Odiai-vos uns aos outros
Por Florestan Fernandes
A violência destrutiva cresce mais depressa que a fome, os milhões de miseráveis ou subumanos e que a corrupção. O capitalismo selvagem encontra no Brasil o seu laboratório natural. Países capitalistas pobres e ricos carregam e multiplicam “a maldição do sistema”. Tomando-se dois extremos: os EUA concentram em suas minorias raciais e étnicas o “mundo dos outros”, dos que nasceram para por em evidência a negação da ordem, o seu avesso, o que ela seria sem a civilização. O “nosso mundo” não é o paraíso. Mas o preço de ficar dentro dele consiste na neurose, no consumo do álcool e de drogas, a convivência com uma dualidade ética descomunal, ignorada nessa escala por outras civilizações anteriores, a exportação de guerras localizadas, regionais ou mundiais de defesa da democracia e do cristianismo… Os que penetram nesse “nosso mundo”, em uma situação modesta ou em toda a plenitude, julgam-se (e são considerados no exterior), seres que descobriram a felicidade. Constituem quase 75% da nação e podem ser considerados felizes, enquanto não se questionar a natureza e o custo social dessa felicidade. Ali, perto dos EUA, deparamos com o Haiti. Lá, nem os ricos e poderosos podem imaginar o que seja felicidade. O “estado normal das coisas” é o terror. A miséria mais objeta, o servilismo mais completo, a barbárie pura se mostram sem disfarce. O homem não é lobo de outro homem. Só os que são lobos são homens. O “nosso mundo” não é a contraface do “mundo dos outros”. Os “outros” não pertencem a nenhum mundo. Trata-se da barbárie sem dimensão humana. Os melhores da terra, os únicos que são humanos por seu sofrimento e por sua coragem, que lutam sem tréguas contra a barbárie, são excluídos, temidos e dilacerados pelo terrível engenho de poder que a civilização e o colonialismo colocaram nas mãos de uma minoria intrínseca e organicamente criminosa.
O que gera o “nosso mundo” nos EUA e uma casta de “vampiros de almas” no Haiti? Os mesmos fatores, que se expressam através dos mesmos efeitos. Contradições insolúveis da herança colonial, racionalizada em um país e ignorada no outro; e a objetificação do ser humano, conduzida a seus extremos sob o capitalismo monopolista da era atual na superpotência, incubada no outro como a necessidade maldita de impedir a anarquia “lá em baixo”… Jamais a civilização alcançou tamanha perversidade no disfarce e na defesa da barbárie – nem na história antiga, nem na história moderna, diga-se o que se quiser dos romanos ou dos ingleses. A sociedade civil, engendrada pelo capital e pela dominação burguesa, distribuiu desigualmente o progresso e o aplica com critérios diferentes dentro de seus muros e na imensa periferia, que se erige no seu império.
Confrontadas ao Brasil, tais reflexões parecem incômodas e incoerentes. E a “confraternização do Natal”, o nosso estranhado amor à família, a nossa moderação “centrista” na preservação da ordem, a nossa vocação cristã? Onde estariam os “mores”, os fundamentos morais do nosso medo de ser e da nossa sociedade, se o que existe de materialismo vulgar nos EUA e de carnificina coletiva impiedosa no Haiti se reproduzissem aqui? Segundo tradição secular, “Deus corrige de noite o que fazemos de errado durante o dia”. Isso é infantilidade! A noite e o dia estão engolfados em um mesmo processo, que faz com que o desenvolvimento capitalista origine um mundo só, uma composição compacta, graças à qual o Brasil cresce e se expande como uma nação que é, dialeticamente, EUA e Haiti, não como entidades distintas ou superpostas, mas como uma unidade complexa e indissociável, em sua diversidade. O que há de EUA no Brasil sobrevive, se reforça e se agiganta à medida que aquilo que é Haiti se perpetue. Quem não acreditar nisso pergunte a sério porque “os dois Brasis” são, na verdade, um só e a seiva e os dinamismos capitalistas de ambos se entrecruzam e se fundem. A interpenetração é tão forte, que cada um deles possui algo, em proporções variáveis, de EUA e de Haiti. A civilização que importamos e que nos sateliza como parte estrutural, funcional e histórica do império, requer que caminhemos nessa direção, como povo e como nação.
