Entrevista de Florestan Fernandes
Por Renato de Moraes e João Marcos Coelho
Não se vê poeira sobre os milhares de livros que ocupam o pequeno e organizado ambiente que serve de biblioteca e sala de trabalho para o sociólogo Florestan Fernandes em sua casa. E não se trata de extremo zelo seu ou de asseio da empregada. Ele mesmo conta que uma momentânea desorganização dos títulos se deve à uma única intromissão desta durante sua recente ausência – de janeiro a maio últimos esteve lecionando mais uma vez na Universidade de Toronto. “Faço isso somente quando meu orçamento entra em crise”. A falta de poeira, concluo, é sinal portanto da febril atividade do ocupante que insiste num ponto: os cientistas e intelectuais dos país devem desenvolver seu talento, por menor que ele seja e enfrentar as dificuldades, por maiores que elas sejam, aqui. Aos 57 anos, aposentado compulsoriamente de sua atividade de professor da USP desde 69 e às vésperas de ter lançado seu vigésimo livro. Florestan jamais abandona o vigor das idéias, pensamentos e opiniões, de resto uma característica de sua obra. Espécie de mentor de um ativo grupo de sociólogos (Fernando Henrique Cardoso, Octávio Ianni, Luiz Pereira, Francisco Weffort, entre outros), ele só mudou de tom em três momentos do nosso encontro: ao tecer uma fina ironia a respeito dos recentes movimentos estudantis (“Ah! Quer dizer que os pais já estão deixando seus filhos voltar a fazer revolução no campus?”), ao servir prazerosamente batidas por ele próprio preparadas e no final, ao portão, indagando: “Será que saiu como vocês pretendiam? Se não saiu, a culpa é de vocês que não perguntaram o que deviam perguntar”.
Seu único lamento: a restrita vida social a que se impôs, sem saber bem porque. Coisas de sociólogo.
RM – Coincidência ou não, fatos desencadeados nos últimos dias colocaram o cientista na pauta do dia. Que papel o senhor define para ele dentro da sociedade de hoje?
FF – Há muito que se dizer sobre o papel do cientista. Numa sociedade capitalista é mais fácil utilizar as descobertas da biologia, da física e da química – porque elas acabam tendo consequências tecnológicas que são mercantilizadas – do que as da psicologia e principalmente da sociologia, da economia, da antropologia. No caso das ciências sociais, suas descobertas exigiriam planejamento racional e democrático, condições que poucas sociedades humanas oferecem. Quem perde com isso é a humanidade: estas descobertas ou não são usadas ou são de maneira negativa, como a psicologia acionada para a propaganda subliminar e tantas outras que se conhece.
JMC – Como o senhor, que teve uma participação atuante nos anos 50 e 60, vê seu, digamos, processo de marginalização nesta década?
FF – As pessoas que pensam que estou marginalizado, estão erradas. É normal numa luta política que os que não logram o que desejam sofram as consequências – isso se o regime é de exceção. Essa é a minha perspectiva. Mas não é a maneira pela qual fui tratado por um governo que combati que acho lamentável, e sim a maneira pela qual antigos colegas e companheiros evitam contato comigo. O que mostra que o intelectual brasileiro internalizou o medo de uma forma pânica e que não tem relação com o tipo de opressão existente na sociedade brasileira. Às vezes me pergunto com que reação nos deparariamos diante de uma experiência de regime nazista. As pessoas viveriam em tocas?
RM – Seria este na sua opinião o traço essencial da relação que se estabeleceu entre o intelectual e a revolução de 64?
FF – Ao mesmo tempo em que houve intelectuais que enfrentaram as perspectivas de aparecimento de um regime de exceção, houve por outro lado muitos intelectuais que disfarçadamente ou abertamente colaboraram para sua implantação. A frase famosa “sem teoria revolucionária não há revolução”, pode-se contrapor que “sem teoria contra-revolucionária não há contra-revolução”. Em média, os intelectuais falharam porque não ofereceram a resistência que deles se esperaria ante um regime de força. E sem muitas chances de desculpas: surgiram muitas oportunidades de lutar entre 64 e 68 e de 68 até 77. Todavia, ou elas foram perdidas ou mal aproveitadas.
JMC – Há quem se justifique afirmando que é preferível fazer um meio trabalho dentro da Universidade do que ser obrigado a sair dela por posturas mais radicais.
