Quem anexa quem

15/04/2011 15:22

Ury Avnery. Gush-Shalom/Rebelión 29/03/2011.

Numa insólita sessão de madrugada, o parlamento israelense aprovou definitivamente duas irritantes leis racistas. Ambas são claramente dirigidas contra os cidadãos árabes de Israel, um quinto da população.

A primeira delas possibilita a anulação da cidadania de pessoas declaradas culpadas de crimes contra a segurança do Estado. Israel se vangloria de ter uma grande quantidade de leis como esta. A anulação da cidadania por esses motivos contraria o direito internacional e as convenções assinadas por Israel.

A segunda das leis aprovadas é mais sofisticada. Permite a comunidades com menos de 400 famílias nomear “comitês de admissão”, que podem impedir que pessoas indesejadas se incorporem à comunidade habitacional. De forma bem astuta, proíbe especificamente o rechaço dos candidatos por motivos de raça, religião, etc., mas trata-se de um parágrafo enganoso. Um solicitante árabe pode ser rechaçado simplesmente porque tem muitos filhos ou porque não cumpriu o serviço militar.

A maioria dos membros não se incomodou em apresentar-se para a votação. Afinal já era tarde e eles também têm famílias a atender. Quem sabe, alguns, inclusive podem ter se sentido envergonhados por esta votação.

Mas muito pior é a terceira lei que se espera seja aprovada em duas semanas na votação final: a lei que proíbe boicotar os assentamentos. De suas primeiras etapas até agora, o texto original deste projeto de lei foi sendo levemente refinado.

Assim como se encontra agora, a lei castigará pessoa ou associação pública que chame um boicote contra Israel, seja ele econômico, acadêmico ou cultural. Segundo esta lei, “Israel” inclui qualquer pessoa ou empresa israelense, em Israel ou em qualquer território controlado por Israel. Em breves palavras, trata-se dos assentamentos. E não somente do boicote aos produtos dos assentamentos, iniciado por Gush Shalom cerca de 13 anos atrás, mas se ocupa também da recente negativa dos atores de apresentar uma obra de teatro no assentamento de Ariel e da convocação feita por intelectuais para retirar seu apoio aos acadêmicos do Centro Universitário deste assentamento. Aplica-se também, obviamente, a qualquer apelo ao boicote de uma universidade israelense ou de uma empresa comercial israelense.

Trata-se de um ato falho da legislação por ser antidemocrático, discriminatório, anexionista e inconstitucional em seu conjunto. Qualquer pessoa tem direito a comprar ou não comprar o que deseja, de quem ela escolher. Isso é tão óbvio que não precisa de confirmação. É parte do direito à livre expressão garantido por qualquer constituição que se respeite, e um elemento essencial da economia de livre mercado.

Posso comprar na loja da esquina porque gosto do proprietário e evitar o supermercado na frente porque explora os seus empregados. As empresas gastam enormes quantias de dinheiro para me convencer a comprar seus produtos no lugar de outros.

O que acontece com as campanhas de motivação ideológica? Anos atrás, durante uma visita a Nova Iorque, estava determinado a não comprar uvas produzidas na Califórnia, porque os donos oprimiam os trabalhadores imigrantes mexicanos. Este boicote se prolongou durante muito tempo e, se não estiver errado, foi coroado de sucesso. Ninguém se atreveu a sugerir que o boicote deveria ser declarado ilegal.

Aqui em Israel, os rabinos de muitas comunidades levantam faixas pedindo a seus fiéis que não comprem em certas lojas, que acreditam não serem “kosher”, ou não suficientemente “kosher”. Estas convocações são comuns. Estas manifestações são totalmente compatíveis com os direitos humanos. Cidadãos para os quais os cervos são abomináveis têm direito a serem informados que lojas vendem carne de cervo e quais não. Até onde sei, ninguém em Israel tem impugnado este direito.

Cedo ou tarde, alguns grupos anti-religiosos divulgarão convocações para boicotar comércios “kosher”, que pagam aos rabinos – alguns deles os mais intolerantes de sua espécie – grandes quantias de dinheiro em troca de sua certidão de “kashrut”. Desta forma, apóiam abertamente a instituição religiosa que chama a transformar Israel num “Estado Halajá” – o equivalente judeu de um “Estado muçulmano sob a lei da Sharia”. Os salários de vários milhares de supervisores da Kashrut e miríades de outros funcionários religiosos são pagos pelo público, leigo em sua maioria.

Então, o que há a respeito do boicote anti-rabínico? Não pode ser proibido, pois religiosos e anti-religiosos tem igualmente garantidos os seus direitos. Assim, parece que nem todos os boicotes por motivos ideológicos estão errados. Nem tampouco os iniciadores deste projeto de lei em particular – os racistas da escola de Lieberman, os direitistas do Likud e os “centristas” do Kadima – reivindicam isso. Para eles, o boicote só é um erro quando se dirige contra as políticas nacionalistas e anexionistas deste governo.

