Precaridade em Portugal e na Europa Hoje
Entrevista com Raquel Varela, publicada em Diário da Liberdade com base em entrevista escrita, parcialmente publicada numa reportagem sobre trabalho, desemprego no Jornal Público (Portugal).
Raquel Varela é pesquisadora no Instituto de História Contemporânea da Universidade Nova de Lisboa e Presidente da Associação Internacional Greves e Conflitos Sociais
Em primeiro lugar, como caracteriza os trabalhadores precários na Europa?
Os investigadores do trabalho na Europa têm usado o conceito de precário tanto para o soldador grego que entra num avião e vai para a Alemanha 3 meses trabalhar numa fábrica, como para a empregada de limpeza brasileira ilegalizada pelas leis de imigração em Portugal, como para o arquitecto a recibos verdes (formalmente trabalho autónomo), como para o bolseiro doutorado que dá aulas na Universidade (na essência um trabalhador altamente qualificado, na aparência um bolseiro sem contrato de trabalho).
Em Portugal, e na minha opinião correctamente, os investigadores têm, sem grande discussão conceptual, adoptado este conceito de precariedade versus trabalho com direitos, que a mim me parece correcto porque refere os trabalhadores a partir das condições laborais e, digamos, corresponde a uma realidade histórico-política. Na Europa depois de 1945 e, em Portugal, depois da Revolução dos Cravos, em 1975, ter trabalho passou a ser um direito, e quem não tem esse direito é precário.
Efectivamente, existe um país, em geral mais velho, com mais direitos, mais sindicalizado, ainda sob a égide do pacto social nascido da revolução de 1974-1975, mais predisposto a mediações; e um outro país precário, uma força de trabalho do modelo just in time, quer isto dizer, trabalhador na hora, que é chamado a trabalhar quando as empresas precisam e devolvido ao desemprego quando baixa a produção. Só é chamado ao mercado de trabalho quando este dele necessita – normalmente é a este tipo de «reforçar a competitividade» que se referem os sectores mais liberais.
A greve dos estivadores, por exemplo, que decorreu em Portugal entre agosto e dezembro de 2012, espelha de certa forma esta divisão da força de trabalho, porque os estivadores lutavam, com reivindicações políticas, também contra a precariedade dos que aí viriam. E a sua luta teve um carácter parcialmente internacionalista que nunca ou raramente se viu no país, com a presença de dirigentes sindicais de outros países presentes na manifestação em frente a São Bento (Parlamento português) e paralisações em vários portos internacionais em solidariedade com a luta dos estivadores portugueses. É verdade que a greve dos mineiros em Espanha também transbordou as fronteiras.
Quantos são estes trabalhadores precários?
Temos em números reais, em Portugal, 1 400 000 desempregados, no total de uma população activa de 5 milhões e meio, a maioria dos desempregados tem baixa escolaridade e mais de 45 anos. E sabemos que sensivelmente 45% a 50% do total da nossa força de trabalho é precária. Sabemos que neste momento há 1 300 000 licenciados, metade dos quais foram formados nos últimos 10 anos.
Mas, nem tudo o que parece é. A maioria da força de trabalho precária não terá um curso superior. Na construção civil, limpezas, trabalho nas fábricas, na agricultura: os bairros sociais são um desespero de trabalhadores precários com uma escassa almofada social – subsídios mínimos de reprodução biológica -, que subsistem pela caridade (arbitrária e não universal); vê-se precariedade na agricultura intensiva do rio Mira, no sul de Portugal (explorações de hortícolas inglesas); trabalha-se de forma precária nas fábricas de Alcobaça ou na região de Santarém, no centro do país, e entra-se ciclicamente no desemprego, para citar alguns exemplo.
Nas manifestações que ocorreram em Portugal de forma massiva em alguns momentos dos últimos 3 anos (12 de Março de 2011, 15 de Setembro de 2011, 15 de Setembro de 2012, 14 de Novembro de 2012, e 2 de Março de 2013) tem estado uma franja destes precários, parece-me (mas não tenho a certeza) os mais escolarizados, embora haja sinais de que começam a misturar-se com muitos trabalhadores com direitos (que têm a chamada relação de trabalho-padrão), e também com precários sem escolarização superior.