FF – O comportamento de cada indivíduo é uma questão de consciência individual. Não posso avaliar um colega meu que prefere ser neutro, entre aspas. Pode ser um mecanismo de auto-proteção. Outras vezes a pessoa de fato tem uma posição política muito moderada e não se sente posta em causa. Ou então trata-se de um cientista e laboratório, cuja linha de pensamento não é crítica. Para ele a física, química, biologia não estão sendo prejudicadas. É uma maneira equivocada de pensar, mas pensam assim. Em regra, sabe-se que este tipo de reflexão é auto-protetivo, sobre este aspecto tanto o psicológico quanto o sociólogo, o biólogo, o antropólogo convergem neste sentido: uma das reações básicas do organismo e do indivíduo é a de auto-defesa, biológica e psicológica. Não se pode condenar ninguém por isso, embora se lamente que essa reação não se eleve ao nível de consciência e que as pessoas não reflitam sobre o seu significado. Pode não estar colaborando com o sistema de uma forma direta, mas não está desempenhando o papel inerente à responsabilidade do intelectual. São coisas diferentes: uma é colaborar com o governo que envolve uma decisão consciente, quer ela seja clara ou dissimulada; outra é uma atitude de auto-defesa inconsciente em que a pessoa, mesmo não estando a colaborar, deixa de cumprir a tarefa crítica. Porque o intelectual precisa ter uma tarefa crítica, ele goste ou não. Aliás, tarefa crítica não é só uma, que só e exerce quem pensa como eu. Existem várias maneiras de reagir. A omissão é que injustificável. Já dizia o clássico Vieira: “A omissão é o pior dos pecados”.
RM – Tal situação seria um sinal de que os tempos definitivamente mudaram?
FF – Eu sei que sempre é pequeno o número de intelectuais a desempenhar seu papel exemplarmente, entre 20 e 30 por cento. E diminui muito face à vida moderna. É muito complicada a vida de um intelectual na sociedade de consumo de massa, na qual ele precisa ter um alto padrão de vida e portanto ter um alto salário e onde há pouca tolerância ao inconformismo. Apesar disso tudo, dele ser condicionado a procurar mecanismos de escape, vejo que existem entre os jovens de hoje muitos que são divergentes também e que estão cumprindo seu papel crítico. Não vejo uma diferença de natureza substantiva entre gerações, já que encontro intelectuais de diferentes formações que se polarizam politicamente, criticamente. Agora, o que aconteceu com gerações antigas, como a do professor Cruz Costa, (ex-catedrático de Filosofia na USP, autor de “Contribuição à História das Idéias no Brasil”), e com o fragmento mais radical da geração a qual eu pertenço, foi que nós tivemos que lutar contra o Estado Novo, quer dizer, tivemos uma socialização definida, enquanto entre os jovens intelectuais de hoje muitos participaram dos movimentos de 68.
JMC – A Universidade e os universitários, parecem estar sendo progressivamente impregnados pelo tecnicismo em detrimento da autêntica atuação…
FF – Uma grande parte dos que se formaram no Exterior, especialmente em ciências sociais, foi educada e treinada segundo a filosofia da “neutralidade ética”. Por essa razão atuam como se fossem cientistas de laboratório, acham que não se devem comprometer e que o trabalho deve ser, em essência, objetivo. E é uma massa que foi educada nos Estados Unidos e na Europa para se comportar assim, valorizar um erro que considero primário. Weber, que era um liberal, não um radical ou um revolucionário, dizia que o cientista não deve se confundir com o propagandista, mas também dizia que a ciência é incompatível com a irresponsabilidade. Como ser indiferente às bombas jogadas em Hiroshima e Nagasaki ou aos desrespeitos aos direitos humanos? Desde que se sabe que as descobertas feitas na área da pesquisa nuclear envolvem riscos muito graves para a humanidade e para o equilíbrio da vida, alterou-se profundamente a atitude do cientista de laboratório em relação ao uso prático da ciência, distinta, pois, da antiga ética liberal.
JMC – Falando em liberalismo: o senhor acha possível e defensável uma posição liberal no país, atualmente?
