Aos e às ninguéns que ainda cozinham

27/02/2024 15:34

Fonte: Prefeitura de Marabá

Por Bianca Briguglio e Júlia Zenni Lodetti

Richard Wrangham publicou um livro em 2009 intitulado “Pegando fogo: por que cozinhar nos tornou humanos”. Neste trabalho, o antropólogo afirma que o domínio do fogo e o desenvolvimento da capacidade de cozinhar carnes e outros alimentos promoveu mudanças físicas, fisiológicas e psíquicas ao longo de milhares de anos, que culminaram na forma que assumimos hoje. “Acredito que o momento da transformação que deu origem ao gênero Homo, uma das grandes transições na história da vida, brotou do controle do fogo e do advento de refeições cozidas. O cozimento aumentou o valor da comida. Ele mudou nossos corpos, nosso cérebro, nosso uso do tempo e nossas vidas sociais”, afirma o autor já na introdução.

Pegar os alimentos crus e transformá-los em refeições é um processo que demanda força física, destreza, habilidade, conhecimentos, algum grau de familiaridade com os alimentos e com os instrumentos culinários, como facas, panelas, frigideiras e fornos. É preciso conhecer a procedência dos insumos, suas quantidades, mensurar o tempo de preparo, dominar técnicas de manipulá-los e, finalmente, agir sobre eles para preparar a refeição. Isso acontece na cozinha doméstica e na profissional.

A comida reflete as tradições e a identidade de um povo, e está profundamente enraizada nas dimensões sociais e históricas de uma sociedade. As tradições culinárias não são apenas variações de receitas, mas também ingredientes, métodos de preparo, formas de sociabilidade e sistemas de significados que se baseiam nas características territoriais e nas experiências. A culinária é uma expressão da cultura de um povo em um determinado território e num momento histórico.

Ela é presente na vida de todas as pessoas do planeta, pois todos os seres humanos precisam se alimentar para viver. Seja em grandes almoços familiares, sozinho/a, em casa ou em outro lugar, rápido ou devagar, todo mundo come. Ou melhor, todo mundo precisa comer. Lembremos que o Brasil tem 21 milhões de pessoas que não têm o que comer todos os dias e 70,3 milhões se encontram em situação de insegurança alimentar, segundo relatório da FAO (Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura).

É evidente que a alimentação também é permeada e atravessada pelas relações de produção e de mercado, pela contradição da relação entre quem detém os meios de produção e quem produz valor, uma vez que está inserida no sistema capitalista. Na lógica de exploração do capital, as cozinhas profissionais tornam-se espaços de produção que também são pautados por critérios como efetividade, eficácia e a dinâmica de reduzir custos para aumentar lucro – o que frequentemente se traduz na redução do quadro de profissionais e superexploração daqueles que permanecem.

É por estar inserida nessa lógica de produção que emerge um modelo “ideal” de restaurantes, do ponto de vista do capital: as chamadas dark kitchens. Trata-se de uma tentativa de reduzir custos ao máximo: mantém-se a cozinha, remove-se o salão. Ali apenas se produzem as refeições, e o consumo se dá em outro espaço. Elas dependem do serviço de entrega, o famoso delivery, que leva a refeição diretamente para o cliente. A separação entre a cozinha e o cliente aumenta. Quem consome a comida é totalmente apartado de seu processo de produção.

As dark kitchens, apesar de trazerem uma série de problemas que passam pelas condições de funcionamento, relações trabalhistas, salubridade, adequação às normas dos estabelecimentos comerciais, desafios urbanísticos, entre muitos outros, já são tratadas pelo mercado como uma tendência e, cada vez mais, vem sendo pintadas como uma inovação positiva ao mercado de alimentação. Esse “modelo de negócio” adiciona uma camada à invisibilidade do trabalho nas cozinhas, ficando velado até mesmo para fiscalizações sanitárias ou trabalhistas.

Numa dinâmica em que o ato de cozinhar é praticamente esvaziado de seu valor cultural e afetivo, estes estabelecimentos reúnem, muitas vezes, mais de um tipo de culinária, geralmente galpões com várias cozinhas diferentes, sem fachada, sem espaço para consumo, e até sem identificação. Em muitas localidades, essas cozinhas são instaladas em bairros residenciais e trazem problemas para o entorno, seja pelo seu funcionamento noturno, seja pela concentração de entregadores.

Devido à frequente falta de estrutura para que estes aguardem o que será entregue, não é incomum observá-los esperando em calçadas, nas ruas, sujeitos à violência de quem não lhes quer ali. Nesta mesma semana, mais um entregador que estava trabalhando foi atacado por um morador enraivecido com sua presença. Esta notícia ter sido veiculada na mesma semana que a declaração do presidente do iFood não é uma simples coincidência, já que a violência direcionada aos entregadores de aplicativos é uma tendência que tem se mostrado crescente*.

Nas poucas pesquisas que buscam estudar o trabalho de cozinheiros e cozinheiras, há frequentemente a reiteração de que este é um ofício invisibilizado. Seja por estar intrinsecamente relacionado ao trabalho doméstico predominantemente feminino, seja por se tratar de um serviço realizado em um ambiente fechado, oculto aos olhos dos clientes, o foco está no resultado final e não no processo, isto é, no prato pronto e não no trabalho necessário para fazê-lo.

Trabalhadoras e trabalhadores que atuam em cozinhas de restaurantes, grandes ou pequenos, e quem realiza entregas por aplicativos de delivery são praticamente passíveis de esquecimento total. O aplicativo de entregas – veja bem: não se trata de um aplicativo de alimentação, mas de entregas – representa a fetichização total de um serviço de alimentação, na qual a comida aparece pronta quase como mágica. Afinal, quando a refeição é comprada no aplicativo, não há contato algum com o setor da produção. No máximo o cliente encontra o entregador – e olhe lá.

A impactante, mas não surpreendente, colocação do presidente do Ifood só reforça essa argumentação. Ele provavelmente acredita que as pessoas deixarem de cozinhar em casa para pedir comida pronta que é preparada nessas condições problemáticas (para dizer o mínimo) é um grande avanço social. Que cozinhar em casa é perder tempo. E ele não é o único a pensar assim. Considerando um recorte de gênero, os homens tendem a cozinhar muito menos em casa do que as mulheres, e portanto são mais “livres” para dedicarem seu tempo para outras atividades enquanto suas companheiras, mães, esposas, filhas, irmãs, preparam suas refeições.

A ideia de que cozinhar em casa teria o mesmo custo financeiro do que pedir a comida pronta só pode ser concebida se a exploração dos milhares de cozinheiros e cozinheiras se intensifique ainda mais, seus salários ainda mais rebaixados, suas condições de trabalho ainda piores. Não há outro caminho para manter a margem de lucro do dono da cozinha (comum ou dark) e do iFood, e ainda competir com os preços dos alimentos antes de serem preparados. Mais do que um ataque à culinária doméstica e sua importância para as famílias e para a sociedade, a fala do presidente aponta para o incremento da superexploração e a deterioração das condições de trabalho de todo este segmento profissional. E o assustador é que ele tem razão: a tendência é justamente essa.

A manchete da Folha de São Paulo destaca: “Em dez anos, ninguém vai mais cozinhar”. A reação do público foi bem ruim. O presidente rapidamente procurou se justificar, afirmando que não estava atacando a cozinha doméstica. Tratava-se apenas de afirmar que montar uma cozinha, comprar alimentos em grande quantidade, contratar funcionários, preparar refeições, servi-las e entregá-las vai custar o mesmo do que cozinhar em casa. Na verdade, é mais do que uma colocação, é uma projeção, uma expectativa de tom positivo. Ninguém mais vai cozinhar em casa porque alguém vai cozinhar fora de casa. São justamente essas pessoas que sustentam o iFood, trabalhando em jornadas extensas (muitas vezes para além do que a lei prevê), em condições precárias e com baixíssimos salários. Ora, o que vai ser entregue senão a comida preparada por alguém, em alguma cozinha – seja ela de alto padrão, estruturada, precária, dark ou onde seja?

Não à toa, o presidente do iFood finaliza a entrevista propagando a palavra da “legislação moderna e flexível”, sugerindo que não se repita a “fórmula da CLT”. Ou seja, o receio é que deixe de ganhar massivamente com a exploração desmedida dos trabalhadores desprovidos de direitos. Diz defender emprego, salário e previdência, como se fosse um grande presente, fazendo coro com os empresários que enxergam nos direitos trabalhistas e na saúde dos trabalhadores obstáculos ao lucro e ao progresso. A verdade é que sua fala não ataca a cozinha doméstica, mas sua ação e a da sua empresa atacam diretamente cozinheiros e cozinheiras, chefs, auxiliares, ajudantes, garçons, garçonetes e toda a miríade de trabalhadores das cozinhas e da alimentação, que diariamente colocam sua força, inteligência e capacidades à serviço do nobre propósito de alimentar outras pessoas.

A cozinha sempre vai existir. Os direitos dos trabalhadores talvez não. Talvez, o que o presidente do iFood tenha pensado ao dizer que em dez anos ninguém mais vai cozinhar, afinal, é que em dez anos alguém vai cozinhar, mas num contexto totalmente desvinculado da cultura, em condições ainda piores, num formato de trabalho ainda mais precário. E que, para ele, isso é bom.

*Dessa vez, como em muitas outras, o trabalhador era uma pessoa negra, o que levou a brigada militar de Porto Alegre a concluir que quem deveria ser preso e controlado era ele, mesmo sendo a vítima de um agressor branco. São inúmeros os casos, em diferentes estados do Brasil, em grande parte atravessados por um preconceito racial evidente. Alguns estão listados aqui:

BH: motoboy foi atacado com canivete em discussão, indica defesa

Após cobrar pagamento, entregador em Manaus é atacado por cliente e, imobilizado no chão, pede socorro

Cliente arremessa açaí em motoboy na Paraíba, caso repercute no Brasil e motociclistas fazem protesto

Entregador agredido: “Tenho que processar ou vira costume pegar pobre”

Vídeo: entregador é atacado por cliente: ‘Aqui é área de milícia’

‘Ela me tratou como se eu fosse escravo’, diz entregador agredido por moradora no Rio

Entregador é impedido de subir em elevador de prédio no RJ e denuncia racismo

‘Pulando que nem macaco’: entregador negro é alvo de racismo em Pinheiros, São Paulo

Entregador sofre ofensas racistas em condomínio de Valinhos; VÍDEO

Entregador é alvo de ataques racistas por adolescentes no interior de SP: ‘preto, macaco, fedido’

Data de publicação: 22/02/2024

O Estado e a educação na perspectiva da classe trabalhadora

12/11/2013 17:04

Por FERNANDO PONTE DE SOUSA

Doutor em Psicologia Social pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP).
Professor do Programa de Pós-Graduação em Sociologia Política da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC).

 

Neste artigo, destacam-se alguns autores que questionam a categoria trabalho como centralidade e outros que criticam tal posição, nesta direção, procura-se situar outra abrangência para o debate. Trata-se de sugerir que, sem considerar o caráter histórico-cultural, o trabalho, como princípio positivo, torna-se uma idealização inclusive como princípio educativo reivindica a perspectiva da classe trabalhadora. Ou seja, se não se considera seu conceito como criação de valor, a emancipação formativa reduz-se ao plano da consciência, perde sua ontologia. Nesse âmbito, a centralidade política do capital é a substância do que parece ser a retomada da centralidade do trabalho. O seu real antagonismo é colocar o Estado e a educação sob outra centralidade, a teoria revolucionária como princípio educativo orientador.

Para inteiro teor ACESSE AQUI

Black Blocs: A origem da tática que causa polêmica na esquerda

11/10/2013 12:33

BLACK BLOCS, LIÇÕES DO PASSADO, DESAFIOS DO FUTURO

Por BRUNO FIUZA

Jornalista, historiador e mestrando em História Econômica na Universidade de São Paulo

Uma das grandes novidades que as manifestações de junho de 2013 introduziram no panorama político brasileiro foi a dimensão e a popularidade que a tática black bloc ganhou no país. Repito: dimensão e popularidade – pois, ao contrário do que muita gente pensa, esta não foi a primeira vez que grupos se organizaram desta forma no Brasil, e muito menos no mundo. Aliás, uma das questões que mais saltam aos olhos no debate sobre os black blocs no Brasil é a impressionante falta de disposição dos críticos em se informar sobre essa tática militante que existe há mais de 30 anos. É claro que ninguém que conhecia a história da tática black bloc quando ela começou a ganhar popularidade no Brasil esperava que os setores dominantes da sociedade nacional tivessem algum conhecimento sobre o assunto.
Surgida no seio de uma vertente alternativa da esquerda europeia no início da década de 1980, a tática black bloc permaneceu muito pouco conhecida fora do Velho Continente até o fim do século XX. Foi só com a formação de um black bloc durante as manifestações contra a OMC em Seattle, em 1999, que as máscaras pretas ganharam as manchetes da imprensa mundial. Natural, portanto, que muita gente ache que a tática tenha surgido com o chamado “movimento antiglobalização” e tenha se baseado, desde o início, na destruição dos símbolos do capitalismo. O que realmente assusta é a ignorância e a falta de disposição de se informar sobre o assunto demonstradas por certos expoentes e segmentos da esquerda tradicional brasileira. O desconhecimento e a falta de informação levaram grandes representantes do pensamento crítico brasileiro ao extremo de qualificar a tática black bloc de “fascista”.
Ao se expressarem nesses termos, esses grandes lutadores, que merecem todo o respeito pelas inúmeras contribuições que deram à organização da classe trabalhadora no Brasil ao longo de suas vidas, caíram na armadilha de reproduzir o discurso da classe dominante diante de toda forma de contestação da ordem vigente que não pode ser imediatamente enquadrada em categorias e rótulos familiares.
Ao não compreenderem a novidade do fenômeno tentaram enquadrá-lo à força em esquemas conhecidos.

FETICHIZAÇÃO

Essa incompreensão aparece, de cara, na própria linguagem usada tanto pela mídia conservadora quanto por certos setores da esquerda tradicional para se referir à tática black bloc.
Em primeiro lugar, usam um artigo definido e letras maiúsculas para se referir ao objeto, como se “o Black Bloc” fosse uma organização estável, articulada a partir de algum obscuro comando central e que pressupusesse algum tipo de filiação permanente. Ora, tratar um black bloc desta forma seria o mesmo que tratar uma greve, um piquete ou uma panfletagem como um movimento. Talvez a melhor forma de começar a desfazer os mal-entendidos sobre os black blocs seja combater a fetichização do termo. Como chegou ao Brasil por influência da experiência americana, essa tática manteve por aqui seu nome em inglês, mas não é preciso muito esforço para traduzir a expressão.
Por mais redundante e bobo que possa parecer, nunca é demais lembrar que um “black bloc” (assim, com artigo indefinido e em letras minúsculas) é um “bloco negro”, ou seja: um grupo de militantes que optam por se vestir de negro e cobrir o rosto com máscaras da mesma cor para evitar serem identificados e perseguidos pelas forças da repressão. Fazer isso não significa se filiar a uma determinada organização ou movimento. Da mesma forma que operários que decidem fazer um piquete para impedir a entrada de outros trabalhadores em uma fábrica em greve não deixam de fazer parte de seus respectivos sindicatos para ingressar em uma misteriosa sociedade secreta.
Eles apenas optaram por uma determinada tática de luta. É exatamente o que fazem os militantes que decidem formar um bloco negro (leia-se, “black bloc”) durante uma manifestação.
Não há dúvida de que a opção pelo anonimato e a disposição para o enfrentamento com a polícia são peculiaridades que diferenciam profundamente o bloco negro de outras táticas, mas nem por isso a opção por esse tipo de ação dá margem para confundi-la com um movimento.
Aí entramos em um segundo ponto fundamental para a discussão da tática black bloc: seus métodos. De cara, é preciso esclarecer que os próprios métodos dos black blocs mudaram ao longo do tempo e por isso é fundamental conhecer o contexto histórico, político e social em que nasceu e se desenvolveu essa tática.