Creio, porém, que tem vindo dos precários mais formados e escolarizados o mote político dos protestos; parece-me que foi este sector quem primeiro saiu às ruas em protesto. São eles que as organizam e mobilizam nas redes sociais e movimentos, ao ponto de serem uma fonte de pressão sobre as centrais sindicais. Aqui e em Espanha isso é claro: as centrais sindicais foram obrigadas a chamar greves gerais perante as mobilizações massivas chamadas nas redes e a própria CGTP (Portugal) acabou por pôr fim à tradição de não convocar manifestações em dias de greve geral. A greve geral de 14 de Novembro de 2012 no sul da Europa, resultou, creio, em parte desta pressão dos movimentos mais inorgânicos.
Como se organiza esta mão-de-obra?
Esta força de trabalho precária é – e esta é uma novidade nos países centrais no pós guerra, na minha opinião – menos dirigida pelos sindicatos e, em geral, mais descrente no regime democrático-representativo, a quem associam a sua proletarização. Não há organizações, que eu conheça, de trabalhadores precários com representação real – há frentes propagandísticas mas que não conseguem organizar este sector.
Parece-me que a condenação dos partidos e o desprezo pelas eleições que domina estes protestos reflecte um corte com um regime que não lhes deu mobilidade social. É uma condenação progressista e não de tradição conservadora: muitos destes precários exigem democracia social e económica e não um caudilho. Mas ao rejeitarem a proletarização recusaram também a história do movimento operário, nomeadamente os seus modelos organizativos (organização, certo grau de centralismo, autofinanciamento), a centralidade do poder do Estado (e do combate ao poder do Estado), o que talvez seja o seu calcanhar de Aquiles.
Há um certo neo-proudhonismo aqui, que namora com as teorias do decrescimento, consenso nas decisões organizativas (o que significa que o mais recuado impõe o programa colectivo, que é seguido por todos de forma unânime, e é sempre o programa mínimo, por oposição à ideia de vanguarda dos movimentos dos anos 70, em que era justamente o contrário, os mais radicais podiam, pelo método de 50% +1, puxar os mais recuados). Se me permite o gracejo são de alguma forma a retaguarda que nega a vanguarda. Digo de alguma forma porque é óbvio que tiveram o poder de questionar nas ruas as medidas anticrise e isso não é menor.
Há também nestes novos movimentos sociais, creio, uma certa mistificação da democracia real como algo associado ao poder da rua (acampadas) e não como um poder organizado a derrubar ou controlar o Estado. Tudo isto na minha opinião reflecte algo da sua origem de classe, sectores médios proletarizados que sonham com uma sociedade de “pequenos produtores “. Talvez. Por outro lado este estado naïf de organização pode ser só um reflexo da eterna tentativa de evitar um conflito civil.
Claro que o método do consenso só reflecte a nível organizativo uma dimensão política – porque a escolha do método organizativo leva a políticas recuadas e por isso o que resulta muita vezes são coisas como a condenação da corrupção e da gestão danosa, crítica dos paraísos fiscais, defesa da renegociação da dívida pública, portanto, medidas de gestão do capitalismo e não de ruptura. Veja: está ausente dos programas, ou só está em nota de rodapé não fazendo parte de nenhum campanha, a redução do horário de trabalho para todos sem redução salarial. Isto quando temos taxas de desemprego entre os 30% (adultos) a 50% (jovens)! Até à década de 80 do século XX era parte determinante dos programas dos sindicatos, partidos comunistas e social-democratas a redução do horário de trabalho para 35 horas sem redução salarial. Desapareceu ou foi metida para debaixo do colchão.
Teria que pensar melhor nestas questões, que ainda nos aparecem muito fluídas, mas que na minha opinião são muito importantes porque é no terreno político e organizativo que esta crise – a sobrevivência do capitalismo e a regressão social, ou o derrube deste – se vai decidir.