FF – Bem, há muito tempo que sou conhecido como um crítico do liberalismo. E no Brasil nós nunca tivemos liberalismo. Porque sua época áurea coincide com a da Independência. Por ser o Brasil uma sociedade escravista, coloca-se o problema; como conciliar o liberalismo com a escravidão? Posteriormente, a escravidão desaparece mas mantém-se a democracia restrita quer dizer, de uma minoria. Isso, na verdade, significa uma ditadura, já que essa minoria decide em nome do resto da população – quer exista eleição, quer não, quer exista representativo de poder, quer não. Na prática, ela opera como uma oligarquia e representa em si uma violência. Logo, esse liberalismo é um falso liberalismo porque define e defende a tomada de decisão para as pessoas tidas como cultas ou em condições de decidir em nome dos outros, enquanto a maioria é considerada inepta e incapaz por diferentes motivos. Apenas esses poucos têm o condão de saber o que se deve fazer. Para alívio da consciência popular, no Brasil todos os erros que redundaram em graves crises para a Nação foram consequêcia das decisões dessas minorias, muitas delas se julgando esclarecidas e agindo em nome do liberalismo.
RM – O senhor se referiu à sua geração, formada sob o Estado Novo e à geração recente formada sob 64 e 68. Que paralelo se poderia estabelecer entre estes dois períodos de exceção?
FF – A diferença entre um regime e outro é substantiva. Durante o Estado Novo as classes médias e altas possuiam setores profundamente conflituados com a Ditadura, enquanto o atual regime tem contato com um amplo apoio dos diferentes setores da burguesia. Ainda recentemente, quando um empresário arriscou-se a uma crítica ao governo, vários empresários reagiram, declarando ser preferível ter a atual situação do que retornar à de 64.
RM – Temor a um pretenso populismo?
FF – Não seria bem ao populismo, cujo conceito, aliás, tem sido mal empregado. Nós nunca tivemos populismo, o que tivemos foi uma demagogia que manipulava as massas populares que passou a ser descrita por este termo. O temor, na verdade, é de sair de uma democracia restrita para uma democracia ampliada na qual, naturalmente, as minorias elitistas perderiam o monopólio do poder. Para preservá-lo, usam como subterfúgio o risco de uma propalada subversão comunista ou de uma tomada do poder pelas massas, coisas que não se concretizaram. Senão as coisas teriam tomado outros rumos que os verificados em 64. Voltando ao populismo, no Brasil jamais tivemos uma eclosão de um movimento popular autêntico com lideranças nascidas das classes populares. No máximo, líderes conservadores como Getúlio, João Goulart, Jânio Quadros, Juscelino e Adhemar de Barros, alguns até pessoas muito ricas que lançavam mão da demagogia, capaz de atrair o apoio popular. Resultava uma espécie de tentativa de barganha política, algumas concessões em troca do apoio de massa. Até o movimento em que a pressão popular pareceu ameaçar as classes conservadoras, quando se alterou o comportamento e se suprimiu o demagogo e sua função. Os que se aventuraram mais acabaram ou se suicidando, ou renunciando, ou fugindo do país ou traindo o pacto demagógico. Realmente, a demagogia aqui sempre foi um instrumental para a dominação burguesa e para o comportamento conservador de outro lado, as massas nunca conseguiram condições de formar suas próprias lideranças e meios de ação. Mesmo o PTB nunca deixou de ser um partido de manipulação das massas populares por políticos de classes média e alta.
RM – O “milagre econômico” se situaria dentro dessa linhagem demagógica?
FF – Não acho que se deve enquadrá-lo como manifestação de demagogia. É um efeito de propaganda que eu chamaria de uma propaganda cínica. Não houve um milagre brasileiro, mas sim um processo de incorporação do Brasil à economia do capitalismo monopolista, às nações hegemônicas e às superpotências, absorvendo um padrão de desenvolvimento diverso daquele que tínhamos antes. Toda vez que isso ocorre, os países incorporados recebem um volume de tecnologia e de capital e dá um saldo. De imediato, cria-se uma aparente situação eufórica, em seguida o país tem que pagar a conta, quando se percebe as desvantagens. E enfrentar um longo processo que eu calculo de 15 a 25 anos para atingir a estabilização dentro do novo padrão. Todos os países que viveram o “milagre” tiveram uma fase de euforia muito curta, depois uma crise profunda e, em seguida, restabeleceram o equilíbrio já em bases novas. Nós, por azar, estamos entrando na do declínio justamente numa fase de depressão do mercado mundial, com a estagnoflação no Exterior, com os problemas de petróleo, etc. Essas normas são estabelecidas pelo país. O “milagre” é imposto por instituições mundiais. Só que os que sabiam das características e fases do processo – por informação histórica ou qualquer outra fonte – ou falaram e não foram ouvidos, ou não quiseram falar. Enfim, o “milagre” é um processo normal pelo qual o país foi incorporado ao espaço sócio-econômico cultural e político dos Estados Unidos, Europa e Japão, por último, das multinacionais.