A ORIGEM

Os primeiros black blocs surgiram na então Alemanha Ocidental, no início dos anos 1980, no seio do movimento autonomista daquele país.
Como o movimento autonomista europeu é muito pouco conhecido no Brasil (para não dizer completamente desconhecido), quem quiser se informar melhor sobre o assunto pode recorrer a um ótimo livro sobre o tema escrito pelo militante e sociólogo americano George Katsiaficas: “The Subversion of Politics – European Autonomous Social Movements and the Decolonization of Everyday Life”, disponível para download no site do autor (http://www.eroseffect.com).
Surgido a partir da experiência da autonomia operária na Itália dos anos 1970, o autonomismo se espalhou pela Europa ao longo das décadas de 1970 e 1980.
Um dos países onde o movimento mais se desenvolveu foi na Alemanha. Fiel ao espírito revolucionário original do marxismo, mas renegando o fetiche pelo poder das burocracias sindicais e partidárias, o autonomismo se desenvolveu como um conjunto de experimentos sociais organizados por setores que optaram por se manter à margem do modo de vida dominante imposto pelo capitalismo e criar focos de sociabilidade alternativos no seio das próprias sociedades capitalistas, mas pautados por valores e práticas opostos aos dominantes.
Na Alemanha Ocidental, o movimento autonomista surgiu no fim dos anos 1970, quando grupos começaram a organizar ações diretas contra a construção de usinas nucleares no interior do país por meio da criação de acampamentos nos terrenos onde as centrais seriam erguidas.
O mais famoso deles foi a República Livre de Wendland, um acampamento criado em maio de 1980 na cidade de Gorleben, na região de Wendland, no norte da Alemanha, onde estava prevista a construção de uma usina nuclear. Enquanto os acampamentos antinucleares surgiam no interior da Alemanha Ocidental, em grandes cidades, como Berlim e Hamburgo, grupos de jovens e excluídos começaram a ocupar imóveis vazios e transformá-los em moradias coletivas e centros sociais autônomos. Assim nasceram os primeiros squats alemães, inspirados pela experiência de grupos que já faziam isso havia anos na Holanda e na Inglaterra.
A mobilização contra a construção de usinas nucleares no interior e as ocupações urbanas nas grandes cidades se tornaram os dois pilares do movimento autonomista alemão.
Para os envolvidos nesses processos, a criação de espaços autônomos era uma forma de questionamento da ordem capitalista na prática, por meio da criação, no interior da própria sociedade capitalista, de pequenas ilhas onde vigoravam relações sociais opostas às vigentes no entorno dominante. Obviamente, quando acampamentos e squats começaram a proliferar pelo país, o governo da República Federal Alemã se deu conta de que era preciso cortar pela raiz aquela agitação social.
Em 1980, lançou uma grande ofensiva policial contra acampamentos antinucleares e squats em diferentes partes do país. A República Livre de Wendland foi desarticulada em junho, e os squats de Berlim sofreram um violento ataque policial em dezembro. Diante da ofensiva policial, os militantes alemães se organizaram para resistir à repressão e proteger seus espaços de autonomia. Desse esforço nasceu a tática black bloc. Durante a manifestação de Primeiro de Maio de 1980, em Frankfurt, um grupo de militantes autonomistas desfilou com o corpo e o rosto cobertos de preto, usando capacetes e outros equipamentos de proteção para se defender dos ataques da polícia. Por causa do visual do grupo, a imprensa alemã o batizou de “Schwarzer Block” (“Bloco Negro”, em alemão). Desse momento em diante, a presença de blocos negros se tornou um elemento constante nas ações dos autonomistas alemães, e sua função original era a de servir de força de autodefesa contra os ataques policiais às ocupações e outros espaços autônomos.
Um relato em alemão sobre o surgimento dos black blocs pode ser encontrado no seguinte endereço: http://www.trend.infopartisan.net/trd0605/t370605.html.

O CAMINHO PARA SEATTLE

Da Alemanha, a tática se difundiu pelo resto da Europa, e, no fim dos anos 1980, chegou aos Estados Unidos, onde o primeiro bloco negro foi organizado em 1988, para protestar contra os esquadrões da morte que o governo americano financiava em El Salvador.
Uma ótima fonte sobre a história dos black blocs nos Estados Unidos é o livro “The Black Bloc Papers”, editado por David Van Deusen e Xavier Massot e disponível para download em http://www.infoshop.org/amp/bgp/BlackBlockPapers2.pdf.
Ao longo dos anos 1990, outros black blocs se organizaram nos Estados Unidos, mas a tática permaneceu praticamente desconhecida do grande público até que um bloco negro se organizou para participar das manifestações contra a OMC em Seattle em novembro de 1999. Graças à ação desse black bloc, a tática ganhou as páginas dos grandes jornais no mundo inteiro, principalmente porque, a partir de Seattle, os black blocs passaram a realizar ataques seletivos contra símbolos do capitalismo global.
A mudança se explica pelo contexto em que se formou o black bloc de Seattle. A década de 1990 foi a era de ouro das marcas globais, quando os logos das grandes empresas se transformaram na verdadeira língua franca da globalização. Nesse contexto, o ataque a uma loja do McDonald’s ou da Gap tinha um efeito simbólico importante, de mostrar que aqueles ícones não eram tão poderosos e onipresentes assim, de que por trás da fachada divertida e amigável da publicidade corporativa havia um mundo de exploração e violência materializado naqueles logos. Ou seja: o black bloc de Seattle inaugurou uma dimensão de violência simbólica que marcaria profundamente a tática a partir de então. Daquele momento em diante, os black blocs, até então um instrumento basicamente de defesa contra a repressão policial, tornaram-se também uma forma de ataque – mas um ataque simbólico contra os significados ocultos por trás dos símbolos de um capitalismo que se pretendia universal, benevolente e todo-poderoso. Foi nesse contexto que a tática chegou ao Brasil.

OS PRIMEIROS BLACK BLOCS NO BRASIL

Os acontecimentos de Seattle levaram grupos de militantes brasileiros a se articular em coletivos para construir no país o movimento de resistência mundial à globalização neoliberal. Assim surgiram os núcleos brasileiros da Ação Global dos Povos, uma rede de movimentos sociais surgida em 1998 que criou os Dias de Ação Global, articulações mundiais para organizar protestos simultâneos em várias partes do planeta contra as reuniões das instituições internacionais que sustentavam a globalização neoliberal.
O primeiro Dia de Ação Global que contou com ações no Brasil foi 26 de setembro de 2000, marcado contra a reunião do FMI em Praga. Neste dia, em São Paulo, um grupo de manifestantes atacou o prédio da Bovespa, o que gerou confronto entre policiais e ativistas. Na época, o incidente não ganhou destaque na imprensa e o termo “black bloc” não foi mencionado, mas a lógica da ação desses militantes, em sua maioria ligados ao movimento anarcopunk de São Paulo, seguia a lógica da tática black bloc.
O segundo Dia de Ação Global que contou com atos no Brasil foi 20 de abril de 2001. Em São Paulo, foi organizada uma manifestação na Avenida Paulista como parte dos protestos convocados em todo o mundo contra a Cúpula das Américas, reunião realizada na cidade de Quebec, no Canadá, na qual líderes dos países do continente discutiram a criação da Área de Livre Comércio das Américas (Alca). Esta foi a primeira vez que uma manifestação contra a globalização neoliberal realizada no Brasil ganhou as manchetes da imprensa nacional.
Em São Paulo, um grupo entre os manifestantes adotou a mesma tática do black bloc de Seattle, em 1999, e atacou símbolos capitalistas na Avenida Paulista, como uma loja do McDonald´s. Mais uma vez, a imprensa nacional não fez referência ao termo “black bloc”, mas a tática utilizada na Paulista foi claramente a dos blocos negros. O curioso é que a mesma edição de 21 de abril de 2001 da Folha de São Paulo que noticia o protesto na Paulista traz uma matéria do enviado do jornal ao Canadá sobre o “bloco de preto” que atuou em Quebec.

O DEBATE SOBRE A VIOLÊNCIA

Mas se nessa época a imprensa brasileira não usava o termo “black bloc” na cobertura dos protestos no país, ele já era bem conhecido da mídia internacional, principalmente da europeia e da norte-americana. E ganhou ainda mais projeção durante as manifestações contra a reunião do G8 realizada em Gênova, na Itália, em julho de 2001.
O Dia de Ação Global marcado para 20 de julho de 2001 foi a maior mobilização do gênero até então e nesse dia as ruas de Gênova foram tomadas por mais de 300 mil pessoas, entre as quais marchou o maior black bloc organizado até então. O grau de confronto com a polícia atingiu um novo patamar e um jovem italiano que fazia parte daquele black bloc, chamado Carlo Giuliani, foi morto pela repressão com um tiro na cabeça. Gênova marcou um divisor de águas para a tática black bloc e para o chamado “movimento antiglobalização” como um todo.
Assim como acontece hoje no Brasil, o debate sobre o uso da violência nas manifestações – mesmo que apenas contra lojas e outros objetos inanimados – criou uma divisão entre ativistas “violentos” e “pacíficos” que contribuiu muito para a desmobilização do movimento como um todo dali para frente.
A semelhança do debate sobre o black bloc na época e agora é impressionante.
Quem quiser conhecer um pouco das discussões e das respostas de adeptos da tática black bloc na época pode encontrar uma boa seleção de textos de ativistas reunidos na coletânea “Urgência das ruas – Black block, Reclaim the Streets e os Dias de Ação Global”, organizada por um anônimo que se identifica como Ned Ludd (referência a um dos líderes do Movimento Ludita na Inglaterra do século XIX) e publicada no Brasil pela editora Conrad.
Com o fim dos grandes protestos contra a globalização neoliberal, o debate sobre os black blocs saiu das manchetes da grande imprensa internacional e brasileira. A tática continuaria a ser adotada em manifestações na Europa e nos Estados Unidos nos anos seguintes, e militantes libertários no Brasil certamente sabiam muito bem o que eram os black blocs, mas o tema nunca repercutiu fora dos meios militantes. E assim foi até que começaram as manifestações contra o aumento das tarifas de ônibus e metrô convocadas pelo Movimento Passe Livre em junho de 2013.

AS MANIFESTAÇÕES DE JUNHO

Assim como os black blocs, o MPL estava longe de ser uma novidade no Brasil, mas, pela primeira vez, ambos começaram a ganhar um protagonismo inédito conforme as manifestações cresciam. Até o dia 13 de junho, aquela era uma mobilização muito parecida com as que o MPL vinha organizando desde 2004. Era um movimento restrito a um núcleo militante que reunia ativistas do próprio MPL, integrantes de partidos e coletivos libertários – alguns dos quais formaram black blocs durante os atos.
A violência policial contra a marcha do dia 13 de junho em São Paulo, no entanto, mudou tudo. Os ataques contra jornalistas e jovens da classe média e da elite indignaram uma parcela da população normalmente avessa à militância política. O choque diante da brutalidade da PM de São Paulo e a simpatia por uma causa que se tornou quase uma unanimidade – barrar o aumento das tarifas do transporte público na cidade – “levaram o Facebook para a rua”, para usar a feliz expressão que o jornalista Leonardo Sakamoto usou para definir a marcha de 17 de junho.
De repente, centenas de milhares de brasileiros se deram conta de que podiam, de alguma forma, usar as ruas para expressar sua insatisfação com algum aspecto da política brasileira.
Em um desses raros momentos da história nacional, o cidadão comum percebeu que a política não é propriedade privada dos políticos profissionais, e se deu conta de que ela se faz no dia a dia, na rua, em vários lugares. De vez em quando, até no Congresso.
As manifestações de 17 de junho abriram a caixa de Pandora, e gente de absolutamente todas as tendências políticas foi para a rua. Por um breve momento, a elite mais reacionária marchou ao lado do militante mais revolucionário. Mas em algum momento a contradição teria de aparecer.

AS CONTRADIÇÕES DE JUNHO

A partir de agora, minhas observações se restringem ao que aconteceu na cidade de São Paulo, pois foi o único lugar onde acompanhei as manifestações in loco, e não acho que os movimentos nas várias partes do Brasil possam ser analisados sob uma única perspectiva. Em cada cidade ou região teve especificidades que não sou capaz de avaliar. Quem esteve na Paulista no dia 18 de junho já podia farejar, de certa forma, o que aconteceria no dia 20. Aquilo era a Revolução Francesa. As reivindicações mais contraditórias conviviam nos cartazes empunhados por grupos sociais muito diferentes entre si, muitos deles antagônicos. O pessoal das bandeiras verde-amarelas e dos slogans moralistas era claramente uma elite que tinha pouco ou nada a ver com os anarquistas e trotskistas que circulavam com palavras de ordem anticapitalistas.
A direita, a extrema-direita e a extrema-esquerda já estavam ali. Faltava a esquerda moderada, dos partidos no poder. E, quando ela apareceu, a bomba-relógio explodiu.
Pode-se acusar o PT de muitas coisas por ter convocado sua militância a ir para a Paulista no dia 20 de junho, mas uma coisa é certa: aqueles militantes tinham todo o direito de estar lá.
O problema é: vai explicar isso para a elite raivosa que, estimulada pelas mobilizações, passou a expor em praça pública seu ódio pelo PT…
Olhando em retrospecto, o ataque fascista aos militantes partidários no dia 20 de junho parece um desdobramento natural do que vinha acontecendo: com a revogação do aumento das tarifas, a única bandeira que unificava aquela multidão de opostos deixou de existir.
Sem o elemento unificador, apareceram as profundas contradições que já existiam entre os inúmeros grupos que saíram às ruas.
A elite queria a cabeça do governo do PT, a extrema-esquerda queria a revolução social, e, espremida entre os dois extremos, sobrou para a esquerda moderada o papel de defender o status quo, sobrou para a esquerda moderada a posição conservadora – no mais literal sentido da palavra.
Os meses seguintes só vieram confirmar a tendência que apareceu pela primeira vez no 20 de junho em São Paulo.
A grande mobilização que prometia unificar todos os setores da esquerda para responder ao ataque fascista virou um ato dominado pelas centrais sindicais e seus militantes profissionais, no dia 11 de julho, que foi incapaz de atrair o cidadão comum que saíra às ruas em junho.
As convocatórias da direita contra a corrupção se tornaram pequenos atos isolados, dissipando o medo de alguns militantes da esquerda de que as manifestações de junho pudessem abrir caminho para uma escalada fascista.
Por fim, a extrema-esquerda se deu conta de que o mar humano que saiu às ruas em junho não era tão anticapitalista assim, e passou a organizar também seus atos isolados.
Essas três tendências ficaram claras nas manifestações do 7 de setembro em São Paulo.
Pela manhã, marcharam os movimentos sociais ligados à esquerda moderada, que, em sua maioria, continuam defendendo o governo do PT.
À tarde, duas convocatórias distintas dividiram o vão livre do Masp: de um lado, um grupo formado pela elite de direita e extrema-direita, que era, supostamente, contra todos os partidos, mas que destilava seu ódio de classe contra o PT; do outro, um black bloc que também se dizia contra todos os partidos, mas que mirava prioritariamente no governo Alckmin, do PSDB.