Porém, paradoxalmente, vê-se que estes sectores dos chamados movimentos sociais mais precarizados e atomizados, admiram os mineiros espanhóis ou os estivadores portugueses, dois sectores que protagonizaram greves importantes e radicalizadas, com uso de violência contra o Estado ou símbolos do Estado, cuja capacidade de luta advém do radicalismo mas também da capacidade de organização (taxas altíssimas de sindicalismo), altamente centralizada até (no caso dos mineiros, usando técnicas aprendidas na clandestinidade). Ponho muitas dúvidas que os estivadores ou os mineiros decidam por consenso ou numa praça pública! (risos).
Há outros factores que gostaria também de salientar. Sobre os precários mais formados parece-me que em geral são mais internacionalistas ou pelo menos mais internacionalizados, mais informados e mais formados, mais conscientes dos seus direitos (não se resignam como os avós no tempo do Estado Novo, a ditadura portuguesa, à sua condição de pobres). Mas também são mais individualistas e menos cultos. Têm uma cultura política do modelo just in time, ou seja, algo superficial, rápida, feita por flashes de leituras de blogues e redes sociais, pouco estratégica e muito táctica. É impossível não associar a progressão do individualismo nesta fase de desenvolvimento do capitalismo à pressão do método do consenso, que se resume caricaturalmente nisto: «a minha opinião pessoal tem que prevalecer e não dou o benefício da dúvida à maioria, ou é como eu quero ou é sem mim». É o poder de veto da minoria sobre a maioria.
Mas enfim, sobre estes temas mais subjectivos, diria que isto é uma avaliação mais pessoal e intuitiva – não fiz nenhum estudo nem conheço nenhum que analise estes comportamentos de forma metodológica, por isso estas opiniões, são hipóteses exploratórias, nada mais.
De acordo com os dados do Eurostat, Portugal, Espanha e Polónia são os países onde o peso dos trabalhadores a prazo no total dos trabalhadores por conta de outrem tem maior significado (respectivamente 20,94% e 23,65% e 27,56% no segundo trimestre de 2012). Como analisa a evolução desde 2001 até aos dias de hoje, tanto na Europa como, em particular, Portugal?
Estes dados do Eurostat não são sobre precariedade, mas sobre contratos a prazo. Ora, em Portugal há um sem-fim de trabalhadores precários que aparecem como empresários em nome individual que são na verdade trabalhadores precários. Não só os casos óbvios do recibo verde, bolseiros, estagiários, etc. Há casos mais polémicos, como o de pequenos empresários que são de facto trabalhadores. Têm formalmente uma «empresa», mas na verdade são trabalhadores dependentes de grandes empresas que suportam todos os custos que a grande empresa deixou de suportar (segurança social, paragens da produção, etc.). O capital circula por estas pequenas empresas mas não se acumula aí: o que ganham mal dá para pagarem as contas, em muitos casos. Creio que uma parte destes são pequenos empresários, acossados pela competição, claro, mas outra parte arrisco a dizer que são trabalhadores precários naessência, embora juridicamente apareçam como pequenos empresários.
O INE (Instituo Nacional de Estatística, Portugal) e o Eurostat deveriam criar um modelo de levantamento de dados da força de trabalho que permitisse saber afinal quantos recibos verdes existem e quantos empresários são de facto empresários e quantos são trabalhadores precários escondidos.
Indo directamente à sua questão creio que o aumento da precariedade tem por trás uma estratégia europeia para os capitalistas, empresários, saírem da crise reduzindo brutalmente os custos do trabalho, e, sobretudo, associando isso à criação de um mercado europeu de trabalho (o célebre «emigrem!», a que o primeiro ministro português aconselhou os desempregados). Isto é, fazer da periferia da Europa uma China, mas garantindo que estes novos «chineses», os portugueses, espanhóis, gregos, polacos (muito mais produtivos e qualificados que os chineses) podem ir trabalhar para o Norte, quebrando assim os salários conquistados no Centro e Norte da Europa. Também pode haver o simples movimento de transferência de empresas do norte para o sul, usando novas tecnologias (caso de call centers franceses que se estão a instalar em Portugal), ou, eu diria, a simples ameaça de haver trabalhadores altamente qualificados no sul – e excedentários para este modo de produção -, quebra a capacidade de negociação dos trabalhadores do norte. Há já quem sugira uma reindustrialização do Sul da Europa, o que, no quadro do actual estágio de desenvolvimento do capitalismo mundial só é possível com salários miseráveis, jornadas de trabalho intensíssimas e altos índices de desemprego.