RM – Compara-se muito o momento atual com o que se viveu em 68. Na sua opinião, quais seriam as semelhanças entre eles?
FF – Para dar uma resposta completa a tarefa se torna complicada porque havia e há muitos fatores envolvidos. Em 68 existiam movimentos de contestação cuja posição política era radical e que o governo qualificava de terroristas. Ou seja, o radicalismo de ambas as partes era muito grande. Os movimentos se qualificavam, se identificavam como revolucionários, ao mesmo tempo em que não procuravam se concentrar na cidade mas se alastrar pelo campo. Atualmente, os processos de protestos se conformam muito mais em termos de soluções dentro da ordem, quer dizer, de aceitar a idéia ditada pelo governo de que a contestação deve ser legal por um lado e não ser revanchista, por outro. Este aspecto do governo determinar os limites do protesto, é uma diferença profunda. Outra diferença profunda: em 68 os grupos radicais não procuraram apoio certo, isto é, alianças nem na própria classe nem nas outras classes, especialmente nestas. Havia uma idéia romântica de que a causa justa atrai o apoio por si mesma, o que nada mais é do que falta de experiência e socialização política. Porque era muito difícil obter adesões, principalmente nos setores de classe média e alta – que, afinal, apoiavam firmemente o governo, condicionados pelo chamado “milagre econômico” que naquele instante dava condições de repartir o bolo, cada grupo recebendo sua fatia. Embora a fatia não fosse satisfatória para os vários interesses particulares envolvidos. No fundo, havia muito medo e a preocupação fundamental dos setores conservadores de impedir o retorno à situação pré-64, começo da implantação de uma era revolucionária no país.
RM – Mas alguns indícios deixam perceber esta preocupação de abrangência nas movimentações atuais?
FF – Atualmente, os movimentos estão saindo de onde praticamente eles sempre saíram. Na história brasileira, as massas geralmente apoiam as ações das elites – neste momento começando uma nova oposição ao governo. Embora eu não saiba determinar a profundidade desta cisão, a verdade é que ela existe na medida que áreas revelam-se insatisfeitas com a política econômica do governo, com o crescimento da empresa estatal e neste sentido muito vinculadas com a pressão que as grandes corporações fazem contra este crescimento. Então, não há dúvida que por aí circulam uma porção de elementos em efervescência que podem dar margem a movimentos de oposição. Até agora, porém, o governo não parece ter perdido apoio da sociedade civil. O conflito restringe-se ao desejo de alguns setores em manter a ordem incorporando os atos institucionais à Constituição e o de outros que pretendem a volta ao chamado Estado de direito com pleno domínio dos setores privilegiados da população. Isso, é claro, significa que já não há unanimidade por parte das classes que articularam politicamente e legitimaram a contra-revolução. Quais são as consequências desta fragmentação? É difícil avaliar, por enquanto.
JMC – Poderíamos enquadrar o episódio da saída e também de atuação, do ministro Severo Gomes dentro deste prisma?
FF – Eu não dou muita importância a esse caso. Realmente, se nós tivéssemos um empresariado de forte identificação nacionalista, os empresários jamais teriam dado o apoio que deram ao movimento de 64. Muito mais relevante e importante é a posição assumida pela Igreja nos últimos tempos, os próprios protestos estudantis, as condições que foram a oposição consentida (MDB) a se radicalizar, seja através das pressões das cúpulas que querem mantê-la como um partido bem comportado, seja através da opinião das massas expressa pelo voto popular a seu favor. E, convenhamos, se esse ministro tivesse algum ponto de apoio, ele não cairia. Ou se ele caísse, detonaria uma crise. Entretanto, nada aconteceu. Talvez o que se pudesse dizer é que o atual governo tentou um processo a que nenhum outro de seu contexto se arriscou antes. Algo como um esforço maior de abranger os vários compartimentos da burguesia brasileira, mais ou menos nacionalistas e radicais. E falhou, porque não é possível conciliar os contrários: ou se tem uma política econômica imperialista ou se tem uma nacionalista. A queda do ministro sem consequências maiores apenas comprova que a corrente pró-imperialista prevalece.