OS BLACK BLOCS NO BRASIL DE HOJE

Isso nos traz de volta ao nosso tema central: os black blocs. Aqui é preciso abrir um pequeno parêntese para falar do Rio de Janeiro, pois este foi o único lugar em que os protestos de fato continuaram com força depois da revogação do aumento das passagens. Acontece que, além da tarifa, lá havia outra bandeira que unificava o movimento: a oposição ao governador Sérgio Cabral. E talvez seja por isso mesmo que lá os black blocs tenham se tornado mais fortes e atuado de forma mais coerente. Vale lembrar que o movimento contra Sérgio Cabral girou em torno de uma ocupação urbana – o acampamento montado em frente à residência do governador – e, não por acaso, os black blocs cariocas desempenharam um importante papel de autodefesa do movimento contra a repressão policial. Ou seja: justamente no momento em que caiu na boca do povo no Brasil, a tática black bloc estava voltando às origens, atuando como uma organização popular de defesa dos movimentos sociais.
Na minha opinião, a situação no Rio ajuda a explicar porque em São Paulo os black blocs nunca chegaram a contar com o apoio que tiveram na capital fluminense.
Em São Paulo, a partir do fim de julho os black blocs se formaram como uma força isolada, inicialmente em solidariedade aos cariocas, e depois lançando uma campanha contra o governador paulista, Geraldo Alckmin. Ao se voltar contra Alckmin, os black blocs paulistas poderiam se articular com a esquerda moderada, por terem um inimigo comum, mas a incompreensão mútua impossibilitou a aproximação. E aqui chegamos ao x da questão: a desconfiança mútua entre duas culturas militantes distintas, mas que compartilham muitos objetivos, está acabando com as possibilidades de aproveitar a incrível energia social gerada pelas manifestações de junho para construir novos espaços de debate e mobilização que poderiam abrir perspectivas inéditas de ação política no Brasil.
Não se trata aqui de querer apagar as diferenças entre a cultura de militância partidária – baseada na hierarquia, na centralização e na estabilidade – e a cultura libertária que está na base da tática black bloc – horizontal, descentralizada e instável – mas de propor que, apesar de suas diferenças, estes dois setores podem trabalhar juntos em prol de causas que os unem.

POR UMA ASSEMBLEIA DAS RUAS

O ponto de partida para essa aproximação é o diálogo aberto entre as partes, reconhecendo as diferenças e os equívocos de parte a parte, mas buscando achar formas de cooperação que respeitem as especificidades de cada um. Os momentos em que os black blocs foram mais fortes foram justamente aqueles em que atuaram no seio de movimentos mais amplos, que englobavam grupos com táticas muito diferentes, todos lutando por causas comuns. E esta é, na minha opinião, uma das fraquezas dos black blocs hoje (pelo menos em São Paulo): uma certa fetichização da tática, tomando a formação de blocos negros como um fim em si mesmo.
Olhando para a história dos black blocs, me parece que os melhores momentos dessa tática foram quando ela serviu de instrumento para um movimento mais amplo.
E esses momentos foram marcados por avaliações de que tipo de ações serviam mais aos fins buscados.
Por exemplo: a condenação, a priori, da destruição de propriedade privada corporativa me parece absurda por parte de qualquer um que sonhe com uma sociedade mais igualitária.
No entanto, cabe questionar, sim, se essa tática é a mais acertada em um determinado momento da luta.
O ataque contra símbolos das grandes corporações globais promovido pelo black bloc de Seattle fazia todo sentido no seio de um grande movimento que desafiava, justamente, o poder dessas grandes corporações.
Mas será que o simples ataque a agências bancárias e concessionárias de carros de luxo faz sentido em mobilizações que não passam de algumas centenas de pessoas sem uma bandeira clara, em uma São Paulo cuja população tende a repudiar esse tipo de ação? Para que serve essa ação?
Os black blocs têm força social suficiente para sustentar uma mobilização sem buscar apoio de outros setores? Na minha opinião, a resposta para todas essas perguntas, hoje, é “não”.
Por outro lado, as organizações tradicionais da esquerda, como partidos e sindicatos, claramente não estão conseguindo se sintonizar com as pessoas que saíram às ruas em junho justamente por insistirem em restringir suas mobilizações aos seus próprios quadros, olhando com desconfiança para qualquer um que não seja filiado a uma organização formal.
Ao fazerem isso, reproduzem no nível da rua a mesma lógica de quem está no poder: a ideia de que a política é um assunto para iniciados e especialistas, da qual só podem participar aqueles devidamente credenciados por organizações estabelecidas, sejam elas partidos, sindicatos ou movimentos sociais.
Ora, foi justamente isso que levou as pessoas às ruas em junho: a revolta contra o distanciamento entre aqueles que formulam a política e aqueles que apenas sofrem suas consequências.
Os gritos histéricos de “sem partido” podiam ter uma conotação fascista em alguns casos, mas eles também expressavam esse mal-estar profundo de uma política que se vê como cada vez mais autônoma do resto da população. O grito de junho foi, acima de tudo, um grito contra o autismo da política institucional no Brasil – e nesse autismo se incluem absolutamente todos os partidos com alguma representação parlamentar (com exceção, talvez, do PSOL, cujos militantes estavam nas ruas desde o começo). Foi um grito contra o abismo que existe entre a política institucional e o cidadão comum, criado por políticos profissionais (de todos os partidos) que colocam o jogo da politicagem acima da defesa de bandeiras concretas de interesse da população. Nesse sentido, mesmo o combate à corrupção, que em geral tem um viés claramente conservador, se torna parte de uma crítica mais ampla a um sistema representativo que, cada vez mais, é ditado apenas pelos interesses dos representantes, e não dos representados.
Ao insistir em mobilizações restritas aos iniciados, as organizações tradicionais da esquerda reproduzem a barreira que afasta o cidadão comum da política, e por isso são hostilizadas por aqueles que se sentem excluídos da política. Os black blocs, por outro lado, oferecem justamente o contrário: a possibilidade de qualquer cidadão participar da mobilização política sem necessidade de filiação prévia.
Enquanto partidos e sindicatos são vistos como uma porta fechada para os não iniciados, os black blocs são vistos como uma porta aberta para a política. Disso decorre, em grande parte, a atração que vem exercendo sobre muitos jovens que estão saindo às ruas pela primeira vez na vida. Muitas vezes essa distinção leva alguns a se apegarem a um fetiche que opõe “velhas” e “novas” formas de organização, como se fossem irreconciliáveis.
A pergunta mais importante hoje, na minha opinião, é: seria possível romper com essa visão binária e criar espaços onde as diferentes lógicas pudessem dialogar?
Acredito sinceramente que sim. Até porque isso já aconteceu no passado.
Em Gênova, por exemplo, o black bloc optou por marchar ao lado dos Comitês de Base (Cobas) dos sindicatos italianos; na Alemanha, os black blocs muitas vezes marcharam ao lado dos sindicados no Primeiro de Maio; e, aqui mesmo no Brasil, lembro perfeitamente de militantes do PSTU que participavam das reuniões da Ação Global dos Povos para a organização dos atos em São Paulo. Ou seja: o que nos falta são espaços de articulação que abram espaço para o diálogo entre culturas militantes distintas, mas que compartilham certos objetivos.
O que nos falta é um fórum de lutas, uma assembleia das ruas. Um espaço assim, que não fosse controlado por nenhuma organização, mas que estivesse aberto aos militantes de qualquer organização e a quem não é filiado a nenhuma delas, poderia servir de convite à participação dos não iniciados e agregar a experiência dos iniciados, abrindo a possibilidade de diminuir a desconfiança mútua e abrir caminho para uma cooperação entre grupos que adotam táticas distintas, mas que podem ser complementares.
Outra condição fundamental para que um espaço assim pudesse florescer é que não se pautasse pela lógica eleitoral.
Uma das razões do desgaste da política institucional no Brasil (e em várias outras partes do mundo) é a necessidade de reduzir todas as discussões ao calendário eleitoral.
Uma verdadeira assembleia das ruas seria um espaço de discussão e formulação de um projeto popular para a cidade, para o estado e para o país, que articulasse seus integrantes em torno de bandeiras comuns, mas que não se colocasse a serviço de campanhas eleitorais de A,B ou C. Um espaço que pudesse se tornar um poder constituinte da multidão, definindo o que o povo quer do seu governo. Caberia ao governo de turno, a partir daí, lidar com essas demandas. Os zapatistas, no México, já nos forneceram um modelo desse tipo de organização ao lançarem, em 2006, sua “Outra campanha”, uma mobilização nacional que pretendia ir além do calendário eleitoral e formular um verdadeiro projeto popular independente das ambições dos partidos da ordem.
É claro que em um espaço como esse a participação de militantes partidários e sindicais seria mais do que bem vinda, mas sempre como indivíduos, e não como representantes de suas organizações, o que exigiria daqueles mais acostumados com as formas tradicionais de militância um esforço para abrir mão da ambição de ditar a linha política a ser seguida por todos os participantes dessa articulação.
Por outro lado, exigiria dos adeptos da tática black bloc um esforço para coordenar suas ações com as dos demais grupos, muitas vezes se abstendo de realizar ataques ao patrimônio público e privado quando esse tipo de ação puder comprometer outros grupos que adotam táticas distintas. Acredito, sinceramente, que a criação de um espaço plural como este poderia diminuir o fosso entre a “velha” e a “nova” esquerda e abrir novas e estimulantes perspectivas para a luta popular no Brasil. Mas, para isso, seria preciso um exercício de compreensão mútua que fosse além dos preconceitos e buscasse aprender a respeitar a diferença e a diversidade, vendo nela não uma fraqueza, mas uma força do movimento.

FONTE: Blog Viomundo. Disponível em: http://www.viomundo.com.br/politica/black-blocs-a-origem-da-tatica-que-causa-polemica-na-esquerda.html

Acesso em: 11 out 2013

Precaridade em Portugal e na Europa Hoje

30/04/2013 19:50

Entrevista com Raquel Varela, publicada em Diário da Liberdade com base em entrevista escrita, parcialmente publicada numa reportagem sobre trabalho, desemprego no Jornal Público (Portugal).

Raquel Varela é pesquisadora no Instituto de História Contemporânea da Universidade Nova de Lisboa e Presidente da Associação Internacional Greves e Conflitos Sociais