O que quero ressaltar é isto: que a EU é um mercado único mas é também, e quem sabe sobretudo, um mercado de trabalho. A uniformização do ensino com o Processo de Bolonha e o programa Erasmus (de incentivo a fazer estudos noutro país da EU) são claramente tentativas de fazer este grande mercado de trabalho. Que na minha opinião visa baixar o custo unitário do trabalho para fazer frente à competição norte americana. A Europa tem o custo unitário do trabalho mais elevado do mundo porque aqui os direitos foram conquistados ao fim de 40 anos de revoluções, contra revoluções, conflitos agudíssimos que se saldaram na II Guerra Mundial e na derrota do nazi fascismo.
Espanha em si é um caso deveras interessante. De acordo com os dados do Eurostat, o peso dos trabalhadores a prazo caiu 10,39%, desde 2006 até ao segundo trimestre deste ano. Como justifica estes valores?
Sim, em Espanha era 31,9% e passou para 23,7%, entre 2006 e 2012. Esse valor é ainda assim superior ao de Portugal, ou seja, mais contratados a prazo em termos percentuais (que passam de 19,1% em 2005 para 21% em 2012). Se olhar para o Eurostat vai ver que há um salto entre a diminuição dos contratos a prazo e o aumento do desemprego. Portanto, a única conclusão que se pode tirar não é que o trabalho precário diminui, é que o desemprego atingiu de forma drástica os contratados a prazo.
Desde 2008, ano em que brotou a crise financeira a nível mundial, não se registou nenhuma alteração muito significativa na evolução do peso dos trabalhadores a prazo. Encontra alguma relação entre a conjuntura financeira e a evolução da precariedade (trabalhadores a prazo, recibos verdes e temporários)?
Bom, o que se registou desde que começou a crise foi uma gigantesca queima de capital que implicou fechar milhares de empresas e despedir milhões de trabalhadores. Certamente que uma parte significativa dos despedidos é precária. Volto a sublinhar isto, a única conclusão que se pode tirar é que o desemprego atingiu de forma drástica os trabalhadores precários.
Em Abril de 2012 havia, segundo a Organização Internacional do Trabalho, 17,4 milhões de jovens desempregados, e esse número deverá chegar aos 22 milhões em 2013. Há, desde que começaram as medidas contracíclicas de 2008 (o desemprego não nasce da crise, mas das medidas contracíclicas), 30 milhões de novos desempregados e 40 milhões que durante a crise deixaram de procurar emprego. O que há cada vez mais é uma ligação permanente entre precários e desempregados, que se apresentam como dois lados da mesma moeda. Curiosamente, a classe trabalhadora descrita por Marx no século XIX (proletários e exército industrial de reserva).
Os dados disponíveis indicam que, aquando de recuperações temporárias do mercado laboral, os postos de trabalhos criados eram novamente precários. Podemos afirmar que se trata de um efeito cíclico? Como explica esta quebra e retoma do mesmo?
A cada crise económica verifica-se um aumento dos trabalhadores precários nos períodos de recuperação depois do ciclo de queda, quer isto dizer que a tendência – não quer dizer que em determinados sectores por razões económicas (escassez de mão de obra) ou políticas (força da organização) não haja excepções – é para haver cada vez mais trabalhadores precários.
A subida galopante do desemprego jovem é uma realidade na Europa. De acordo com os dados disponibilizados pelo Eurostat, é possível concluir que os mais jovens perdem peso nos contratos a prazo. Porém, a mesma tendência é encontrada no total dos trabalhadores por conta de outrem. Para si, há algum factor decisivo nesta evolução?
