Aos e às ninguéns que ainda cozinham
Por Bianca Briguglio e Júlia Zenni Lodetti
Richard Wrangham publicou um livro em 2009 intitulado “Pegando fogo: por que cozinhar nos tornou humanos”. Neste trabalho, o antropólogo afirma que o domínio do fogo e o desenvolvimento da capacidade de cozinhar carnes e outros alimentos promoveu mudanças físicas, fisiológicas e psíquicas ao longo de milhares de anos, que culminaram na forma que assumimos hoje. “Acredito que o momento da transformação que deu origem ao gênero Homo, uma das grandes transições na história da vida, brotou do controle do fogo e do advento de refeições cozidas. O cozimento aumentou o valor da comida. Ele mudou nossos corpos, nosso cérebro, nosso uso do tempo e nossas vidas sociais”, afirma o autor já na introdução.
Pegar os alimentos crus e transformá-los em refeições é um processo que demanda força física, destreza, habilidade, conhecimentos, algum grau de familiaridade com os alimentos e com os instrumentos culinários, como facas, panelas, frigideiras e fornos. É preciso conhecer a procedência dos insumos, suas quantidades, mensurar o tempo de preparo, dominar técnicas de manipulá-los e, finalmente, agir sobre eles para preparar a refeição. Isso acontece na cozinha doméstica e na profissional.
A comida reflete as tradições e a identidade de um povo, e está profundamente enraizada nas dimensões sociais e históricas de uma sociedade. As tradições culinárias não são apenas variações de receitas, mas também ingredientes, métodos de preparo, formas de sociabilidade e sistemas de significados que se baseiam nas características territoriais e nas experiências. A culinária é uma expressão da cultura de um povo em um determinado território e num momento histórico.
Ela é presente na vida de todas as pessoas do planeta, pois todos os seres humanos precisam se alimentar para viver. Seja em grandes almoços familiares, sozinho/a, em casa ou em outro lugar, rápido ou devagar, todo mundo come. Ou melhor, todo mundo precisa comer. Lembremos que o Brasil tem 21 milhões de pessoas que não têm o que comer todos os dias e 70,3 milhões se encontram em situação de insegurança alimentar, segundo relatório da FAO (Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura).
É evidente que a alimentação também é permeada e atravessada pelas relações de produção e de mercado, pela contradição da relação entre quem detém os meios de produção e quem produz valor, uma vez que está inserida no sistema capitalista. Na lógica de exploração do capital, as cozinhas profissionais tornam-se espaços de produção que também são pautados por critérios como efetividade, eficácia e a dinâmica de reduzir custos para aumentar lucro – o que frequentemente se traduz na redução do quadro de profissionais e superexploração daqueles que permanecem.
É por estar inserida nessa lógica de produção que emerge um modelo “ideal” de restaurantes, do ponto de vista do capital: as chamadas dark kitchens. Trata-se de uma tentativa de reduzir custos ao máximo: mantém-se a cozinha, remove-se o salão. Ali apenas se produzem as refeições, e o consumo se dá em outro espaço. Elas dependem do serviço de entrega, o famoso delivery, que leva a refeição diretamente para o cliente. A separação entre a cozinha e o cliente aumenta. Quem consome a comida é totalmente apartado de seu processo de produção.
As dark kitchens, apesar de trazerem uma série de problemas que passam pelas condições de funcionamento, relações trabalhistas, salubridade, adequação às normas dos estabelecimentos comerciais, desafios urbanísticos, entre muitos outros, já são tratadas pelo mercado como uma tendência e, cada vez mais, vem sendo pintadas como uma inovação positiva ao mercado de alimentação. Esse “modelo de negócio” adiciona uma camada à invisibilidade do trabalho nas cozinhas, ficando velado até mesmo para fiscalizações sanitárias ou trabalhistas.
Numa dinâmica em que o ato de cozinhar é praticamente esvaziado de seu valor cultural e afetivo, estes estabelecimentos reúnem, muitas vezes, mais de um tipo de culinária, geralmente galpões com várias cozinhas diferentes, sem fachada, sem espaço para consumo, e até sem identificação. Em muitas localidades, essas cozinhas são instaladas em bairros residenciais e trazem problemas para o entorno, seja pelo seu funcionamento noturno, seja pela concentração de entregadores.
Devido à frequente falta de estrutura para que estes aguardem o que será entregue, não é incomum observá-los esperando em calçadas, nas ruas, sujeitos à violência de quem não lhes quer ali. Nesta mesma semana, mais um entregador que estava trabalhando foi atacado por um morador enraivecido com sua presença. Esta notícia ter sido veiculada na mesma semana que a declaração do presidente do iFood não é uma simples coincidência, já que a violência direcionada aos entregadores de aplicativos é uma tendência que tem se mostrado crescente*.