Em primeiro lugar, como caracteriza os trabalhadores precários na Europa?
Os investigadores do trabalho na Europa têm usado o conceito de precário tanto para o soldador grego que entra num avião e vai para a Alemanha 3 meses trabalhar numa fábrica, como para a empregada de limpeza brasileira ilegalizada pelas leis de imigração em Portugal, como para o arquitecto a recibos verdes (formalmente trabalho autónomo), como para o bolseiro doutorado que dá aulas na Universidade (na essência um trabalhador altamente qualificado, na aparência um bolseiro sem contrato de trabalho).
Em Portugal, e na minha opinião correctamente, os investigadores têm, sem grande discussão conceptual, adoptado este conceito de precariedade versus trabalho com direitos, que a mim me parece correcto porque refere os trabalhadores a partir das condições laborais e, digamos, corresponde a uma realidade histórico-política. Na Europa depois de 1945 e, em Portugal, depois da Revolução dos Cravos, em 1975,  ter trabalho passou a ser um direito, e quem não tem esse direito é precário.
Efectivamente, existe um país, em geral mais velho, com mais direitos, mais sindicalizado, ainda sob a égide do pacto social nascido da revolução de 1974-1975, mais predisposto a mediações; e um outro país precário, uma força de trabalho do modelo just in time, quer isto dizer, trabalhador na hora, que é chamado a trabalhar quando as empresas precisam e devolvido ao desemprego quando baixa a produção. Só é chamado ao mercado de trabalho quando este dele necessita – normalmente é a este tipo de «reforçar a competitividade» que se referem os sectores mais liberais.
A greve dos estivadores, por exemplo, que decorreu em Portugal entre agosto e dezembro de 2012, espelha de certa forma esta divisão da força de trabalho, porque os estivadores lutavam, com reivindicações políticas, também contra a precariedade dos que aí viriam. E a sua luta teve um carácter parcialmente internacionalista que nunca ou raramente se viu no país, com a presença de dirigentes sindicais de outros países presentes na manifestação em frente a São Bento (Parlamento português) e paralisações em vários portos internacionais em solidariedade com a luta dos estivadores portugueses. É verdade que a greve dos mineiros em Espanha também transbordou as fronteiras.
Quantos são estes trabalhadores precários?
Temos em números reais, em Portugal, 1 400 000 desempregados, no total de uma população activa de 5 milhões e meio, a maioria dos desempregados tem baixa escolaridade e mais de 45 anos. E sabemos que sensivelmente 45% a 50% do total da nossa força de trabalho é precária. Sabemos que neste momento há 1 300 000 licenciados, metade dos quais foram formados nos últimos 10 anos.
Mas, nem tudo o que parece é. A maioria da força de trabalho precária não terá um curso superior. Na construção civil, limpezas, trabalho nas fábricas, na agricultura: os bairros sociais são um desespero de trabalhadores precários com uma escassa almofada social – subsídios mínimos de reprodução biológica -, que subsistem pela caridade (arbitrária e não universal); vê-se precariedade na agricultura intensiva do rio Mira, no sul de Portugal (explorações de hortícolas inglesas); trabalha-se de forma precária nas fábricas de Alcobaça ou na região de Santarém, no centro do país, e entra-se ciclicamente no desemprego, para citar alguns exemplo.
Nas manifestações que ocorreram em Portugal de forma massiva em alguns momentos dos últimos 3 anos (12 de Março de 2011, 15 de Setembro de 2011, 15 de Setembro de 2012, 14 de Novembro de 2012, e 2 de Março de 2013) tem estado uma franja destes precários, parece-me (mas não tenho a certeza) os mais escolarizados, embora haja sinais de que começam a misturar-se com muitos trabalhadores com direitos (que têm a chamada relação de trabalho-padrão), e também com precários sem escolarização superior.
Creio, porém, que tem vindo dos precários mais formados e escolarizados o mote político dos protestos; parece-me que foi este sector quem primeiro saiu às ruas em protesto. São eles que as organizam e mobilizam nas redes sociais e movimentos, ao ponto de serem uma fonte de pressão sobre as centrais sindicais. Aqui e em Espanha isso é claro: as centrais sindicais foram obrigadas a chamar greves gerais perante as mobilizações massivas chamadas nas redes e a própria CGTP (Portugal) acabou por pôr fim à tradição de não convocar manifestações em dias de greve geral. A greve geral de 14 de Novembro de 2012 no sul da Europa, resultou, creio, em parte desta pressão dos movimentos mais inorgânicos.
Como se organiza esta mão-de-obra?
Esta força de trabalho precária é – e esta é uma novidade nos países centrais no pós guerra, na minha opinião – menos dirigida pelos sindicatos e, em geral, mais descrente no regime democrático-representativo, a quem associam a sua proletarização. Não há organizações, que eu conheça, de trabalhadores precários com representação real – há frentes propagandísticas mas que não conseguem organizar este sector.
Parece-me que a condenação dos partidos e o desprezo pelas eleições que domina estes protestos reflecte um corte com um regime que não lhes deu mobilidade social. É uma condenação progressista e não de tradição conservadora: muitos destes precários exigem democracia social e económica e não um caudilho. Mas ao rejeitarem a proletarização recusaram também a história do movimento operário, nomeadamente os seus modelos organizativos (organização, certo grau de centralismo, autofinanciamento), a centralidade do poder do Estado (e do combate ao poder do Estado), o que talvez seja o seu calcanhar de Aquiles.
Há um certo neo-proudhonismo aqui, que namora com as teorias do decrescimento, consenso nas decisões organizativas (o que significa que o mais recuado impõe o programa colectivo, que é seguido por todos de forma unânime, e é sempre o programa mínimo, por oposição à ideia de vanguarda dos movimentos dos anos 70, em que era justamente o contrário, os mais radicais podiam, pelo método de 50% +1, puxar os mais recuados). Se me permite o gracejo são de alguma forma a retaguarda que nega a vanguarda. Digo de alguma forma porque é óbvio que tiveram o poder de questionar nas ruas as medidas anticrise e isso não é menor.
Há também nestes novos movimentos sociais, creio, uma certa mistificação da democracia real como algo associado ao poder da rua (acampadas) e não como um poder organizado a derrubar ou controlar o Estado. Tudo isto na minha opinião reflecte algo da sua origem de classe, sectores médios proletarizados que sonham com uma sociedade de “pequenos produtores “. Talvez. Por outro lado este estado naïf de organização pode ser só um reflexo da eterna tentativa de evitar um conflito civil.
Claro que o método do consenso só reflecte a nível organizativo uma dimensão política – porque a escolha do método organizativo leva a políticas recuadas e por isso o que resulta muita vezes são coisas como a condenação da corrupção e da gestão danosa, crítica dos paraísos fiscais, defesa da renegociação da dívida pública, portanto, medidas de gestão do capitalismo e não de ruptura. Veja: está ausente dos programas, ou só está em nota de rodapé não fazendo parte de nenhum campanha, a redução do horário de trabalho para todos sem redução salarial. Isto quando temos taxas de desemprego entre os 30% (adultos) a 50% (jovens)! Até à década de 80 do século XX era parte determinante dos programas dos sindicatos, partidos comunistas e social-democratas a redução do horário de trabalho para 35 horas sem redução salarial. Desapareceu ou foi metida para debaixo do colchão.
Teria que pensar melhor nestas questões, que ainda nos aparecem muito fluídas, mas que na minha opinião são muito importantes porque é no terreno político e organizativo que esta crise – a sobrevivência do capitalismo e a regressão social, ou o derrube deste – se vai decidir.
Porém, paradoxalmente, vê-se que estes sectores dos chamados movimentos sociais mais precarizados e atomizados, admiram os mineiros espanhóis ou os estivadores portugueses, dois sectores que protagonizaram greves importantes e radicalizadas, com uso de violência contra o Estado ou símbolos do Estado, cuja capacidade de luta advém do radicalismo mas também da capacidade de organização (taxas altíssimas de sindicalismo), altamente centralizada até (no caso dos mineiros, usando técnicas aprendidas na clandestinidade). Ponho muitas dúvidas que os estivadores ou os mineiros decidam por consenso ou numa praça pública! (risos).
Há outros factores que gostaria também de salientar. Sobre os precários mais formados parece-me que em geral são mais internacionalistas ou pelo menos mais internacionalizados, mais informados e mais formados, mais conscientes dos seus direitos (não se resignam como os avós no tempo do Estado Novo, a ditadura portuguesa, à sua condição de pobres). Mas também são mais individualistas e menos cultos. Têm uma cultura política do modelo just in time, ou seja, algo superficial, rápida, feita por flashes de leituras de blogues e redes sociais, pouco estratégica e muito táctica. É impossível não associar a progressão do individualismo nesta fase de desenvolvimento do capitalismo à pressão do método do consenso, que se resume caricaturalmente nisto: «a minha opinião pessoal tem que prevalecer e não dou o benefício da dúvida à maioria, ou é como eu quero ou é sem mim». É o poder de veto da minoria sobre a maioria.
Mas enfim, sobre estes temas mais subjectivos, diria que isto é uma avaliação mais pessoal e intuitiva – não fiz nenhum estudo nem conheço nenhum que analise estes comportamentos de forma metodológica, por isso estas opiniões, são hipóteses exploratórias, nada mais.
De acordo com os dados do Eurostat, Portugal, Espanha e Polónia são os países onde o peso dos trabalhadores a prazo no total dos trabalhadores por conta de outrem tem maior significado (respectivamente 20,94% e 23,65% e 27,56% no segundo trimestre de 2012). Como analisa a evolução desde 2001 até aos dias de hoje, tanto na Europa como, em particular, Portugal?
Estes dados do Eurostat não são sobre precariedade, mas sobre contratos a prazo. Ora, em Portugal há um sem-fim de trabalhadores precários que aparecem como empresários em nome individual que são na verdade trabalhadores precários. Não só os casos óbvios do recibo verde, bolseiros, estagiários, etc. Há casos mais polémicos, como o de pequenos empresários que são de facto trabalhadores. Têm formalmente uma «empresa», mas na verdade são trabalhadores dependentes de grandes empresas que suportam todos os custos que a grande empresa deixou de suportar (segurança social, paragens da produção, etc.). O capital circula por estas pequenas empresas mas não se acumula aí: o que ganham mal dá para pagarem as contas, em muitos casos. Creio que uma parte destes são pequenos empresários, acossados pela competição, claro, mas outra parte arrisco a dizer que são trabalhadores precários naessência, embora juridicamente apareçam como pequenos empresários.
O INE (Instituo Nacional de Estatística, Portugal) e o Eurostat deveriam criar um modelo de levantamento de dados da força de trabalho que permitisse saber afinal quantos recibos verdes existem e quantos empresários são de facto empresários e quantos são trabalhadores precários escondidos.
Indo directamente à sua questão creio que o aumento da precariedade tem por trás uma estratégia europeia para os capitalistas, empresários, saírem da crise reduzindo brutalmente os custos do trabalho, e, sobretudo, associando isso à criação de um mercado europeu de trabalho (o célebre «emigrem!», a que o primeiro ministro português aconselhou os desempregados). Isto é, fazer da periferia da Europa uma China, mas garantindo que estes novos «chineses», os portugueses, espanhóis, gregos, polacos (muito mais produtivos e qualificados que os chineses) podem ir trabalhar para o Norte, quebrando assim os salários conquistados no Centro e Norte da Europa. Também pode haver o simples movimento de transferência de empresas do norte para o sul, usando novas tecnologias (caso de call centers franceses que se estão a instalar em Portugal), ou, eu diria, a simples ameaça de haver trabalhadores altamente qualificados no sul  – e excedentários para este modo de produção -, quebra a capacidade de negociação dos trabalhadores do norte. Há já quem sugira uma reindustrialização do Sul da Europa, o que, no quadro do actual estágio de desenvolvimento do capitalismo mundial só é possível com salários miseráveis, jornadas de trabalho intensíssimas e altos índices de desemprego.
O que quero ressaltar é isto: que a EU é um mercado único mas é também, e  quem sabe sobretudo, um mercado de trabalho. A uniformização do ensino com o Processo de Bolonha e o programa Erasmus (de incentivo a fazer estudos noutro país da EU) são claramente tentativas de fazer este grande mercado de trabalho. Que na minha opinião visa baixar o custo unitário do trabalho para fazer frente à competição norte americana. A Europa tem o custo unitário do trabalho mais elevado do mundo porque aqui os direitos foram conquistados ao fim de 40 anos de revoluções, contra revoluções, conflitos agudíssimos que se saldaram na II Guerra Mundial e na derrota do nazi fascismo.
Espanha em si é um caso deveras interessante. De acordo com os dados do Eurostat, o peso dos trabalhadores a prazo caiu 10,39%, desde 2006 até ao segundo trimestre deste ano. Como justifica estes valores?
Sim, em Espanha era 31,9% e passou para 23,7%, entre 2006 e 2012. Esse valor é ainda assim superior ao de Portugal, ou seja, mais contratados a prazo em termos percentuais (que passam de 19,1% em 2005 para 21% em 2012). Se olhar para o Eurostat vai ver que há um salto entre a diminuição dos contratos a prazo e o aumento do desemprego. Portanto, a única conclusão que se pode tirar não é que o trabalho precário diminui, é que o desemprego atingiu de forma drástica os contratados a prazo.
Desde 2008, ano em que brotou a crise financeira a nível mundial, não se registou nenhuma alteração muito significativa na evolução do peso dos trabalhadores a prazo. Encontra alguma relação entre a conjuntura financeira e a evolução da precariedade (trabalhadores a prazo, recibos verdes e temporários)?
Bom, o que se registou desde que começou a crise foi uma gigantesca queima de capital que implicou fechar milhares de empresas e despedir milhões de trabalhadores. Certamente que uma parte significativa dos despedidos é precária. Volto a sublinhar isto, a única conclusão que se pode tirar é que o desemprego atingiu de forma drástica os trabalhadores precários.
Em Abril de 2012 havia, segundo a Organização Internacional do Trabalho, 17,4 milhões de jovens desempregados, e esse número deverá chegar aos 22 milhões em 2013. Há, desde que começaram as medidas contracíclicas de 2008 (o desemprego não nasce da crise, mas das medidas contracíclicas), 30 milhões de novos desempregados e 40 milhões que durante a crise deixaram de procurar emprego. O que há cada vez mais é uma ligação permanente entre precários e desempregados, que se apresentam como dois lados da mesma moeda. Curiosamente, a classe trabalhadora descrita por Marx no século XIX (proletários e exército industrial de reserva).
Os dados disponíveis indicam que, aquando de recuperações temporárias do mercado laboral, os postos de trabalhos criados eram novamente precários. Podemos afirmar que se trata de um efeito cíclico? Como explica esta quebra e retoma do mesmo?
A cada crise económica verifica-se um aumento dos trabalhadores precários nos períodos de recuperação depois do ciclo de queda, quer isto dizer que a tendência – não quer dizer que em determinados sectores por razões económicas (escassez de mão de obra) ou políticas (força da organização) não haja excepções – é para haver cada vez mais trabalhadores precários.

A subida galopante do desemprego jovem é uma realidade na Europa. De acordo com os dados disponibilizados pelo Eurostat, é possível concluir que os mais jovens perdem peso nos contratos a prazo. Porém, a mesma tendência é encontrada no total dos trabalhadores por conta de outrem. Para si, há algum factor decisivo nesta evolução?
Sobre os números trata-se de maior desemprego e não menos precaridade. Não sei com sinceridade se estamos perante um modelo de capitalismo que ao criar cada vez mais máquinas desemprega cada vez mais pessoas (na Europa, porque a nível mundial o número de trabalhadores aumenta com a massiva ida de trabalhadores chineses do campo para a cidade, por exemplo), como defendem alguns colegas. Ou, como defendem outros, se estamos num período cíclico que vai reabsorver, com muitos piores condições e relações laborais, a força de trabalho considerada excedentária por este modelo de acumulação.
Eu tenho desenvolvido o conceito a que chamei de “eugenização da força de trabalho”. O que procuro pensar com isto é que, numa sociedade baseada na produção para o lucro como esta, acho que há uma parte da população que não está só «a mais», de forma relativa. Quero dizer: no capitalismo é preciso desempregados para baixar o salário dos empregados. Mas eu creio que está em curso algo mais profundo na Europa – a eliminação de uma parte da força de trabalho, retirando do mercado de trabalho os que têm direitos e são mais velhos e muitas vezes menos formados, e cortando drasticamente as pensões e o acesso a cuidados de saúde dos pensionistas.
Gostava de salientar isto. A falta de cuidados de saúde ou cortes nas pensões aos mais velhos não é só uma consequência da mercantilização dos serviços públicos de saúde mas também, na minha opinião, a vontade de que essas pessoas (que têm direito a uma pensão relativamente alta conquistada no quadro do Pacto Social) desapareçam. Uma outra espécie de neo malthusianismo, uma forma creio de eugenia social. É parte da barbárie a que este sistema económico – e não a sua simples má gestão ou corrupção – nos conduziam.