Sobre os números trata-se de maior desemprego e não menos precaridade. Não sei com sinceridade se estamos perante um modelo de capitalismo que ao criar cada vez mais máquinas desemprega cada vez mais pessoas (na Europa, porque a nível mundial o número de trabalhadores aumenta com a massiva ida de trabalhadores chineses do campo para a cidade, por exemplo), como defendem alguns colegas. Ou, como defendem outros, se estamos num período cíclico que vai reabsorver, com muitos piores condições e relações laborais, a força de trabalho considerada excedentária por este modelo de acumulação.
Eu tenho desenvolvido o conceito a que chamei de “eugenização da força de trabalho”. O que procuro pensar com isto é que, numa sociedade baseada na produção para o lucro como esta, acho que há uma parte da população que não está só «a mais», de forma relativa. Quero dizer: no capitalismo é preciso desempregados para baixar o salário dos empregados. Mas eu creio que está em curso algo mais profundo na Europa – a eliminação de uma parte da força de trabalho, retirando do mercado de trabalho os que têm direitos e são mais velhos e muitas vezes menos formados, e cortando drasticamente as pensões e o acesso a cuidados de saúde dos pensionistas.
Gostava de salientar isto. A falta de cuidados de saúde ou cortes nas pensões aos mais velhos não é só uma consequência da mercantilização dos serviços públicos de saúde mas também, na minha opinião, a vontade de que essas pessoas (que têm direito a uma pensão relativamente alta conquistada no quadro do Pacto Social) desapareçam. Uma outra espécie de neo malthusianismo, uma forma creio de eugenia social. É parte da barbárie a que este sistema económico – e não a sua simples má gestão ou corrupção – nos conduziam.
Na média da Europa a 27, podemos ver que o peso dos trabalhadores a prazo passou de 12,42% em 2001, para 13,87% no segundo trimestre de 2012, atingindo o pico máximo em 2007 (14,56%). Tendo em conta a evolução quase nula entre 2001 e 2012, consegue analisar algum factor que justifique estes números?
Sim, como disse mais acima, a manutenção da taxa a prazo não diz muito porque o número do desemprego subiu brutalmente. Em Portugal, em 2007, era de 9% e agora é mais de 17,4% (estes números não são reais, os reais são na ordem hoje dos 25% de desemprego).
O caso da Irlanda e do Reino Unido é outro muito interessante. Nos dois países dos mais liberais na Europa, seria de esperar um crescente número de trabalhadores a prazo. Seria algo expectável, tendo em conta as sociedades em questão. Porém, Irlanda e Reino Unido são dos países onde o peso dos trabalhadores a prazo é menor. Adicionalmente, seria de esperar um grande aumento do número de trabalhadores a prazo após a despoletar da crise em 2008. Apesar da subida que vem registando desde 2005, o actual valor de 10,22% é ainda relativamente baixo. Como explica esta situação?
A economia irlandesa e inglesa estão assim tão ligadas? Veja, uma está no euro e outra não. A Irlanda passou de um desemprego de 4,8% em 2007 para 14,8% em 2012, a Inglaterra, de 4,7% para 7,8%. Mais uma vez não se pode concluir pela percentagem do número de contratos a prazo onde os níveis de desemprego dispararam como na Irlanda. A Inglaterra terá beneficiado – na minha opinião temporariamente (porque caminhamos para um novo choque cíclico provavelmente 2015) – de ter uma moeda própria. Por outro lado, é uma economia mais ligada directamente à norte-americana, creio. Desconheço porém com detalhe a força de trabalho inglesa: há uma rotatividade grande de empregos qualificados (a Inglaterra parece funcionar como uma zona de formação de quadros para a Commonwealth). Mas tem bolsas de desigualdade gigantes, que Ken Loach tão bem retrata nos seus filmes, uma imensa quantidade de pessoas que vive entre o subemprego e os subsídios, a viver em condições tremendas sem perspectivas de futuro digno. Lumpenizados para usar a palavra rigorosa.
