995 a 2005, os grandes fazendeiros tiveram acesso a 1.587 dólares em gastos públicos para cada dólar concedido aos trabalhadores rurais sem-terra [11]. Na safra 2005/2006, os médios e grandes proprietários de terras, com 342.422 estabelecimentos, tiveram acesso a R$ 44,3 bilhões [milhares de milhões]. Em média, cada um recebeu R$ 130 mil. Em contraste, no mesmo período o orçamento do Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (Pronaf), que tem como público potencial 3,9 milhões de famílias, foi de R$ 9 bilhões. Na média, cada família tem disponível um pouco mais de R$ 20 mil. Mesmo dentro do Pronaf, os assentados enfrentam outras dificuldades para obter crédito. Foram assinados apenas 64.416 contratos com as 580 mil famílias em projetos da reforma agrária, cerca de 11% do total. O crédito agrícola oferecido girou em torno de R$ 568 milhões, ficando R$ 9 mil por família [12]. No governo Dilma, o Plano Agrícola e Pecuário 2011/2012 prevê uma liberação de R$ 107,2 bilhões (aumento de 7,2% em relação à safra anterior), com condições especiais de financiamento para a renovação de canaviais e para a pecuária, com linhas de crédito diferenciadas [13].
Mas estaria, então, a Reforma Agrária deixando de ter sentido no cenário atual enquanto modelo de redistribuição generalizada de terras e cedendo espaço para ações voltadas à ampliação da cidadania, como a busca por um tipo de desenvolvimento mais justo, igualitário e inclusivo também no meio rural?
Num dos países de maior concentração de renda do mundo, associada a um enorme leque de outras desigualdades, a Reforma Agrária pode ser considerada como um passo importante na construção de uma ordem democrática mais sólida e de uma sociedade mais justa. Foi assim que a Reforma Agrária se articulou numa luta ampla pelo fim do regime militar e o retorno de um sistema democrático que apontasse para um tipo de desenvolvimento vinculado à justiça e igualdade. Porém, com a democratização política do país e a consolidação dos projetos neoliberais, a partir dos anos 1990 a Reforma Agrária, aos poucos, deixou de ser objeto de campanhas autônomas dos grupos progressistas. “Assim, já em 1993, a reforma agrária deixou de ser objeto de uma campanha autônoma, para tornar-se parte da Ação da Cidadania contra a Fome, a Miséria e pela Vida” [14].
Mas se a bandeira da redução da pobreza foi encampada pela Campanha Nacional pela Reforma Agrária (CNRA), isto significa, em palavras diretas, a defesa de um tipo de desenvolvimento civilizatório do capitalismo no campo? Neste sentido, a distribuição pontual e localizada de terras, em conjunto com políticas de planejamento, concessão de crédito, assistência técnica, integração ao mercado seria o novo caminho a percorrer?
Este, de fato, parece ser o consenso enquanto objetivo estratégico entre governo, grandes empresas e movimentos sociais, variando, isto sim, os valores, graus e intensidade de tal projeto, mas não seu aspecto estrutural.
Referências
[1] Lerrer, Débora. Reforma Agrária – Os caminhos do impasse. Editora Garçoni, São Paulo, 2003.
[2] Carter, Miguel. Desafiando a desigualdade: contestação, contexto e consequências. In: Combatendo a desigualdade social – O MST e a reforma agrária no Brasil. Editora Unesp, São Paulo, 2009.
[3] Carter, Miguel. Desigualdade social, democracia e reforma agrária no Brasil. In: Combatendo a desigualdade social – O MST e a reforma agrária no Brasil. Editora Unesp, São Paulo, 2009.
[4] Oliveira, Ariovaldo Umbelino de. As transformações no campo e o agronegócio no Brasil. In: Secretaria da CONCRAB. O agronegócio x agricultura familiar e a reforma agrária, Brasília, 2004.
[5] Estado das Cidades da América Latina e Caribe – Programa das Nações Unidas para os Assentamentos Humanos (ONU-HABITAT), 2012.
[6] Fernandes, Bernardo Mançano. O MST não está em crise, mas, sim, os pequenos agricultores. Entrevista. Unisinos, 2011. Disponível em: http://www.ihu.unisinos.br/entrevistas/42460-o-mst-nao-esta-em-crise-mas-sim-os-pequenos-agricultores-entrevista-especial-com-bernardo-mancano-fernandes
[7] Disponível aqui: http://clippingmp.planejamento.gov.br/cadastros/noticias/2012/7/11/brasil-e-destaque-em-trabalho-da-ocde-sobre-produtividade
[8] Grynszpan, Mário. Reforma agrária sob olhar histórico. Democracia Viva, n. 47. IBASE, Rio de Janeiro, agosto de 2011.
[9] Grzybowski, C. Apud Neto, Luiz Bezerra (1999). Sem-Terra aprende e ensina. Estudo sobre as práticas educativas do movimento dos trabalhadores rurais. Campinas: Autores associados.
[10] Cf. entrevista 10/11/2009 – chegada da marcha Campinas-São Paulo, 2009.
[11] Carter, Miguel. Desigualdade social, democracia e reforma agrária no Brasil. In: Combatendo a desigualdade social – O MST e a reforma agrária no Brasil. Editora Unesp, São Paulo, 2009.
[12] Dinheiro público financia o agronegócio, disponível em: http://www.mst.org.br/node/834
[13] Ver http://www.portaldoagronegocio.com.br/conteudo.php?id=57272; e http://blog.planalto.gov.br/plano-agricola-e-pecuario-20112012-inclui-linhas-de-credito-para-aquisicao-de-matrizes-e-reprodutores/
[14] Grynszpan, Mário. Reforma agrária sob olhar histórico. Democracia Viva, n. 47. IBASE, Rio de Janeiro, agosto de 2011.
Fonte: Jornal Passa Palavra. Disponível em: http://passapalavra.info/?p=27717. Acesso em 17 set. 2012.
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