Na média da Europa a 27, podemos ver que o peso dos trabalhadores a prazo passou de 12,42% em 2001, para 13,87% no segundo trimestre de 2012, atingindo o pico máximo em 2007 (14,56%). Tendo em conta a evolução quase nula entre 2001 e 2012, consegue analisar algum factor que justifique estes números?
Sim, como disse mais acima, a manutenção da taxa a prazo não diz muito porque o número do desemprego subiu brutalmente. Em Portugal, em 2007, era de 9% e agora é mais de 17,4% (estes números não são reais, os reais são na ordem hoje dos 25% de desemprego).
O caso da Irlanda e do Reino Unido é outro muito interessante. Nos dois países dos mais liberais na Europa, seria de esperar um crescente número de trabalhadores a prazo. Seria algo expectável, tendo em conta as sociedades em questão. Porém, Irlanda e Reino Unido são dos países onde o peso dos trabalhadores a prazo é menor. Adicionalmente, seria de esperar um grande aumento do número de trabalhadores a prazo após a despoletar da crise em 2008. Apesar da subida que vem registando desde 2005, o actual valor de 10,22% é ainda relativamente baixo. Como explica esta situação?
A economia irlandesa e inglesa estão assim tão ligadas? Veja, uma está no euro e outra não. A Irlanda passou de um desemprego de 4,8% em 2007 para 14,8% em 2012, a Inglaterra, de 4,7% para 7,8%. Mais uma vez não se pode concluir pela percentagem do número de contratos a prazo onde os níveis de desemprego dispararam como na Irlanda. A Inglaterra terá beneficiado – na minha opinião temporariamente (porque caminhamos para um novo choque cíclico provavelmente 2015) – de ter uma moeda própria. Por outro lado, é uma economia mais ligada directamente à norte-americana, creio. Desconheço porém com detalhe a força de trabalho inglesa: há uma rotatividade grande de empregos qualificados (a Inglaterra parece funcionar como uma zona de formação de quadros para a Commonwealth). Mas tem bolsas de desigualdade gigantes, que Ken Loach tão bem retrata nos seus filmes, uma imensa quantidade de pessoas que vive entre o subemprego e os subsídios, a viver em condições tremendas sem perspectivas de futuro digno. Lumpenizados para usar a palavra rigorosa.
Não compreendo o paternalismo de alguns cientistas sociais quando olham para camadas gigantes da população a viver de subsídios que não garantem mais do que a reprodução biológica, e se limitam a ser benevolentes com a barbárie social (crime, ignorância, prostituição, maus tratos, violência doméstica) que daí advém.
As pessoas têm que ter direito ao trabalho e isso tem que ser assegurado reduzindo drasticamente o horário de trabalho para todos, essa é a minha apreciação. É claro que nada disso pode ser feito sem um controle colectivo sobre a produção, a energia, a banca, o sistema financeiro. Sem repetir os erros do passado, nomeadamente o horror das ditaduras burocráticas, como foi o caso da URSS.
Em 2007 houve um pico de trabalhadores a prazo na Europa que, no ponto de vista de um sociólogo da Organização Internacional do Trabalho, indicava uma antecipação do mercado de trabalho à crise. Por outras palavras, o mercado de trabalho teria desenvolvido um mecanismo que permitia actuar em situações de crise (basicamente, despedir aqueles que menos dispunham de protecção social).
As crises cíclicas, que ocorrem a cada 7 anos sensivelmente (estão mapeadas pelo Departamento de Comércio norte-americano) têm um período de crise, pico, expansão e desaceleração. Normalmente no final, antes de se entrar em crise (ou seja antes de se dar uma queda na taxa de lucro, deflação de preços na produção, etc., que muitas vezes se manifesta com queda nas bolsas), há uma alta taxa de empregabilidade da mão-de-obra. Portanto, eu diria que em final de 2007 há mais emprego porque as empresas estavam num pico de produção alto. Os despedimentos são a seguir à crise, disparam em 2009, são feitos para «sair da crise», isto é recuperar a taxa média de lucro das grandes empresas (porque as pequenas e médias afogam-se como se vê).
Do mesmo modo, o peso dos trabalhadores a prazo face ao total de trabalhadores por conta de outrem, individualizado por países da União Europeia, permite distinguir três grupos de países: Sul, Centro e Norte, salvo algumas excepções. Consegue explicar, em termos históricos, estes dados? Houve algum indício ou semelhança do passado?
A Europa não tem ritmos iguais de crescimento, de produtividade nem de gestão da força de trabalho. Acho que é um desenvolvimento desigual e combinado, ou seja, há bolsas de produtividade altíssimas combinadas com sectores muito atrasados, mas tudo se parece combinar num modelo cheio de contradições. Veja como a estratégia das empresas alemãs de componentes de automóveis (feitas com baixos salários em Portugal) esbarra com a estratégia do Grupo Sonae (distribuição alimentar em Portugal), mais ligado ao consumo interno.
Por outro lado, a precariedade ganha um significado distinto consoante os índices de desemprego, logo ser precário na Suécia e em Portugal não é o mesmo, não só pela força do Estado social, mas pelo emprego. Se há pleno emprego (coisa que nem a Suécia agora tem), o facto de os trabalhadores serem precários, ou seja, não terem contratos com direitos, não lhes dificulta tanto a vida porque saem de um emprego e entram noutro.
Na Europa do Sul assiste-se agora à confluência de 3 factores que levam às situações de miséria que ouvimos e vemos: precariedade, taxa de desemprego altíssima, salários baixíssimos e retorno ao mercado de trabalho cada vez mais tarde (um desempregado hoje fica em média dois anos sem voltar ao mercado de trabalho para vender a sua força de trabalho, em Portugal).
Historicamente, vivemos uma ilusão que é também a desilusão com o modelo pós 25 de Abril, isto é, a ideia de que o capitalismo teria um desenvolvimento linear no sentido de combinar propriedade privada, mercado e bem-estar social. A barbárie está agora à nossa volta e oficialmente temos quase 1/3 da população pobre, abaixo do limiar de pobreza, e crianças com fome.
O modelo estalinista, volto a afirmar, foi uma desvirtuação brutal e ditatorial de um projecto igualitário, que visava a fartura e não a generalização da miséria e da repressão. Mas não é menos óbvio que o capitalismo é cada vez mais sinónimo de barbárie e que é urgente repensar um novo modelo de sociedade, que não pode ser feito sem a crítica radical aos pressupostos económicos e sociais desta.
A partir de quando os precários passaram a ser um modelo do mercado de trabalho? Será um modelo de futuro?
A precariedade – isto é a ausência de trabalho certo, salários abaixo de subsistência ou relações laborais desprotegidas – sempre existiu. Até ao 25 de Abril era comum e não só no trabalho agrícola. É algo anacrónico chamar-lhe precaridade – chamava-se então trabalho à jorna, sazonal, à peça, ao domicílio. No moderno modo de produção capitalista a flexibilidade do trabalho bem como altas taxas de desemprego são condição sine qua non para sobreviver na competitividade entre empresas e entre Estados. Nenhuma tendência da economia – dos marxistas aos liberais – esconde que altas taxas de desemprego funcionam como um regulador dos salários, baixando-os. Aliás sempre se conta a população activa, isto é, a força de trabalho como uma só, quer esteja ou não empregada faz parte do mesmo conjunto. Em determinados momentos históricos esta normalidade do capitalismo foi interrompida por força de conflitos sociais e foi garantido o direito ao trabalho.
Em Portugal esse direito é assegurado na Constituição de 1976 (o Pacto Social nascido da revolução dos cravos) mas ele depende, na sua concretização real, também da relação que se estabelece entre as classes sociais  e da própria economia, isto é, se há ou não crescimento económico e qual o grau de pacto social que existe, ou, dito de outra forma, qual o grau de cedência dos empregadores e de resistência dos trabalhadores. A precariedade de que hoje se fala começa a crescer de forma exponencial a partir do início da década de 90, devido a factores económicos (dificuldade em recuperar taxas de lucro do período cíclico anterior), políticos (negociação com os sindicatos de processos de reformas antecipadas em troca de entrada de trabalhadores precários nessas empresas).
É importante lembrar que esta precariedade foi em grande medida negociada em sede de concertação social, a partir de 1986, com programas definidos e negociados dentro da União Europeia – em que sistematicamente foram usados fundos da segurança social para gerir a precariedade, isto é, criação de formas de subsídios, programas assistencialistas, lay-off (empresas entram em paragem produtiva e trabalhadores são pagos pela segurança social), subsídio parcial de desemprego (o Estado paga com o fundo da segurança social parte do salário da empresa privada) e programas assistencialistas que asseguram a reprodução social da mão-de-obra.
Quais os impactos da precariedade?
O impacto individual do trabalho precário é desumano, porque se trata da incerteza de assegurar a própria vida biológica. Ao nível social todos os indicadores de qualidade e bem-estar caem (qualidade da saúde, do sono, bem estar emocional, físico, sexual, qualidade da alimentação, saúde mental, relações familiares, etc.).
Provavelmente ao nível político teremos uma instabilidade social cada vez maior que pode ou não evoluir para situações de disrupção social/revoluções. Mas certamente que a estabilidade social – e com ela a distopia salazarista dos brandos costumes – acabou. Maior ou menor grau de estabilidade depende de muitos factores entre eles haver ou não válvulas de escape como a imigração, existência de organizações revolucionárias (último tema que os liberais conseguiram manter como tabu, depois da queda do muro, na minha opinião), taxas de urbanização, escolarização, percepção da regressão social, etc.
Paralelamente estamos a ver emergir novas formas de protesto e de organizações com um significado histórico, como é o caso de movimentos de reformados, protestos gigantescos de trabalhadores precários, organizados fora das estruturas sindicais, etc.
Esta é a primeira grande crise económica nos países centrais depois da queda do muro de Berlim e do enfraquecimento dos dois lados que mantiveram o Pacto Social na Europa – a social-democracia e os partidos comunistas de tradição estalinista. É também o fim do modelo keynesiano, enquanto garante de bem-estar social.

Carta aberta aos representantes das áreas de Ciências Humanas do CNPq e CAPES

01/11/2012 16:07

O programa de fomento aos periódicos científicos financiados por editais do CNPq/CAPES logrou bons resultados nos últimos anos, especialmente pelo caráter inclusivo, uma vez que essas instituições adotam como característica comum uma compreensão horizontal das ciências, não por acaso constituem, cada qual ao seu modo, diferentes Comitês de Áreas e/ou Assessores. Contrariando essa concepção, a chamada MCTI/CNPq/MEC/CAPES n.09/2012 estabelece condicionalidades para a participação de periódicos que resultarão, certamente, em significativa redução da participação dos periódicos das áreas de ciências humanas e sociais.[1] Essas condicionalidades resultarão em restrições, justamente pela necessidade de indexação no ISI (Thomson Co.), Scopus (Elsevier), PubMed (US National Library of Medicine) ou Scielo. O processo de indexação em cada uma das bases citadas mereceria uma reflexão apurada, uma vez que existe uma literatura nacional e internacional que contextualiza sua importância e especificidade para as distintas áreas científicas. Entretanto, a demanda dos editores nesse momento pauta-se em dois aspectos da chamada, entre outros possíveis que exigiriam maior tempo para discussão. O primeiro aspecto é a isonomia. Os editais “universais”, constituídos por recursos públicos, deveriam se pautar em políticas horizontais, motivo pelo qual não há sentido em privilegiar algumas áreas, a exemplo das indexações da PubMed, o que fere, de partida, as condições isonômicas de concorrência. O segundo aspecto guarda relação com o não reconhecimento, na referida chamada, da própria política de qualificação do Qualis-Capes. Para se ter uma ideia, nas áreas de geografia, história e sociologia, existem aproximadamente 15 periódicos nacionais classificados como A-1 e pelo menos outros 30 classificados como A-2 e mais de 60 classificados como B-1, isso sem enumerar os periódicos nas áreas de educação, arquitetura, urbanismo, ciências políticas, filosofia, direito etc. Não podemos deixar de destacar que a mesma instituição que classifica periódicos de A-1 e A-2 (avaliação de excelência como indicado em diferentes documentos de áreas da CAPES) coloca, em uma chamada conjunta com o CNPq, condicionalidades para participação desses mesmos periódicos.
Enfim, não se trata de negar a relevância dos indexadores. Ao contrário, os indexadores são importantes ferramentas de mapeamento do público leitor e quantificação do impacto da produção científica. Contudo, negar a avaliação do Qualis como parâmetro de qualidade nos parece um procedimento que desconsidera os caros debates, com participação de editores e representantes de área, que ocorrem na própria CAPES. Com os argumentos descritos, solicitamos a reconsideração dos parâmetros de exclusão presentes na chamada 09.2012-CNPq-CAPES.
Os editores que subscrevem:

Tadeu Alencar Arrais, Boletim Goiano de Geografia, Universidade Federal de Goiás
Eliane Martins de Freitas, OPSIS-História, Universidade Federal de Goiás
Lucia Helena de Oliveira, Revista Geografia, UNESP-Rio Claro
José Carlos, Em Debate – Sociologia, Universidade Federal de Santa Catarina
Arturo Zavala, Revista de Estudos Sociais, Universidade Federal do Mato Grosso
Maria do Rosário/Peter Zoetti, Cadernos de Arte e Antropologia, Universidade Federal da Bahia
Antônio Tomas Júnior, Pegada, UNESP-Presidente Prudente
Maria da Conceição Fonseca, Estudos de Lingua(gem), Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia
Emerson Galvani, Revista do Departamento de Geografia, Universidade de São Paulo
Sony Ray, Revista Música Hodie, Universidade Federal de Goiás
Giovani Pires, Motrivivência-Educação Física, Universidade Federal de Santa Catarina
Charles França, Terra Livre, Associação dos Geógrafos Brasileiros
Eustógio Dantas, Mercator, Universidade Federal do Ceará
Olga Rosa Cabrera Garcia, Revista Brasileira do Caribe, Universidade Federal do Maranhão
Yolanda Guerra, Revista Temporalis, ABEPSS
Zeny Rosendahl, Espaço e Cultura, Universidade Estadual do Rio de Janeiro
Cláudio Luiz Zanotelli, Geografares, Universidade Federal do Espirito Santo
Angelo Serpa, Geotextos, Universidade Federal da Bahia
José Gilberto de Souza, Estudos Geográficos, Unesp–Rio Claro
Luiz Eduardo Panisset Travassos, Caderno de Geografia, PUC-MG
João Cleps Júnior, Campo Território, Universidade Federal de Uberlândia
Rosemeire Almeida, Boletim Três Lagoas, Universidade Federal do Mato Grosso do Sul
Rafael da Silva de Oliveira, Acta Geográfica, Universidade Federal de Roraima
Marcos Edras, Desenvolvimento Social, Universidade Estadual de Montes Claros-MG
Ivanilton José de Oliveira, Ateliê Geográfico, Universidade Federal de Goiás
Cláudio Benito, Entre-Lugar, Universidade Federal Grande Dourados -MS
Carmem Lúcia Costa, Espaço em Revista, Universidade Federal de Goiás
Adriana Dorfman, Boletim Gaúcho de Geografia, AGB- Rio Grande do Sul
Cláudio Ubiratam, Geografia, Universidade Federal de Pernambuco
Christian Dennys Monteiro de Oliveira, Geosaberes, Universidade Federal do Ceará
Tathiana Rodrigues Salgado, Revista Élisée, Universidade Estadual de Goiás
João Batista Pereira Cabral, Geoambiente Online, Universidade Federal de Goiás
Denis Castilho, Territorial, Universidade Federal de Goiás
Márcio Mendes Rocha, Percurso, Universidade Estadual de Maringá-Paraná
Elson Rezende de Melo, Revista de Ciências Humanas, Universidade Federal de Viçosa-MG
Cicilian Luiza Sahr, Terr@Plural, Universidade Estadual de Ponta Grossa-Paraná
Sandra de Fátima Oliveira, Terceiro Incluído, Universidade Federal de Goiás
Antônio Fábio Sabbá Guimarães, GEONORTE, Universidade Federal do Amazonas

As instituições que subscrevem:

Associação de Geógrafos Brasileiros – AGB
Associação Brasileira de Ensino e Pesquisa em Serviço Social-ABEPSS
Programa de Pesquisa e Pós-Graduação em Geografia – Goiânia/UFGPrograma de Pesquisa e Pós-Graduação em Geografia – Jataí/UFG
Programa de Pesquisa e Pós-Graduação em Geografia – Catalão/UFG
Associação de Geografia Teorética – AGETEO

Enviada no dia 01 de novembro de 2012 para os seguintes contatos institucionais:

Capes – Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior
36.geog@capes.gov.br
35.antr@capes.gov.br
40.hist@capes.gov.br
34.soci@capes.gov.br
29.arqu@capes.gov.br
11.arte@capes.gov.br
pr@capes.gov.br
csbac@capes.gov.br
periodicos@capes.gov.br

CNPq – Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico

dehs@cnpq.br
cgchs@cnpq.br
cochs@cnpq.br
cosae@cnpq.br
editoração@cnpq.br
presidencia@cnpq.br
comunicação@cnpq.br
cgefo@cnpq.br

Contato para novas adesões: periodicoschumanas@yahoo.com.br

Um liberal que liberava

18/10/2012 15:22

As presenças de Severo

Por PAULO SÉRGIO PINHEIRO

professor titular de ciência política aposentado da USP. Ex-secretário de Estado dos Direitos Humanos (governo FHC)

“Tinha este dom, o Severo: nele os extremos se tocavam, cessavam os contrastes. A boêmia e a disciplina. O empenho no que fazia e o à-vontade no que sabia de graça”

Otto Lara Rezende, em “A sua vida continua”, na Folha de 16 de outubro de 1992

*

Nesses dias em que a Comissão Nacional da Verdade começa a desvendar os crimes dos agentes de Estado na ditadura militar, ganham sentido as denúncias de tortura que Severo Gomes, ministro no governo Geisel, levava corajosamente ao centro de governo.

Agora que se refazem os rastros do financiamento das equipes de torturadores pelos grandes industriais paulistas, entre os raríssimos que não contribuíram estão José Mindlin e Severo Gomes.

Mas os protetores dos algozes jamais irão perdoar Severo, e a sua queda do ministério se dá justamente no contexto de uma provocação armada por eles.

Liberal num governo autoritário, apoiou a realização na Universidade de Brasília da reunião de 1976 da SBPC (Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência), uma das gigantescas assembleias pela democracia das quais sempre participava.

Uma pesquisa sobre história da industrialização em São Paulo, em convênio com a Unicamp, chega até a mesa do general Geisel, que o chama para explicar o que o Ministério da Indústria e Comércio tinha a ver com aquilo. Severo explicou: “Presidente, como estudar a indústria sem tratar da história dos operários?”.

O convênio serviu para consolidar ali o Arquivo de História Social Edgard Leuenroth, o maior do continente hoje. Dali saiu o belíssimo filme de Lauro Escorel, “Os Libertários”. Lembro-me da projeção do copião no apartamento de Severo, emocionado.

Severo se inquietava com a situação das prisões no Brasil, 90 mil presos submetidos à superpopulação e a condições inumanas –hoje são 515 mil detentos, a quarta maior população carcerária do mundo, depois dos EUA, da China e da Rússia.

Em 1983, Severo, já na oposição, convoca um grupo de amigos –Fernando Millan, Hélio Bicudo, José Gregori, Antonio Candido (seu antigo mestre que admirava) e outros– para visitar o manicômio de Franco da Rocha, onde pacientes foram massacrados pela polícia militar.

O grupo viria a ser Comissão Teotônio Vilela de direitos humanos, que comemora agora 29 anos.

Severo, no Senado, dedicou-se aos temas da transição política e do Estado de Direito. Na Constituinte, foi um dos relatores do artigo 5º da Constituição de 1988, que trata dos direitos individuais.

Ali defendeu os direitos dos afrodescendentes, organizando o primeiro seminário sobre racismo na história do Senado Federal. Defendeu arduamente os povos indígenas, junto com a comissão pela criação do Parque Yanomami.