JMC – Especialmente agora, durante este governo, tem-se notado a presença proeminente dos liberais, pessoas que aprovariam e aprovam a mudança do regime em 64 e que hoje despontam como eminentes democratas, a última reserva da sociedade civil etc. Tudo isso parece estranho e distorcido diante da realidade política, já que tais figuras ditas libertárias continuam vinculadas ao chamado sistema aligárquico sem que se perceba nenhuma voz à procura de saídas.
FF – O problema é o seguinte: se houvesse um setor francamente liberal nas classes médias e altas, ele iria defender a contestação dentro da ordem. Porque, se os elementos que estão divergindo do governo aceitam a idéia de que não estão imbuídos de um espírito contestador e revanchista, estão imbuídos do que? Quando se pensa que existe um regime que permite uma oposição até o limite em que ela não ultrapassa o seu consentimento, instante em que desaparece, conclui-se que a partir disso não se consegue nada. É preciso criar uma realidade política nova – este é o problema básico na sociedade brasileira. Por enquanto, o que se vê é um respaldo da parte da sociedade civil a um governo que se permite utilizar arbitrariamente seus excedentes de poder. Ora, a desobediência civil é o dever número hum para um liberal, ela não é um direito de cidadão. Claro que isso não iria acontecer na Arena como também seria difícil que acontecesse dentro do MDB. Mas, se pelo menos o processo de ruptura já estivesse adiantado, a sociedade civil hoje estaria muito mais fragmentada do que está. Logo, os setores que desaprovam o governo são minoritários e, por isso, vítimas indefesas diante dos mecanismos de repressão. Não é que eu goste disso, estou somente fazendo uma análise de sociólogo. Politicamente eu preferiria que a desobediência atingisse todos os setores da população, em extensão e em profundidade.
RM – Apregoa-se muito o espírito popular e nacionalista dos militares através da História Brasileira. Seu comportamento recente faria concluir que sua postura é quase que oposta?
FF – O problema para o sociólogo, para o antropólogo, para o psicólogo é que existem várias concepções de nacionalismo. Difícil portanto, usar uma linguagem que não dê margem à confusão. Partindo para um outra suposição, pode-se confundir desenvolvimento econômico com bem estar da Nação. Isto é, pela hipótese de que se ela der salto econômico, ganha em seguida condições para se tornar uma grande potência, realizar um destino maior. E uma ilusão, uma utopia falsa, uma falsa consciência, como diriam certos sociólogos. Tenho a impressão que esta consciência equivocada alimentou a concepção nacionalista de muitos militares. Para mim, a surpresa é verificar que tudo isso aconteça no Brasil com os militares – senão com o monopólio do poder, com o da autoridade: articulações com as grandes corporações internacionais, o país aceitando uma política que coloca a periferia do mundo capitalista como plataforma de defesa dos interesses das nações capitalistas. E principalmente as concessões que foram e estão sendo feitas às grandes corporações, às grandes organizações financeiras internacionais, às superpotências capitalistas. Tudo isso me estranha e espanta. Nesse sentido, se a gente toma como paradigma o que é um espírito nacionalista exaltado tipo De Gaulle, nós não temos um exército de De Gaulles, sequer temos um pequeno De Gaulle. Aquela noção de que cabe ao militar ser o paladino da autonomia nacional não existe no país. Não existe porque isso seria incompatível com toda a filosofia de “desenvolvimento com segurança”. Ao aceitá-la, em 64, junto com a da interdependência, abandona-se esse espírito nacionalista. A partir daí eu não diria que não haja entre os militares nenhum tipo de nacionalismo embora não seja a pessoa indicada para definir que espécie os alimenta. Enfim, esse fenômeno de omissão ante os deveres com a Nação não é exclusivamente brasileiro. Ocorre também em outros países.
RM – Conclui-se então que esta filosofia de desenvolvimento seja frontalmente oposta aos ideais revolucionários?