Nas poucas pesquisas que buscam estudar o trabalho de cozinheiros e cozinheiras, há frequentemente a reiteração de que este é um ofício invisibilizado. Seja por estar intrinsecamente relacionado ao trabalho doméstico predominantemente feminino, seja por se tratar de um serviço realizado em um ambiente fechado, oculto aos olhos dos clientes, o foco está no resultado final e não no processo, isto é, no prato pronto e não no trabalho necessário para fazê-lo.
Trabalhadoras e trabalhadores que atuam em cozinhas de restaurantes, grandes ou pequenos, e quem realiza entregas por aplicativos de delivery são praticamente passíveis de esquecimento total. O aplicativo de entregas – veja bem: não se trata de um aplicativo de alimentação, mas de entregas – representa a fetichização total de um serviço de alimentação, na qual a comida aparece pronta quase como mágica. Afinal, quando a refeição é comprada no aplicativo, não há contato algum com o setor da produção. No máximo o cliente encontra o entregador – e olhe lá.
A impactante, mas não surpreendente, colocação do presidente do Ifood só reforça essa argumentação. Ele provavelmente acredita que as pessoas deixarem de cozinhar em casa para pedir comida pronta que é preparada nessas condições problemáticas (para dizer o mínimo) é um grande avanço social. Que cozinhar em casa é perder tempo. E ele não é o único a pensar assim. Considerando um recorte de gênero, os homens tendem a cozinhar muito menos em casa do que as mulheres, e portanto são mais “livres” para dedicarem seu tempo para outras atividades enquanto suas companheiras, mães, esposas, filhas, irmãs, preparam suas refeições.
A ideia de que cozinhar em casa teria o mesmo custo financeiro do que pedir a comida pronta só pode ser concebida se a exploração dos milhares de cozinheiros e cozinheiras se intensifique ainda mais, seus salários ainda mais rebaixados, suas condições de trabalho ainda piores. Não há outro caminho para manter a margem de lucro do dono da cozinha (comum ou dark) e do iFood, e ainda competir com os preços dos alimentos antes de serem preparados. Mais do que um ataque à culinária doméstica e sua importância para as famílias e para a sociedade, a fala do presidente aponta para o incremento da superexploração e a deterioração das condições de trabalho de todo este segmento profissional. E o assustador é que ele tem razão: a tendência é justamente essa.
A manchete da Folha de São Paulo destaca: “Em dez anos, ninguém vai mais cozinhar”. A reação do público foi bem ruim. O presidente rapidamente procurou se justificar, afirmando que não estava atacando a cozinha doméstica. Tratava-se apenas de afirmar que montar uma cozinha, comprar alimentos em grande quantidade, contratar funcionários, preparar refeições, servi-las e entregá-las vai custar o mesmo do que cozinhar em casa. Na verdade, é mais do que uma colocação, é uma projeção, uma expectativa de tom positivo. Ninguém mais vai cozinhar em casa porque alguém vai cozinhar fora de casa. São justamente essas pessoas que sustentam o iFood, trabalhando em jornadas extensas (muitas vezes para além do que a lei prevê), em condições precárias e com baixíssimos salários. Ora, o que vai ser entregue senão a comida preparada por alguém, em alguma cozinha – seja ela de alto padrão, estruturada, precária, dark ou onde seja?
Não à toa, o presidente do iFood finaliza a entrevista propagando a palavra da “legislação moderna e flexível”, sugerindo que não se repita a “fórmula da CLT”. Ou seja, o receio é que deixe de ganhar massivamente com a exploração desmedida dos trabalhadores desprovidos de direitos. Diz defender emprego, salário e previdência, como se fosse um grande presente, fazendo coro com os empresários que enxergam nos direitos trabalhistas e na saúde dos trabalhadores obstáculos ao lucro e ao progresso. A verdade é que sua fala não ataca a cozinha doméstica, mas sua ação e a da sua empresa atacam diretamente cozinheiros e cozinheiras, chefs, auxiliares, ajudantes, garçons, garçonetes e toda a miríade de trabalhadores das cozinhas e da alimentação, que diariamente colocam sua força, inteligência e capacidades à serviço do nobre propósito de alimentar outras pessoas.
A cozinha sempre vai existir. Os direitos dos trabalhadores talvez não. Talvez, o que o presidente do iFood tenha pensado ao dizer que em dez anos ninguém mais vai cozinhar, afinal, é que em dez anos alguém vai cozinhar, mas num contexto totalmente desvinculado da cultura, em condições ainda piores, num formato de trabalho ainda mais precário. E que, para ele, isso é bom.
*Dessa vez, como em muitas outras, o trabalhador era uma pessoa negra, o que levou a brigada militar de Porto Alegre a concluir que quem deveria ser preso e controlado era ele, mesmo sendo a vítima de um agressor branco. São inúmeros os casos, em diferentes estados do Brasil, em grande parte atravessados por um preconceito racial evidente. Alguns estão listados aqui:
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Data de publicação: 22/02/2024