Nos seus discursos clamava pela redistribuição da renda e da riqueza, denunciando a falta de recursos para enfrentar os problemas sociais.

A cena embaçada em um filme, naquele 12 de outubro, há vinte anos, foi a última.

Em um fim de tarde cinzenta em Angra dos Reis, Maria Henriqueta, sua mulher, sobe a escada de um helicóptero, onde já estavam Ulysses Guimarães e sua mulher, Mora. Antes de entrar, Severo, um lenço amarrado em volta do pescoço, sorri. A cerimônia dos adeuses foi fugaz. O que nos resta é não esquecer.

FONTE: Jornal Folha de São Paulo. Disponível em: http://www1.folha.uol.com.br/opiniao/1168270-tendenciasdebates-as-presencas-de-severo.shtml

Acesso em: 18 out 2012

Reforma agrária? Que reforma?

17/09/2012 16:25
Por Passa Palavra

Publicado originalmente na página do jornal Passa Palavra em 13 de setembro de 2012

Se consideramos apenas as posições tomadas nos congressos do Partido Comunista Brasileiro (PCB) e as ações governamentais, a percepção da existência de uma questão agrária no Brasil consolidou-se na década de 1950. Mas a reflexão sobre a questão agrária é bem anterior. Por parte da burguesia local, vem pelo menos desde os debates do Barão de Mauá com seus pares aristocratas do Senado quanto à “vocação” do Brasil, se agrária ou industrial. Este debate segue nos anos 1930 com os corporativistas — Roberto Simonsen e congêneres — e Octávio Brandão como voz isolada no PCB. De todo o modo, embora estrivesse colocada desde muito antes, foi a partir do fim da Segunda Guerra Mundial, em especial com o avanço da industrialização, que a questão agrária passou a ter mais peso. A concentração da propriedade da terra nas mãos de poucos latifundiários seria a causa maior da miséria, da fome, da doença e do analfabetismo no meio rural, que até então constituía a grande maioria da população nacional (em torno de 69% em 1940). Tais fatos levavam também a identificar o latifúndio como responsável pelo atraso do desenvolvimento do país. A imposição da miséria, excluindo o maior contingente populacional do mercado, bloqueava o desenvolvimento da industrialização.

Deste modo, a Reforma Agrária entrou definitivamente na pauta política. As lutas e mobilizações dos camponeses ganharam visibilidade e obtiveram o apoio de partidos, sindicatos e grupos diversos. A Reforma Agrária se transformou em um tema deveras importante e foi um dos motes para o golpe civil-militar de 1964. Naquela época o governo do general Castelo Branco criou a primeira lei de Reforma Agrária, o Estatuto da Terra. E ainda que este, tal qual a Reforma, tenha permanecido letra morta, isso não impediu que a Reforma Agrária, com a aplicação do estatuto — enquanto seu instrumento legal —, fosse a principal reivindicação do movimento rural.

Mas por que motivo o capitalismo precisa de uma Reforma Agrária? Será que precisa mesmo? E, no caso afirmativo, de que tipo de reforma agrária? O que é que se quer dizer com Reforma Agrária? Uma mobilização de massas com aspectos radicais e igualitários, ou qualquer tipo de mudança relativamente profunda da sociedade rural? É uma revolução ou uma reforma? E, se for uma reforma, que tipo de reforma?

Será indispensável uma Reforma Agrária para a modernização da agricultura?

As cartilhas de formação dos militantes costumam afirmar como uma evidência que sem Reforma Agrária não há modernização da agricultura, baseando-se no inevitável exemplo russo. Na Rússia, porém, foi a própria monarquia que começou por se modernizar no final do século XIX, e a extinção da servidão e as reformas que se seguiram tiveram como efeito o desenvolvimento do capitalismo nos campos, como Lenin bem estabeleceu na principal obra econômica da sua juventude. É verdade que a tradicional comunidade de aldeia continuava a ser um importante quadro organizativo, mas parecia inelutável que o capitalismo rural a corroesse a prazo. O principal fator de inércia na Rússia não foi o campo, mas a hierarquia política, o czarismo. É certo, porém, que as derrotas militares russas na primeira guerra mundial e a crescente dissolução do exército em 1917 aceleraram a Reforma Agrária, mas conduzida agora a partir da base. Nos anos seguintes o acesso generalizado dos camponeses à propriedade da terra apressou e ampliou o processo de concentração econômica, o que permitiu que as contradições sociais no campo chegassem, em dez anos, de 1917 até 1928, a um tal ponto que facilitou a luta generalizada contra os kulaks, quer dizer, os camponeses ricos, e permitiu a estatização da agricultura. A coletivização stalinista da agricultura não foi uma mera operação burocrática, como geralmente é apresentada, mas uma segunda revolução, onde a iniciativa popular foi drasticamente reduzida e canalizada dentro dos limites marcados pelo bureau político. Por isso a reforma agrária conduzida pelo próprio campesinato em 1917-1918 foi dirigida politicamente pelo Partido Socialista Revolucionário de Esquerda, que era então um aliado dos bolchevistas, enquanto a coletivização stalinista da agricultura foi conduzida pelo Partido Comunista, quando os socialistas-revolucionários de esquerda já tinham sido dizimados há dez anos.

Neste contexto é também inevitável o exemplo da China, onde foi necessário o Partido Comunista conduzir uma Reforma Agrária para que pudesse ocorrer a modernização econômica e a industrialização.

Mas estes dois casos serão a regra ou serão exceções? Ou será que o desenvolvimento histórico é muito mais complexo e que não existe aqui uma regra única? Os brasileiros geralmente interessam-se pouco pelos outros países, mas o Brasil está no mundo e sem entender o mundo não se entende o Brasil. Vejamos o que nos mostram outros exemplos.

As revoluções inglesa e francesa, respectivamente dos meados do século XVII e do final do século XVIII, foram em grande medida revoluções rurais que criaram uma burguesia camponesa e desenvolveram o proletariado agrícola. Mas estas revoluções ocorreram de maneira muito diferente. Na Inglaterra a revolução do século XVII não liquidou a nobreza, mas foi a nobreza que se tornou comercial e industrial. Ou seja, a mudança econômica efetuou-se na Inglaterra mediante uma aparente continuidade social.

De início, podia imaginar-se que o mesmo fosse acontecer na França, como tenderia a assinalar o aparecimento da fisiocracia. Com efeito, é significativo que a fisiocracia, que foi a primeira teoria moderna da economia e defendeu a primazia econômica do campo e a modernização econômica rural, tivesse pretendido modernizar a monarquia e não fazer uma revolução. Mas, como se sabe, a história teve outro curso e no final do século XVIII ocorreu na França uma profunda revolução social com uma ampla componente rural. Ora, no século XIX o desenvolvimento econômico da França foi mais retardatário do que o britânico e ficou ultrapassado pelo alemão.

Bastam estes exemplos para devermos pensar duas vezes, ou mesmo três vezes, antes de associarmos reforma agrária e desenvolvimento econômico. E as dúvidas não param aqui, porque é significativo que o verdadeiro arranque econômico da França se tivesse operado depois de 1814, com o regresso da monarquia. A revolução francesa no campo havia favorecido os notables, quer dizer, as pessoas mais ricas das aldeias, e estes médios proprietários camponeses que se beneficiaram com a revolução não aceleraram nem facilitaram o desenvolvimento capitalista; pelo contrário, constituíram um entrave. Por seu lado, os camponeses que se haviam revoltado contra o rei e contra a nobreza tinham-se revoltado também contra as medidas pró-capitalistas tomadas no final da monarquia. Em suma, a revolução atrasou o desenvolvimento do capitalismo francês relativamente ao capitalismo britânico.

Mais flagrantemente ainda, na Alemanha a modernização econômica e a industrialização foram feitas com os Junkers, os grandes proprietários fundiários da nobreza de tradição feudal, e não contra eles. Os Junkers não atrasaram a industrialização, mas colaboraram com ela. Do mesmo modo, no final do século XIX o Japão operou uma rápida passagem ao capitalismo e um desenvolvimento econômico acelerado sem proceder a nenhuma Reforma Agrária.

Um caso bastante mais complexo é o dos Estados Unidos. Não parece que os estados escravistas do sul tivessem prejudicado o desenvolvimento econômico. Pelo contrário, já que o regime de plantação do algodão para exportação incentivou o crescimento do país e a industrialização. Os estados do nordeste comercializavam parte do algodão do sul e, além disso, estabeleceram indústrias de fiação e outras indústrias para vender produtos manufaturados para o estados do oeste e do sul. Paralelamente, as plantações escravistas do sul eram rentáveis. Talvez o obstáculo neste caso tivesse vindo do lado do produtor, já que o caráter fixo da força de trabalho escrava impedia a mobilidade da mão-de-obra, indispensável ao capitalismo; tanto mais que o fluxo de migração interna rumo ao oeste, onde a terra era livre, diminuía o número de trabalhadores nos estados industriais do nordeste. Se esta análise estiver correta, devemos admitir que um sistema de plantação, sem escravidão mas com uma força de trabalho muito mal paga e obrigada a comprar os meios de subsistência no armazém do patrão, não é prejudicial para o desenvolvimento capitalista desde que essa força de trabalho tenha mobilidade. O certo é que nos Estados Unidos a história correu de maneira diferente e, ao contrário do caso alemão, em que os industriais se aliaram com os grandes proprietários, os Junkers, no caso norte-americano o desenvolvimento econômico resultou de uma aliança da indústria (estados do nordeste) com a pequena e média agricultura (estados do oeste) contra o sistema de plantações (estados do sul).

Assim, a questão da Reforma Agrária insere-se em contextos históricos muito mais complexos do que a simples relação entre o setor rural e a restante economia. Por isso, parece ilegítimo pretender que uma Reforma Agrária — mesmo independentemente de saber qual o tipo dessa reforma — seja indispensável ao desenvolvimento econômico. A ausência de uma revolução ou de uma Reforma Agrária pode não revelar uma sociedade esclerosada. Pelo contrário, pode revelar uma sociedade que foi capaz de se modificar internamente e de se adequar às novas necessidades. Nesta perspectiva, é indispensável distinguir uma mudança exclusivamente dirigida para as estruturas econômicas e uma mudança mais ampla, incluindo a renovação da composição das classes dominantes.

E no Brasil?

Perante estas interrogações, o que significa exatamente mencionar a Reforma Agrária no Brasil? O debate contemporâneo sobre a Reforma Agrária no Brasil divide-se basicamente em dois pólos antagônicos.

Por um lado, há os que, como Zander Navarro [1], defendem que o momento da Reforma Agrária já passou, que a modernização da sociedade leva inexoravelmente a um processo de êxodo do campo, convertendo os camponeses numa classe agonizante. Além disso, argumentam que não mais existe grande volume de terras improdutivas disponíveis para redistribuição, pois os latifúndios tradicionais foram convertidos em empresas de agronegócio, não cabendo, portanto, limitação do seu tamanho. Deste modo, a Reforma Agrária seria irrelevante para o desenvolvimento rural, em decorrência da modernização tecnológica da agricultura, do aumento da produtividade e do lucro gerado nas fazendas do agronegócio. Para os opositores e céticos em relação à Reforma Agrária, os assentamentos assemelham-se a “favelas rurais” ao invés de fazendas bem-sucedidas.

No entanto, a precariedade de muitos assentamentos pode ser explicada pelo tipo de política governamental adotada, ou pela falta dela. Segundo um estudo governamental de 2002, de todos os assentamentos constituídos entre 1995 e 2001, 55% não tinham eletricidade, em 49% faltava água potável, em 29% não havia escola de nível fundamental e 62% careciam de acesso a assistência médica de emergência, acentuando-se, ainda, o fato de muitos assentamentos terem sido criados em áreas distantes dos mercados locais e serviços públicos. Ainda assim, apenas 12% dos lotes agrícolas haviam sido abandonados [2].

Por outro lado, os que defendem a Reforma Agrária enfatizam que ela é uma política eficaz contra a secular injustiça social do Brasil, pois conseguiria diminuir a desigualdade social. Argumentam ainda que a maioria dos latifúndios não conseguiria sobreviver sem os vultosos subsídios públicos e que tampouco o agronegócio é tão eficiente quanto propagam as grandes empresas midiáticas, bastando constatar que o governo continua a utilizar os índices de produtividade do Censo Agropecuário de 1975.

Além disso, os defensores da Reforma Agrária destacam que, de acordo com o Censo Agropecuário de 2006, a maior parte dos alimentos consumidos no país é produto da agricultura familiar: mandioca (92%), carne de frango e ovos (88%), banana (85%), feijão (78%), batatas (77%), café (70%) e leite (71%) [3].

Mas vejamos. Se o Brasil vem de um longo passado histórico de agricultura em sistema de plantagem com produção de subsistência existindo a reboque, parece estranho que os defensores da agricultura familiar reivindiquem como conquista aquilo que é exatamente a reprodução do mesmo sistema que combatem. Aquelas estatísticas do Censo Agropecuário de 2006 apenas demonstram com números que mais de cinquenta anos de políticas de Reforma Agrária não resultaram em qualquer mudança significativa da estrutura agropecuária brasileira. Interessante seria se os defensores da agricultura familiar mostrassem dados a indicar seu avanço em setores onde o agronegócio e a plantagem dominam, e mesmo estes ainda precisariam levar em conta arrendamentos e meações. Mas como isto não existe, pois esses setores exigem economias de escala impossíveis de alcançar para a agricultura familiar, a persistência de uma derrota é apresentada como conquista.

Os defensores da Reforma Agrária afirmam também que este tipo de modo de produção agrícola apresenta maior produtividade por hectare (em terras de menor qualidade) do que as fazendas de grande escala, gerando ainda um maior número de empregos no campo (87%) e de forma mais barata [4].

Para muitos de seus defensores, a Reforma Agrária traria igualmente ganhos no manejo ecológico, que seria próprio da agricultura familiar, em contraste com o agronegócio, caracterizado pela criação de gado em grande escala e pela alta dependência de defensivos químicos.

Ora, a afirmação de que a agricultura familiar, nas condições de atraso tecnológico em que continua a ser praticada no Brasil, seria mais produtiva do que o agronegócio baseia-se em vários malabarismos. Por um lado, as culturas intensivas são sempre mais produtivas por hectare do que as culturas extensivas. Por área plantada, as hortas e os pomares são sempre mais produtivos do que os campos de cereais, daí o papel que desempenham na produção de alguns alimentos. A comparação da produtividade por hectare deve ser feita, por isso, entre a cultura intensiva em explorações familiares tradicionais e a cultura intensiva em explorações capitalistas modernas e usando novas tecnologias. Por outro lado, quando afirmam que a agricultura familiar gera um maior número de empregos no campo, os defensores desta modalidade de Reforma Agrária estão implicitamente dizendo que esse tipo de exploração é muito menos produtivo em termos de força de trabalho. E quando acrescentam que os empregos são gerados de forma mais barata na agricultura familiar do que no agronegócio, os defensores daquela modalidade de Reforma Agrária estão implicitamente reconhecendo que o sistema de trabalho doméstico constitui uma forma gravosa de auto-exploração.

Em que terreno se situa esta polêmica?

A partir de 1970, em menos de quatro décadas a situação do país sofreu mudanças fundamentais. Uma delas foi a inversão da população rural e urbana. Em 1980 a população urbana já era de aproximadamente 68%, contra 32% da rural, invertendo a proporção de 1940. De acordo com o censo de 2010, a população residente na área rural é agora inferior a 16%; e estimativas contidas em relatório de 2012 da ONU para o habitat prevêem que a taxa de urbanização no Brasil deva chegar a 90% até 2020 [5].