FF – Dentro de uma perspectiva clássica, de uma revolução burguesa européia que privilegiava os princípios do nacionalismo, o modelo da grande revolução francesa, jamais se poderia compreender isto: dissociar o desenvolvimento econômico da revolução nacional. A revolução era o eixo que determinava a importância do desenvolvimento. O que sucedeu com países como o Brasil, que aceitaram a filosofia do “desenvolvimento com segurança”, foi o contrário. Mais até: além de dissociada, a revolução não foi só posta em segundo plano, foi sufocada. Uma Nação que prefere desviar recursos para financiar a implantação de multinacionais, a infra-estrutura do desenvolvimento capitalista monopolista em vez de atender os problemas de saúde pública, educação das massas, expansão do mercado interno, etc., está ignorando a sua revolução nacional. E usa esta dissociação para privilegiar os interesses particularistas da sua burguesia, nacional e estrangeira. Se esta atitude dos militares causa espanto, é necessário que se veja que não são só os militares que participam desta filosofia. Desde a II Guerra, civis e militares passaram por um processo de reeducação no exterior, no qual foi incorporada uma filosofia às elites do país. Passou a ter maior importância a chamada defesa do mundo ocidental contra o comunismo do que a autonomia da Nação e os interesses da Nação como um todo. A revolução nacional deveria ter prioridade sobre o desenvolvimento econômico, subordiná-lo a seus objetivos, como aconteceu nos Estados Unidos à época da Independência e depois na Guerra Civil americana. Esta última constitui um exemplo: para o setor capitalista do Norte era muito mais importante a grandeza e autonomia dos Estados Unidos como Nação do que os interessados privados dos grupos poderosos, internos ou externos. Uma questão de diferença de consciência.
RM – De que maneira então o senhor definiria o nacionalismo?
FF – Para o sociólogo, o antropólogo, o psicólogo social, não há um tipo de nacionalismo. Existem vários tipos, desde o nacionalismo estreito que acaba levando ao fascismo, até o nacionalismo exaltado que almeja a autonomia nacional e quer uma burguesia forte que tenha liderança sobre o desenvolvimento do país.
RM – A burguesia brasileira tem recebido especial atenção do senhor. Como o senhor a vê?
FF – Nós ainda não tivemos uma burguesia que cumpra seu papel, não pensando numa revolução para si própria apenas, mas também levando esta revolução para as outras classes. Nós tivemos uma burguesia especulativa que preferiu vender as fábricas quando teve oportunidade e partiu para outros negócios. Ou então associou-se às grandes empresas estrangeiras. Ou transferiu os riscos, que não pretendia correr, para o Estado. O fracasso do projeto de Volta Redonda, conforme palavras do próprio Getúlio e Roberto Simonsen, atesta bem sua timidez. Lembro-me de uma conversa por mim apanhada em 65/66: um certo dia estava eu engraxando os sapatos na rua Quitanda e ouvi a discussão de três empresários, algo como “ah, eu vendo na hora. Basta vir um americano com dinheiro no bolso. O que me interessa é o lucro”. Logo, não é uma burguesia conquistadora, como dizem os franceses, é uma burguesia dependente. As Forças Armadas que correspondem a essa burguesia têm a mesma mentalidade. Não podemos exigir do militar que ele seja discrepante. Ele segue o mesmo padrão cultural, uma mesma motivação, uma outra ordem que representa uma ruptura com sua imagem no século XIX. Hoje, o militar se vincula à defesa do capitalismo na periferia contra a expansão do socialismo e acha que, cedendo aos interesses internacionais está transformando o país em grande potência, enfim realizando funções patrióticas e nacionalistas. É uma confusão generalizada que no fundo mostra que a burguesia deixou de ser uma classe revolucionária. Mas esta é uma verdade que remonta ao século XIX, quando já fazem concessões para poder exercer a liderança nacional. Na verdade, a questão é complexa porque os ritmos do capitalismo mundial são atualmente muito intensos, rápidos e profundos. Acaba sendo impossível para países como o Brasil, a Argentina, o México, se defenderem destes dinamismos com base numa ordem capitalista.
JMC – Que saídas haveriam?
FF – A única maneira de se defender contra isso é socialismo. Mas não vá se esperar isso de uma burguesia. No Chile de Allende, houve uma tentativa de transição para o socialismo, uma parte da população procurou por vias pacíficas implantar um socialismo. A experiência mostrou que a transição de um regime capitalista para um regime socialista feita desse modo é quase improvável. Pode ser que venha a dar certo, se acontecer, na Europa. Eu acho muito difícil, nas condições atuais. E a história tem sido impiedosa a esse respeito.
RM – Com relação ao poder e seus donos, há um conceito antigo de que ele sempre conduz à corrupção.