O corolário matemático dessa equação – e sua comprovação experimental – procede da evolução da violência. Os bandeirantes, os senhores de escravos ou os antigos donos do poder são justamente tidos como os picos da violência. Ora, eles refletiam a barbárie de uma civilização que jamais poderia dar a medida exata dos limites da violência pessoal autodestrutiva e da violência coletiva institucional paridas pela civilização do capitalismo monopolista de nossa era. Os indígenas, os negros, os miseráveis da terra, os párias urbanos de nossos dias oferecem os contornos desse tipo de violência em massa e em profundidade. O modo pelo qual primeiro se busca desumanizar, em seguida se tenta desagregar e destruir o que “é diferente”, o “divergente”, atesta quão longe chegamos não mais do padrão do “homem lobo de outro homem”, mas na indiferença diante do que é humano. Já não poderíamos dizer, como Marx: “tudo que é humano me interessa”. No fim do século 20 e no limiar do século 21, os que são cultos e poderosos cultivam outro aforisma: “tudo que é humano me incomoda e me desilude”. Por que? Presumivelmente, porque o ser humano deixou de ser “a medida de todas as coisas”.
É dessa perspectiva que vejo o massacre infame e covarde contra os divergentes, aqueles que têm a coragem de ostentar a sua condição humana diferente e não temem o amor, na miséria ou na grandeza, porque é dentro dele e através dele que constróem o seu mundo à parte e as condições sociais e morais de sua existência. Estou naturalmente falando da morte a que foi cruelmente destinado Luiz Antonio Martinez Corrêa. O talento é malvisto em nosso meio. Vinculado a uma condição divergente, ele se alça às mentes sem corações como um crime, um crime contra a essência sagrada da sociedade, como diria o velho Durkheim, e que só poderia receber a punição exemplar. A morte pelo crime real, dos criminosos reles e de sarjeta. O talento pode ser tolerado. A divergência, em suas várias modalidades, pode ser tolerada. A fusão dos dois e, em particular, o grau de liberdade que ambos pressupõem desequilibram os pratos da balança. O atentado ao elemento sagrado da “boa sociedade”, daquela sociedade que oculta a barbárie atrás da civilização imaginária, exige o sacrifício do que atentou contra as vigas morais mestras do “nosso mundo”.
Eis aí por que tem razão José Celso Martinez Corrêa: esse é um crime político. Ele é político por várias razões. Quando a defesa da ordem passa pela condenação e pela destruição do “ofensor”, a punição é expiatória e emerge, em primeiro plano, em sua razão política essencial. Ele é um crime político porque toleramos que tal espécie de punição sangrenta se dissemine e aumente, como se fosse uma gangrena. Cada um de nós, todos nós, temos uma parcela da culpa e uma participação direta ou vicária no crime. Ele é um crime político porque é um crime da “polis”: a cidade, ao civilizar-se, solta a barbárie de suas amarras. Ficamos cúmplices dessa disseminação e multiplicação da barbárie, cooperando na fabricação das premissas históricas antiéticas do capitalismo monopolista da era atual. Os que são socialistas e, em particular, os que se dizem cristãos colaboram, assim, na criação dessa barbárie, que é requerida pelo esplendor e pela reprodução do império. Contra esse crime, não adianta perseguir “criminosos” – individuais ou coletivos, espontâneos ocasionais ou institucionais. O “criminoso” também é uma vítima, o instrumento da “punição” e, sem o saber, do “poder do império”. A alternativa está em outro padrão de civilização, em uma civilização sem barbárie, que converta cada ser humano em combatente da propagação de um humanismo socialista e em agente da transformação socialista do mundo, da conquista da liberdade com igualdade.