Não compreendo o paternalismo de alguns cientistas sociais quando olham para camadas gigantes da população a viver de subsídios que não garantem mais do que a reprodução biológica, e se limitam a ser benevolentes com a barbárie social (crime, ignorância, prostituição, maus tratos, violência doméstica) que daí advém.
As pessoas têm que ter direito ao trabalho e isso tem que ser assegurado reduzindo drasticamente o horário de trabalho para todos, essa é a minha apreciação. É claro que nada disso pode ser feito sem um controle colectivo sobre a produção, a energia, a banca, o sistema financeiro. Sem repetir os erros do passado, nomeadamente o horror das ditaduras burocráticas, como foi o caso da URSS.
Em 2007 houve um pico de trabalhadores a prazo na Europa que, no ponto de vista de um sociólogo da Organização Internacional do Trabalho, indicava uma antecipação do mercado de trabalho à crise. Por outras palavras, o mercado de trabalho teria desenvolvido um mecanismo que permitia actuar em situações de crise (basicamente, despedir aqueles que menos dispunham de protecção social).
As crises cíclicas, que ocorrem a cada 7 anos sensivelmente (estão mapeadas pelo Departamento de Comércio norte-americano) têm um período de crise, pico, expansão e desaceleração. Normalmente no final, antes de se entrar em crise (ou seja antes de se dar uma queda na taxa de lucro, deflação de preços na produção, etc., que muitas vezes se manifesta com queda nas bolsas), há uma alta taxa de empregabilidade da mão-de-obra. Portanto, eu diria que em final de 2007 há mais emprego porque as empresas estavam num pico de produção alto. Os despedimentos são a seguir à crise, disparam em 2009, são feitos para «sair da crise», isto é recuperar a taxa média de lucro das grandes empresas (porque as pequenas e médias afogam-se como se vê).
Do mesmo modo, o peso dos trabalhadores a prazo face ao total de trabalhadores por conta de outrem, individualizado por países da União Europeia, permite distinguir três grupos de países: Sul, Centro e Norte, salvo algumas excepções. Consegue explicar, em termos históricos, estes dados? Houve algum indício ou semelhança do passado?
A Europa não tem ritmos iguais de crescimento, de produtividade nem de gestão da força de trabalho. Acho que é um desenvolvimento desigual e combinado, ou seja, há bolsas de produtividade altíssimas combinadas com sectores muito atrasados, mas tudo se parece combinar num modelo cheio de contradições. Veja como a estratégia das empresas alemãs de componentes de automóveis (feitas com baixos salários em Portugal) esbarra com a estratégia do Grupo Sonae (distribuição alimentar em Portugal), mais ligado ao consumo interno.
Por outro lado, a precariedade ganha um significado distinto consoante os índices de desemprego, logo ser precário na Suécia e em Portugal não é o mesmo, não só pela força do Estado social, mas pelo emprego. Se há pleno emprego (coisa que nem a Suécia agora tem), o facto de os trabalhadores serem precários, ou seja, não terem contratos com direitos, não lhes dificulta tanto a vida porque saem de um emprego e entram noutro.
Na Europa do Sul assiste-se agora à confluência de 3 factores que levam às situações de miséria que ouvimos e vemos: precariedade, taxa de desemprego altíssima, salários baixíssimos e retorno ao mercado de trabalho cada vez mais tarde (um desempregado hoje fica em média dois anos sem voltar ao mercado de trabalho para vender a sua força de trabalho, em Portugal).
Historicamente, vivemos uma ilusão que é também a desilusão com o modelo pós 25 de Abril, isto é, a ideia de que o capitalismo teria um desenvolvimento linear no sentido de combinar propriedade privada, mercado e bem-estar social. A barbárie está agora à nossa volta e oficialmente temos quase 1/3 da população pobre, abaixo do limiar de pobreza, e crianças com fome.