Note-se, porém, que a concentração da população nas cidades não é imediatamente sinônimo do declínio da agropecuária. Segundo o Censo 2010, dos 5.565 municípios brasileiros somente 284 (5,1% do total) ultrapassaram os 100 mil habitantes, e sua população somada chegava a 105.626.953 pessoas (54,91% do total). Os 5.279 municípios restantes (94,86% do total) estão abaixo dos 100 mil habitantes, e sua população somada era de 86.649.231 pessoas (45,04% da população brasileira total). Ora, a maioria destes municípios restantes tem sua economia diretamente ligada à produção agropecuária ou ao extrativismo. Se é assim, embora hoje mais de 80% da população brasileira resida em cidades, pode dizer-se que quase metade da população brasileira vive da agropecuária ou de serviços a ela relacionados. E se levarmos em conta que muitos municípios com população maior que 100 mil habitantes têm economia agrária, esta estimativa pode alcançar até mais da metade da população brasileira. É certo que o campo está em franco esvaziamento, mas isto não significa que as cidades brasileiras sejam menos agrárias nem que as suas periferias estejam desligadas da produção agropecuária. Nesta perspectiva, entende-se que a nova conjuntura do país tivesse determinado a alteração no padrão geral das migrações, diminuindo os fluxos para o Sudeste, ao tempo em que se intensificam os movimentos entre cidades pequenas e médias, sobretudo no Centro-Oeste.

É ainda naquela perspectiva que devemos entender o crescimento das periferias e favelas. Ora, um dos efeitos alardeados da reforma agrária seria o de contribuir para conter ou mesmo reverter em partes o êxodo rural, reduzindo consequentemente a pobreza urbana e atenuando os índices de criminalidade e as expressões de violência nas cidades, além de fortalecer os pequenos municípios brasileiros. Curiosamente, esta tese não está nada distante da idéia de que a violência e a criminalidade são geradas pelo trabalhador pobre. E assim se repõe, uma vez mais, outra divisão no seio da própria classe, pretendendo que os mais pobres são os mais perigosos.

Porém, uma das regras da demografia no capitalismo é o abandono dos campos e a concentração de pessoas nas cidades, decorrente de dois motivos: por um lado, à medida que o capitalismo se desenvolve na agropecuária, aumenta a produtividade, medida tanto por área como por força de trabalho; por outro lado, o crescimento da indústria e dos serviços, concentrados nas cidades, requer mais força de trabalho. Quanto a este último aspecto, o referido relatório da ONU para o habitat conclui exatamente que são os centros urbanos os impulsionadores da economia não apenas no país mas em toda a região da América Latina e do Caribe, concentrando-se nas cidades os serviços e a indústria; sendo elas responsáveis por dois terços do Produto Interno Bruto de toda a região; tendo crescido seis vezes o número de cidades na região desde os anos 1960, o que a torna uma das regiões mais urbanizada do mundo, com cerca de 80% do total da população (588 milhões de pessoas) vivendo em cidades – ficando atrás da América do Norte (82,1%) e Europa (84,4%).

Este relatório da ONU mostra também que aumentaram a desigualdade e as contradições sociais nas cidades, sendo que 111 milhões de pessoas na região vivem em habitações precárias. Mas no sistema capitalista a única forma de travar a migração dos campos para as cidades é o atraso econômico, tanto diminuindo a produtividade da agropecuária como freiando o crescimento da indústria e dos serviços. Será que para evitar a precariedade das periferias urbanas devemos manter o atraso econômico tanto nos campos como nas cidades? Convém que este dilema seja deixado bem explícito, perante a defesa daquela noção de Reforma Agrária.

É que as alternativas não se limitam àquele dilema. Outra alternativa é a criação e o desenvolvimento de uma unidade de luta entre os trabalhadores que permaneceram no campo e aqueles que migraram para as periferias e as favelas das cidades, incluindo migrações sazonais para empregos temporários na indústria agrícola e na construção civil. A este respeito, vale a pena ver o vídeo Zona Crítica, que ainda foi produzido dentro do MST. Esta é a única perspectiva compatível com o crescimento econômico, mas não se insere no programa estrito de uma Reforma Agrária.

Além disso, o crescimento econômico dos últimos anos, com a oferta de empregos nas cidades, nomeadamente na construção civil, e a crise da agricultura camponesa, em que cerca de 90% dos agricultores familiares estão com enormes dificuldades econômicas [6], coloca sérios obstáculos nesta conjuntura para tal proposta de Reforma Agrária.

A questão fica ainda mais complexa ao verificarmos que, por um lado, os programas de assistência focada, nomeadamente o Bolsa Família, têm retirado milhões de pessoas da miséria extrema e garantido acesso a alguns serviços básicos. Remetemos aqui para a série de artigos que o Passa Palavra publicou sobre o Programa Bolsa Família.

Por outro lado, a agropecuária e o agronegócio já não obedecem ao velho modelo latifundiário. Modernizaram-se e aumentaram muito os níveis de produtividade, estando na origem de uma parte substancial do superávit comercial. Neste contexto, recordamos um artigo publicado no Passa Palavra em que se defende que a transformação das commodities num dos principais pilares da economia brasileira não corresponde a nenhuma regressão tecnológica nem a um regresso ao Brasil-colônia. Curiosamente, a tese de que a importância assumida pelas commodities na economia brasileira equivale a uma desindustrialização do Brasil deve-se sobretudo a Bresser Pereira. Não há dúvida que se trata de um notável intelectual e de um economista arguto, mas, para que o debate ficasse mais claro, seria bom que aquelas pessoas que na extrema-esquerda defendem a tese da desindustrialização reconhecessem a sua origem política.

Ampliando a análise de modo a incluir toda a agricultura, convém saber que, de acordo com uma notícia publicada no Valor Econômico em 11 de Julho de 2012, um levantamento realizado pela OCDE estabeleceu que “a produtividade da agricultura brasileira cresceu o dobro da média mundial na ultima década, ou cerca de 4% ao ano”. “O crescimento da produtividade brasileira passou de 0,9% ao ano, em média, entre 1961 e 1970, para 4,04% entre 2001 e 2009”. Para efeitos de comparação, a “Rússia e Ucrânia, que saíram de níveis baixíssimos, conseguiram altas de 4,29% e 5,35% ao ano, respectivamente, na última década”. Porém, “no caso dos EUA, um dos maiores produtores mundiais, o ganho médio de produtividade aumentou de 1,21% para 2,26% ao ano na última década” [7].

O que seria a Reforma Agrária hoje?

Deste modo, se nas décadas de 1950 e 1960 era dominante na esquerda a tese de que sem a Reforma Agrária o Brasil permaneceria numa condição de subdesenvolvimento, esta situação modificou-se com o transcorrer dos anos e o país desenvolveu-se em muitos aspectos relevantes a despeito de não realizar tal Reforma. Por isso, e ainda que a reivindicação de uma Reforma Agrária não se tenha extinguido, principalmente pelo poder de mobilização e pelas ações dos movimentos camponeses, notadamente o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), a partir dos anos 2000 a Reforma Agrária vem cedendo espaço para outros temas e está já sendo questionada no interior dos próprios movimentos rurais. Acresce que os movimentos mais eficazes de luta pela terra no país, na última década, têm sido os movimentos indígenas e o movimento quilombola.

Na realidade, os assentamentos resultaram de pressões sociais e ações localizadas e pontuais, com vistas a regularizar ocupações e resolver conflitos e tensões, e não resultaram de qualquer luta generalizada pela Reforma Agrária. “O que veio se produzindo ao longo dos anos, isso sim, ainda que se possa questionar a sua eficácia, foi uma política para a reforma agrária, ou para os beneficiados por suas intervenções, mesmo que não lhes seja exclusiva, e que ganha corpo em programas e iniciativas focados na agricultura familiar. A questão que fica, portanto, é se ainda há espaço hoje para a reforma agrária” [8].

Nem os programas de assistência nem o crescimento econômico saldaram o gigantesco e histórico passivo do Brasil na área rural. A riqueza gerada continua sendo extremamente concentrada. No campo — em comparação com o meio urbano — continuam os maiores índices de desigualdade, os baixos níveis de escolaridade, as carências em atendimentos básicos como saúde, saneamento, cultura, direitos. Para Grzybowski [9], esta desigualdade no campo, aprofundada pelas diversas formas de exploração e marginalização, em particular dos trabalhadores assalariados, se deve exatamente ao “sucesso” do modelo de desenvolvimento modernizador, que reproduz em escala ampliada a exclusão já existente no meio rural, não se tratando, pois, de “falta” de desenvolvimento. De acordo com uma dirigente do MST, “por esta lógica — do capital — atualmente não haveria mais uma questão agrária em aberto, a reforma agrária foi realizada, não como gostaríamos, mas às avessas, pelo capital” [10]. Para os defensores da Reforma Agrária, se mantivermos o olhar nos impactos da “modernização conservadora” sob a perspectiva do trabalho, e para amplos setores da sociedade brasileira, perceber-se-á que a questão agrária permanece aberta, pois tem efeitos negativos nas condições de vida dos trabalhadores e agricultores familiares, na distribuição de renda e riquezas no país e no que eles consideram como manejo ecológico do meio ambiente e como produção de alimentos saudáveis e a preço acessível para a maioria da população. Apesar dos avanços no campo jurídico institucional, os constrangimentos no campo econômico mantiveram a desigualdade inalterada.

A modernização conservadora também tem suas implicações na esfera política, constituindo uma representação oligárquica e solapando a extensão democrática dos direitos de cidadania da população mais pobre, especialmente no meio rural. E assim a sobre-representação política dos latifundiários equivale ao acesso privilegiado aos cofres públicos. Entre 1995 e 2006, estima-se que a representação política dos latifundiários e do agronegócio foi de 2.587 vezes maior do que a dos camponeses pobres e sem-terra. A representação política média dos proprietários de terra foi de um deputado federal para cada 236 famílias, enquanto a dos camponeses sem-terra foi de um deputado para cada 612 mil famílias. No plano econômico, de 1995 a 2005, os grandes fazendeiros tiveram acesso a 1.587 dólares em gastos públicos para cada dólar concedido aos trabalhadores rurais sem-terra [11]. Na safra 2005/2006, os médios e grandes proprietários de terras, com 342.422 estabelecimentos, tiveram acesso a R$ 44,3 bilhões [milhares de milhões]. Em média, cada um recebeu R$ 130 mil. Em contraste, no mesmo período o orçamento do Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (Pronaf), que tem como público potencial 3,9 milhões de famílias, foi de R$ 9 bilhões. Na média, cada família tem disponível um pouco mais de R$ 20 mil. Mesmo dentro do Pronaf, os assentados enfrentam outras dificuldades para obter crédito. Foram assinados apenas 64.416 contratos com as 580 mil famílias em projetos da reforma agrária, cerca de 11% do total. O crédito agrícola oferecido girou em torno de R$ 568 milhões, ficando R$ 9 mil por família [12]. No governo Dilma, o Plano Agrícola e Pecuário 2011/2012 prevê uma liberação de R$ 107,2 bilhões (aumento de 7,2% em relação à safra anterior), com condições especiais de financiamento para a renovação de canaviais e para a pecuária, com linhas de crédito diferenciadas [13].

Mas estaria, então, a Reforma Agrária deixando de ter sentido no cenário atual enquanto modelo de redistribuição generalizada de terras e cedendo espaço para ações voltadas à ampliação da cidadania, como a busca por um tipo de desenvolvimento mais justo, igualitário e inclusivo também no meio rural?

Num dos países de maior concentração de renda do mundo, associada a um enorme leque de outras desigualdades, a Reforma Agrária pode ser considerada como um passo importante na construção de uma ordem democrática mais sólida e de uma sociedade mais justa. Foi assim que a Reforma Agrária se articulou numa luta ampla pelo fim do regime militar e o retorno de um sistema democrático que apontasse para um tipo de desenvolvimento vinculado à justiça e igualdade. Porém, com a democratização política do país e a consolidação dos projetos neoliberais, a partir dos anos 1990 a Reforma Agrária, aos poucos, deixou de ser objeto de campanhas autônomas dos grupos progressistas. “Assim, já em 1993, a reforma agrária deixou de ser objeto de uma campanha autônoma, para tornar-se parte da Ação da Cidadania contra a Fome, a Miséria e pela Vida” [14].

Mas se a bandeira da redução da pobreza foi encampada pela Campanha Nacional pela Reforma Agrária (CNRA), isto significa, em palavras diretas, a defesa de um tipo de desenvolvimento civilizatório do capitalismo no campo? Neste sentido, a distribuição pontual e localizada de terras, em conjunto com políticas de planejamento, concessão de crédito, assistência técnica, integração ao mercado seria o novo caminho a percorrer?

Este, de fato, parece ser o consenso enquanto objetivo estratégico entre governo, grandes empresas e movimentos sociais, variando, isto sim, os valores, graus e intensidade de tal projeto, mas não seu aspecto estrutural.

Referências

[1] Lerrer, Débora. Reforma Agrária – Os caminhos do impasse. Editora Garçoni, São Paulo, 2003.
[2] Carter, Miguel. Desafiando a desigualdade: contestação, contexto e consequências. In: Combatendo a desigualdade social – O MST e a reforma agrária no Brasil. Editora Unesp, São Paulo, 2009.
[3] Carter, Miguel. Desigualdade social, democracia e reforma agrária no Brasil. In: Combatendo a desigualdade social – O MST e a reforma agrária no Brasil. Editora Unesp, São Paulo, 2009.
[4] Oliveira, Ariovaldo Umbelino de. As transformações no campo e o agronegócio no Brasil. In: Secretaria da CONCRAB. O agronegócio x agricultura familiar e a reforma agrária, Brasília, 2004.
[5] Estado das Cidades da América Latina e Caribe – Programa das Nações Unidas para os Assentamentos Humanos (ONU-HABITAT), 2012.
[6] Fernandes, Bernardo Mançano. O MST não está em crise, mas, sim, os pequenos agricultores. Entrevista. Unisinos, 2011. Disponível em: http://www.ihu.unisinos.br/entrevistas/42460-o-mst-nao-esta-em-crise-mas-sim-os-pequenos-agricultores-entrevista-especial-com-bernardo-mancano-fernandes
[7] Disponível aqui: http://clippingmp.planejamento.gov.br/cadastros/noticias/2012/7/11/brasil-e-destaque-em-trabalho-da-ocde-sobre-produtividade
[8] Grynszpan, Mário. Reforma agrária sob olhar histórico. Democracia Viva, n. 47. IBASE, Rio de Janeiro, agosto de 2011.
[9] Grzybowski, C. Apud Neto, Luiz Bezerra (1999). Sem-Terra aprende e ensina. Estudo sobre as práticas educativas do movimento dos trabalhadores rurais. Campinas: Autores associados.
[10] Cf. entrevista 10/11/2009 – chegada da marcha Campinas-São Paulo, 2009.
[11] Carter, Miguel. Desigualdade social, democracia e reforma agrária no Brasil. In: Combatendo a desigualdade social – O MST e a reforma agrária no Brasil. Editora Unesp, São Paulo, 2009.
[12] Dinheiro público financia o agronegócio, disponível em: http://www.mst.org.br/node/834
[13] Ver http://www.portaldoagronegocio.com.br/conteudo.php?id=57272; e http://blog.planalto.gov.br/plano-agricola-e-pecuario-20112012-inclui-linhas-de-credito-para-aquisicao-de-matrizes-e-reprodutores/
[14] Grynszpan, Mário. Reforma agrária sob olhar histórico. Democracia Viva, n. 47. IBASE, Rio de Janeiro, agosto de 2011.

Fonte: Jornal Passa Palavra. Disponível em: http://passapalavra.info/?p=27717. Acesso em 17 set. 2012.