Isso é explicitado na própria lei. Os boicotes são ilegais quando se dirigem contra o Estado de Israel e não, por exemplo, quando o Estado de Israel chama a um boicote contra outro Estado. Nenhum israelense em sã consciência condenaria em caráter retroativo o boicote imposto pelos judeus do mundo à Alemanha imediatamente após os nazistas chegarem ao poder – um boicote que serviu de pretexto a Josef Goebbels para desencadear, em 1º de abril de 1933, o primeiro boicote nazista contra os judeus (“Deutsche wehrt euch! Kauft nicht bei Juden!”).

Tampouco nenhum sionista honesto achou errôneas as medidas de boicote aprovadas pelo Congresso contra a União Soviética, sob a intensa pressão judaica, a fim de derrubar as barreiras à imigração livre para os judeus. Estas medidas tiveram grande sucesso.

Não menos vitorioso foi o boicote mundial contra o regime da apartheid na África do Sul. Um boicote muito bem recebido pelo movimento de libertação da África do Sul, apesar de prejudicar os trabalhadores africanos contratados pelos empresários brancos (um argumento agora repetido pelos colonos israelenses que exploram trabalhadores palestinos com salários de fome).

Por isso, os boicotes políticos não são assim tão ruins, sempre e quando se dirigem contra os demais. É a antiga moral da tradição colonial “Se eu roubo a sua vaca está tudo certo, mas se você rouba a minha está errado”.

Os direitistas podem chamar à ação contra as organizações de esquerda. Os esquerdistas não podem chamar à ação contra as organizações de direita. Isso é bem simples.

Mas não só a lei é antidemocrática e discriminatória, como é também anexionista. Graças a um simples truque semântico, e em menos de uma frase, os legisladores fazem o que sucessivos governos israelenses não se atreveram a fazer e é anexar a Israel os territórios palestinos ocupados.

Ou talvez é ao contrário: são as colônias as que anexam Israel. A palavra “assentamentos” não aparece no texto. Deus não quis isso. Como tampouco a palavra “árabes” não aparece em nenhuma das outras leis. Por outro lado, o texto se limita a estabelecer que os apelos ao boicote deIsrael, proibidos pela lei, incluem o boicote das instituições israelenses e das empresas em todos os territórios controlados por Israel. Isso inclui,obviamente, Cisjordânia, Jerusalém Oriental e as colinas de Golã. Este é o cerne da questão. O resto é disfarce.

Os promotores desta lei querem silenciar nosso apelo a boicotar os assentamentos, que está ganhando impulso no mundo todo. A ironia do caso é que podem conseguir exatamente o contrário.

Quando começamos o boicote, nosso objetivo declarado era traçar uma linha clara entre Israel em suas fronteiras reconhecidas – a Linha Verde – e os assentamentos. Não advogamos por um boicote do Estado de Israel que, para nós, é o que envia uma mensagem equivocada e empurra os centristas de Israel nos braços da extrema direita (“O mundo inteiro está contra nós!”), um boicote dos assentamentos, acreditamos, ajuda a restabelecer a Linha Verde e a fazer uma distinção clara.

Esta lei faz exatamente o contrário. Ao apagar a linha entre o Estado de Israel e os assentamentos cai nas mãos dos que convocam um boicote de Israel na crença (errônea, eu creio) de que um Estado de apartheid unificado aplanaria o caminho a um futuro democrático.

Recentemente, um juiz francês de Grenoble mostrou a loucura desta lei. O incidente envolve a empresa israelense de exportação quase monopolista de produtos agrícolas, Agrexco. O juiz suspeita que a companhia cometeu uma fraude, já que os produtos dos assentamentos foram falsamente declarados como procedentes de Israel. Bom, nada impede que isso possa ser, também, uma fraude na medida em que as exportações de Israel para a Europa têm direito a um tratamento preferencial que os produtos dos assentamentos não têm. Estes incidentes estão ocorrendo cada vez mais em vários países europeus. Esta lei fará com que se multipliquem.

Na versão original, os que boicotam cometeriam um crime passível de penas e seriam multados. Isso nos causaria grande alegria, porque nossa negativa no que diz respeito ao pagamento das multas e a subseqüente ordem de prisão iriam dramatizar a situação.

Esta cláusula foi omitida. Mas cada empresa particular dos assentamentos, e de fato cada colono que se sinta atingido pelo boicote, pode pedir formas de reparação – sem limite pelos danos – a qualquer grupo e a qualquer pessoa relacionada com a convocação [do boicote]. Dado que os colonos estão fortemente organizados e desfrutam de fundos ilimitados de todo tipo provenientes de proprietários de cassinos e de turvos comerciantes do sexo, podem apresentar milhares de demandas e, praticamente, paralisar o movimento do boicote. E, obviamente, este é o objetivo.

A luta está longe de terminar. Após a promulgação da lei apelaremos à Suprema Corte de Justiça para que a anule, por ser contrária aos princípios fundamentais e constitucionais de Israel e dos direitos humanos.

Como costumava dizer Menajen Begin: “Ainda há juízes em Jerusalém!” Ou não?

Disponível em: http://groups.google.com/group/chiapas-palestina/browse_thread/thread/60bc48b5c2a348ff Acesso em: 15 abr 2011