O modelo estalinista, volto a afirmar, foi uma desvirtuação brutal e ditatorial de um projecto igualitário, que visava a fartura e não a generalização da miséria e da repressão. Mas não é menos óbvio que o capitalismo é cada vez mais sinónimo de barbárie e que é urgente repensar um novo modelo de sociedade, que não pode ser feito sem a crítica radical aos pressupostos económicos e sociais desta.
A partir de quando os precários passaram a ser um modelo do mercado de trabalho? Será um modelo de futuro?
A precariedade – isto é a ausência de trabalho certo, salários abaixo de subsistência ou relações laborais desprotegidas – sempre existiu. Até ao 25 de Abril era comum e não só no trabalho agrícola. É algo anacrónico chamar-lhe precaridade – chamava-se então trabalho à jorna, sazonal, à peça, ao domicílio. No moderno modo de produção capitalista a flexibilidade do trabalho bem como altas taxas de desemprego são condição sine qua non para sobreviver na competitividade entre empresas e entre Estados. Nenhuma tendência da economia – dos marxistas aos liberais – esconde que altas taxas de desemprego funcionam como um regulador dos salários, baixando-os. Aliás sempre se conta a população activa, isto é, a força de trabalho como uma só, quer esteja ou não empregada faz parte do mesmo conjunto. Em determinados momentos históricos esta normalidade do capitalismo foi interrompida por força de conflitos sociais e foi garantido o direito ao trabalho.
Em Portugal esse direito é assegurado na Constituição de 1976 (o Pacto Social nascido da revolução dos cravos) mas ele depende, na sua concretização real, também da relação que se estabelece entre as classes sociais e da própria economia, isto é, se há ou não crescimento económico e qual o grau de pacto social que existe, ou, dito de outra forma, qual o grau de cedência dos empregadores e de resistência dos trabalhadores. A precariedade de que hoje se fala começa a crescer de forma exponencial a partir do início da década de 90, devido a factores económicos (dificuldade em recuperar taxas de lucro do período cíclico anterior), políticos (negociação com os sindicatos de processos de reformas antecipadas em troca de entrada de trabalhadores precários nessas empresas).
É importante lembrar que esta precariedade foi em grande medida negociada em sede de concertação social, a partir de 1986, com programas definidos e negociados dentro da União Europeia – em que sistematicamente foram usados fundos da segurança social para gerir a precariedade, isto é, criação de formas de subsídios, programas assistencialistas, lay-off (empresas entram em paragem produtiva e trabalhadores são pagos pela segurança social), subsídio parcial de desemprego (o Estado paga com o fundo da segurança social parte do salário da empresa privada) e programas assistencialistas que asseguram a reprodução social da mão-de-obra.
Quais os impactos da precariedade?
O impacto individual do trabalho precário é desumano, porque se trata da incerteza de assegurar a própria vida biológica. Ao nível social todos os indicadores de qualidade e bem-estar caem (qualidade da saúde, do sono, bem estar emocional, físico, sexual, qualidade da alimentação, saúde mental, relações familiares, etc.).
Provavelmente ao nível político teremos uma instabilidade social cada vez maior que pode ou não evoluir para situações de disrupção social/revoluções. Mas certamente que a estabilidade social – e com ela a distopia salazarista dos brandos costumes – acabou. Maior ou menor grau de estabilidade depende de muitos factores entre eles haver ou não válvulas de escape como a imigração, existência de organizações revolucionárias (último tema que os liberais conseguiram manter como tabu, depois da queda do muro, na minha opinião), taxas de urbanização, escolarização, percepção da regressão social, etc.
Paralelamente estamos a ver emergir novas formas de protesto e de organizações com um significado histórico, como é o caso de movimentos de reformados, protestos gigantescos de trabalhadores precários, organizados fora das estruturas sindicais, etc.
Esta é a primeira grande crise económica nos países centrais depois da queda do muro de Berlim e do enfraquecimento dos dois lados que mantiveram o Pacto Social na Europa – a social-democracia e os partidos comunistas de tradição estalinista. É também o fim do modelo keynesiano, enquanto garante de bem-estar social.