FF – Também se poderia dizer que a corrupção leva ao poder. São, portanto, interdependentes. De outro lado pode-se dizer que não é necessário que haja corrupção no poder dentro de um processo democrático estabelecido, onde a maioria possa controlar a minoria. A corrupção sempre se liga ao fato de existir sigilo no processo político. Desaparecendo um, o outro também desaparece. O mesmo se aplica aos meios privados de associação. Conclui-se que a corrupção não é inerente ao poder político, ela é a certas formas de poder. Bem, numa sociedade capitalista a corrupção é sistemática. É espantoso que os Estados Unidos com tendência a ver corrupção em todos os países capitalistas do mundo, presenciem em seu próprio território uma fantástica corrupção, denunciada por pessoas como Ralph Nader e outros que, praticamente, forjam seu prestígio com estas denúncias.
RM – A raiz dos males da história da sociedade brasileira parece estar nas nossas próprias raízes, até no controvertido “homem cordial” que o próprio Sérgio Buarque de Hollanda se encarregou de enterrar. Qual o ponto nevrálgico da questão a seu ver?
FF – Sem dúvida, no conservadorismo e na intolerância do seu obscurantismo. Tenho travado uma longa luta contra tal comportamento. Ele é monolítico e lança raízes por toda a sociedade. Por isso o liberalismo aqui foi postiço e falso, porque não penetrou nas consciências, não criou tolerâncias. As exceções aparecem sempre para confirmar a regra, o conservador que não admite uma brecha supondo que, com ela, acabou-se o mundo, que o Brasil mergulhará na completa anarquia. Tal postura é originário do mandonismo e do despotismo, enraizado desde o século XVI, crescendo com o país e não desarticulado até hoje. E vinculando ao machismo à idéia do poderoso e do adulto. Embuidas por esse conservadorismo reacionário, as classes dominantes não percebem a necessidade da mudança, que é possível ter crescimento econômico e instabilidade política. Cabe lembrar que a primeira grande greve presenciada pelo país, no começo do século XX, foi tratada como caso de polícia. Hoje, as greves estão proibidas. Ou seja, não se verificou progresso nenhum na mentalidade conservadora. E ao mesmo tempo absorvemos a ciência moderna e sua tecnologia, numa total contradição. Como conciliar as duas mentalidade e seus processos? Como conciliar o espírito crítico da filosofia, da literatura, da investigação sociológica com este comportamento conservador? É impossível. Criou-se a Universidade de São Paulo porque se pensou que ela iria ser instrumento para a dominação elitista: quando se descobriu que não ia ser o que se fez? Eliminou-se os professores que tiveram coragem de cumprir seus papéis e se submeteu a Universidade a um controle cego e externo. O que nasce de dentro da Universidade não representa o espírito dela; representa o espírito do profissional liberal, do médico, do advogado, do engenheiro, que não vive como professor, mas do seu consultório, do seu escritório. Ora, a mentalidade da Universidade é aberta à experiência nova, à imaginação criadora, à inovação que não precisa ser importada, que pode surgir aqui.
RM -Como o senhor se sente? Melancólico? Otimista? Cético?
FF – Continuo fazendo minha profissão de fé socialista, o que significa que tenho confiança no futuro. A História não morreu, no momento ela favoreceu os desígnios desta mentalidade conservadora. Se fosse possível que grandes transformações de estrutura e nas correntes históricas fossem impedidas pelas classes, a história do homem seria a história da natureza. Mesmo esta é dialética, transformadora, só que as transformações ocorrem numa escala de tempo maior, enquanto a história do homem é muito mais rápida, conforme o tipo de civilização. A nossa é de mudanças velozes, especialmente após a descoberta da ciência e da tecnologia baseada na ciência. Logo, nela é impossível a estagnação, a implantação de um regime que acaba de uma vez com todas as mudanças. Isso significa uma crise que pode afetar a mim, como afetou, impedindo de atuar. Mas ela não é o fim da transformação da civilização e das sociedades humanas. O processo continua e não se realiza apenas no Brasil; se realiza numa escala mundial. Hoje, mais do que nunca, em bases muito ricas porque o antagonismo se estabelece entre dois padrões de civilização: uma que se funda no capitalismo, outra que se funda no socialismo. Então as alternativas e perspectivas são promissoras. Estamos no limiar da história nova. Não fosse isso seriam desnecessários estes regimes. Eles não estão impedindo o futuro; estão prolongando o passado.