(c) Copyleft: É livre a reprodução para fins não comerciais, desde que o autor e a fonte sejam citados e esta nota seja incluída.

Ação direta e luta institucional: complementaridade ou antítese? (1ª parte)

29/04/2012 00:17
Por Marcelo Lopes de Souza
Professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro
Publicado originalmente na página do jornal Passa Palavra em 27 de Abril de 2012

Esclarecimentos conceituais

O presente texto se propõe a refletir sobre uma velha controvérsia, que já foi pretexto para discordâncias tanto no interior do campo libertário quanto, até mesmo, do marxista: qual é o valor tático de se utilizar canais institucionais estatais para se tentar promover certos avanços (ou evitar determinados retrocessos)? E que riscos e armadilhas tal uso tático pode trazer consigo?
Antes, porém, de se adentrar essa espinhosa e delicada discussão, cumpre esclarecer os significados dessas duas expressões: ação direta e luta institucional. Não se trata de tarefa trivial, uma vez que os conteúdos dessas ideias são, eles mesmos, um tanto polêmicos; por outro lado, do aclaramento desses conteúdos depende a possibilidade de evitar, de partida, ao menos alguns mal-entendidos.
Ação direta é como (principalmente) os anarquistas têm denominado, há gerações, a atividade de luta armada, mas também de propaganda, agitação e organização, com a finalidade de promover a revolução social e eliminar a exploração de classe e o Estado que lhe dá respaldo. Houve época em que, entendida como “propaganda pela ação” e privilegiando-se o enfrentamento armado, a “ação direta” foi confundida com o emprego da violência, tendo sido, às vezes, até mesmo reduzida ao terrorismo. Felizmente, mesmo entre aqueles que não rejeitaram ou rejeitam, na qualidade de último recurso ou amiúde como estrita necessidade, a resistência armada, a ação direta passou a merecer uma definição bem mais abrangente. Neste texto, consoante essa linha interpretativa, ela designa o conjunto de práticas de luta que são, basicamente, conduzidas apesar do Estado ou contra o Estado, isto é, sem vínculo institucional ou econômico imediato com canais e instâncias estatais.
De sua parte, a luta institucional significa o uso de canais, instâncias e recursos estatais, tais como conselhos gestores, orçamentos participativos ou fundos públicos. Aqui, entretanto, estabelece-se já uma distinção entre uma posição marxista-leninista e uma postura compatível com o campo libertário: a luta institucional abordada neste texto é uma luta institucional não partidária, ou seja, que não tem como pressuposto a criação de partidos políticos ou a filiação a partidos políticos por parte dos ativistas.
A própria possibilidade da luta institucional, mesmo quando não partidária, já divide os libertários e, na verdade, até mesmo os marxistas. Entre estes últimos, nem todos tiveram grande apreço pela forma-partido, muito menos pela participação no “parlamento burguês” como um expediente tático, conforme propugnava Lênin; os “conselhistas” (Anton Pannekoek, Karl Korsch etc.), críticos implacáveis de Lênin e do bolchevismo, acreditavam que os conselhos operários seriam a única organização compatível com a construção de um caminho coerente para a emancipação social, e não estruturas centralizadas e hierárquicas como os partidos políticos. Foram os anarquistas – e, da segunda metade do século XX em diante, também os neoanarquistas e os autonomistas –, todavia, aqueles que costumeiramente geraram e têm gerado mais anticorpos contra a própria ideia de organizações hierárquicas e verticais e, por via de consequência, contra a forma-partido; [1] igualmente foram eles que, com mais radicalidade e constância, rejeitaram não somente o Estado capitalista, mas sim o aparelho de Estado em geral (em relação ao qual a existência dos partidos se define). Mesmo o simples contato (ou qualquer forma de associação) com o Estado tendeu a ser rejeitado pelos anarquistas clássicos, [2] que tantas vezes parecem ter acreditado ser possível simplesmente ignorar o Estado – coisa que, o mais tardar ao longo do século XX, foi-se tornando cada vez menos realista, como muitos libertários, notadamente neoanarquistas e autonomistas, foram percebendo.
A esta altura, é conveniente diferenciar entre três posturas concorrentes no campo crítico-radical, que podem ser denominadas “estadocêntrica”, “estadófoba” e “estadocrítica”. [3] A perspectiva “estadocêntrica” é cabalmente representada pelo leninismo; a “estadófoba”, pelo anarquismo clássico; e a “estadocrítica”, por diversos autores neoanarquistas e autonomistas.
A perspectiva que o autor deste texto vem advogando é de tipo “estadocrítico”, [4] e partilha com o pensamento autonomista de Cornelius Castoriadis e com o neoanarquismo de Murray Bookchin a crítica do Estado capitalista e, para além disso, do Estado em geral − uma das razões, ao lado de outras, [5] para uma oposição ao marxismo predominante, e muito particularmente ao marxismo militante hegemônico, leninista. No entanto, a perspectiva “estadocrítica” distingue-se do anarquismo clássico porque, apesar da existência de algumas exceções, os anarquistas clássicos tipicamente cultivaram uma postura de completa desqualificação da luta institucional. Não é, assim, acidental que o anarquista Daniel Guérin, em seu importante livro L’anarchisme, destaque o “horror do Estado” (“l’horreur de l’État”) como uma das “ideias-força” do anarquismo. [6] Do ponto de vista do autor destas linhas, uma “fobia” desse tipo, apesar de indicar um temor justificável, nem sempre conduz a uma postura equilibrada e razoável, porquanto infensa a uma compreensão mais sutil da realidade. Um tal enfoque, portanto, demanda um certo reparo.
Há que se guardar uma distinção, das mais fundamentais, entre o aparelho de Estado, que é uma estrutura (vale dizer: algo que tem uma permanência na escala temporal da longa duração) e os governos específicos, apreensíveis enquanto conjunturas. Nesse ponto, vale a pena recorrer a um marxista heterodoxo, Nicos Poulantzas, para salientar que o Estado não é nem o “árbitro neutro” da ideologia liberal nem o “comitê executivo da burguesia” do marxismo-leninismo ortodoxo (ou, a rigor, também do anarquismo clássico); ele seria, isso sim, uma “condensação de uma relação de forças entre classes e frações de classe” [7] – ou, mais amplamente, entre grupos sociais. Isso significa que os conteúdos políticos concretos das práticas das instituições estatais derivam largamente das correlações de forças existentes na sociedade. Não se trata, em absoluto, de abdicar de um pensamento que compreenda que o Estado é uma estrutura heterônoma – em outras palavras, uma estrutura cuja essência mesma reside na manutenção da ordem heterônoma (assimetria estrutural de poder, separação estrutural entre dirigentes e dirigidos), da qual ele é a principal expressão e um sustentáculo imprescindível. Apenas abre a possibilidade de se poder enxergar melhor que essa estrutura não se manifesta, concretamente, como se ela fosse uma espécie de bloco maciço e sem fissuras, ou de marionete manipulada por uma única pessoa ou um único grupo. Existindo em uma sociedade marcada por conflitos e contradições, na qual os oprimidos também elaboram saberes, exercem (contra)poderes e desenvolvem (contra)projetos, o Estado está sujeito, ele mesmo, a apresentar, conjunturalmente, oscilações, mudanças maiores ou menores de orientação. Essas mudanças, mesmo que não signifiquem o fim de seu papel heterônomo, revelarão, às vezes, fortes contradições internas. Tais contradições oferecem pontos vulneráveis e potencialidades a serem eventualmente explorados pelos movimentos sociais: brechas legais, instâncias participativas oficiais, recursos e fundos públicos.
Que fique bem claro que, aqui, mesmo quando se argumentar em favor da luta institucional em algumas circunstâncias, aquilo que se estará defendendo é uma luta institucional não partidária praticada, sempre, com muita parcimônia, e conduzida, também sempre, com muita cautela, e mesmo muita desconfiança. E é nesse ponto que a perspectiva “estadocrítica” se diferencia do (marxismo-)leninismo: enquanto os leninistas, desdobrando uma questão um tanto ambiguamente presente em Marx, além de se engajarem na construção de um “Estado socialista” e não procederem a uma crítica do Estado em si (pelo menos, não depois de 1917…), também se pautavam e pautam pela organização segundo formatos hierárquicos e centralizados (partido, “centralismo democrático” etc.), a postura “estadocrítica”, como desdobramento e continuação que é do multissecular legado libertário, recusa a forma-partido e a ideia de um “Estado socialista”, que soa como a reunião de dois termos praticamente antitéticos, ou como uma (perigosa) contradição. Há, aliás, nesse particular, igualmente uma notável convergência com os marxistas “conselhistas” – infelizmente, marginalizados no âmbito do marxismo, como ainda hoje se pode ver pelo menosprezo a eles dedicado pelo ícone da historiografia marxista Eric Hobsbawm, em seu recente How to Change the World, nas pouquíssimas passagens em que ele se refere a Pannekoek ou Korsch. [8]

A favor (em princípio…) da luta institucional: defesas imprudentes versus defesas comedidas

Quem entre os homens não quiser morrer de sede
deve aprender a beber de todos os copos,
e quem entre os homens desejar permanecer impoluto
precisa saber lavar-se também com água suja.

A epígrafe com que se abre esta seção é um trecho da lavra de Nietzsche, o qual, pela boca de seu Zaratustra, defendeu que é preciso aceitar e saber “lavar-se também com água suja” (sich auch mit schmutzigem Wasser zu waschen). [9] Para as finalidades da presente discussão, essa exigência soa assaz inspiradora.
No nosso caso, “lavar-se também com água suja” pode ser interpretada como a sabedoria que reside em, mesmo sabendo que o Estado constitui uma instância de poder heterônoma, não é possível ou razoável, para os movimentos emancipatórios, suas organizações e ativistas, pretender sempre, pura e simplesmente, ignorá-lo.
Diferentemente da leitura anarquista clássica, que usualmente reduzia e reduz o “poder” ao “poder estatal” ou, pelo menos, à dominação e à opressão, Cornelius Castoriadis sublinhou a necessidade de um entendimento mais abrangente do que seja o poder [10] (e algo parecido, mas com menos profundidade, foi feito por Bookchin [11]). O poder pode, com efeito, ser heterônomo, ou seja, ter a ver com a heteronomia, com a imposição do nómos de cima para baixo ou de fora para dentro, inclusive com o respaldo decisivo daquilo que, em contraste com o “poder explícito” (pouvoir explicite), Castoriadis denominava “infrapoder implícito” (infrapouvoir implicite) – crença em leis e normas de “origem divina”, em tabus religiosos, em determinismos naturais; enfim, em fontes extrassociais do poder. Essa tem sido, aliás, a situação de longe mais comum ao longo da história da humanidade. Não obstante, o poder pode também ser autônomo (autonomia [autós + nómos]: dar-se a si mesmo a sua própria lei, autogovernar-se), uma vez que a capacidade e a possibilidade de influenciar outras pessoas não precisa ter nada a ver com intimidação, chantagem, engodo, e assim sucessivamente.
Vale a pena, talvez, repetir: o Estado é uma instância de poder heterônoma, e a principal entre todas elas, por ser, ao mesmo tempo, expressão e pilar da perpetuação de uma assimetria estrutural de poder, de uma divisão da sociedade entre dirigentes e dirigidos, de uma hierarquia institucionalizada e rígida. Para os libertários de todos os matizes, dos anarquistas clássicos a um autonomista como Castoriadis, não se trata apenas de ver o Estado capitalista como problemático, mas sim de compreender o aparelho de Estado, qualquer que ele seja, como problemático, desse ponto de vista. Por essa razão, para os libertários, clamar por um “Estado socialista” ou é cair em uma armadilha ou, no que se refere aos intelectuais identificados com a classe da “burocracia” ou dos “gestores” [12] que insistem em propagar essa ideia, preparar uma armadilha (sem eliminar, certamente, uma dose cavalar de autoengano).
É sensato avançar a tese de que ignorar o Estado não é, sempre, possível. Aliás, quase nunca é possível, mesmo que aqueles que fundam alguma “comunidade alternativa”, em meio a uma grande cidade ou mesmo em algum local ermo, possam ter, eventualmente, a ilusão de terem cortado todos os laços com o Estado. Para todos os que, como já os anarquistas Élisée Reclus e Piotr Kropotkin, não têm grande apreço por experimentos comunitários mais ou menos isolacionistas e escapistas desse tipo, deve colocar-se, portanto, claramente, a seguinte questão: quais os custos de tentar manter-se “puro e imaculado”? Ou, mais exatamente, de investir na quimera de buscar manter-se “puro e imaculado”?
Será sempre evitável participar de uma audiência pública, ou mesmo de um canal participativo instituído pelo Estado? Será sempre possível não se informar sobre a legislação existente ou em discussão e, eventualmente, organizar-se para pressionar o Estado a modificá-la ou não aprová-la? Será sempre sensato deixar de tentar acompanhar os pormenores do que se passa nas instituições do Estado? Será sempre viável deixar de participar de debates envolvendo as políticas públicas (ou, antes, estatais…) que o Estado apresenta? Será sempre melhor abrir mão de ter acesso a determinados fundos públicos?
Ao se levantar essas questões, não se está, por um minuto sequer, subestimando o poder corruptor do Estado ou edulcorando as intenções dos agentes governamentais. O desafio é o de, mesmo sabendo disso, perceber a necessidade de ir além do “nada tenho ou quero ter a ver com o Estado”, a fim de evitar o isolamento e alcançar, às vezes, maior eficácia política. Um tal desafio, entretanto, é enorme. Gigantesco. Voltar-se-á a isso na próxima seção (= primeira seção da segunda e última parte desta série de artigos), mas é possível já iniciar essa discussão a partir de um exemplo ilustre: o “municipalismo libertário” (libertarian municipalism) proposto pelo neoanarquista Murray Bookchin.
O “municipalismo libertário” se baseia em diversas premissas, dentre as quais duas merecem ser destacadas: 1) nítido reconhecimento da importância político-pedagógica da escala local, incluídas aí, com o devido destaque, as possibilidades e formas de organização condizentes com o ambiente das grandes cidades do mundo contemporâneo (sendo que, para Bookchin, contudo, a valorização da escala local não deve confundir-se com um localismo paroquial); 2) uma compreensão ampla do significado do termo “poder” – muito mais ampla que aquela usual entre os anarquistas clássicos. Sobre este último aspecto, saliente-se que, enquanto aqueles eram useiros e vezeiros em transformar a palavra “poder” em sinônimo de algo ruim, Bookchin não reduziu o poder ao poder heterônomo.
A questão é que, ao lado de virtudes bastante evidentes como o tino político, a flexibilidade mental e a sensibilidade espacial de Bookchin, o “municipalismo libertário” também incorpora uma valorização da luta institucional sem precedentes na história do anarquismo. E foi isso que muitos anarquistas ortodoxos não aceitaram e, em parte, tampouco compreenderam.
É bem verdade que o “municipalismo libertário” não poderia, nunca, ser reduzido à luta institucional, sob pena de distorcer o pensamento do libertário estadunidense. Bookchin não deixou dúvidas de que a estratégia por ele defendida visava, acima de tudo, à criação de assembleias locais (ou microlocais, por bairro) e, mais geralmente, formas de organização e frentes de atuação que resultassem em trincheiras eficazes contra a alienação, a atomização, a massificação, a apatia; em suma, contra a degradação sociopolítica e político-cultural das cidades. A partir de sua perspectiva, a luta institucional deveria ter um caráter muito relevante, mas auxiliar em comparação com a ação direta. A polêmica toda, pelo menos entre os anarquistas e outros libertários, reside no fato de que, certamente embebida em muita lucidez e muito senso prático, a proposta de Bookchin contém, no entanto, igualmente aspectos desconcertantemente arrojados, ou mesmo um pouco perigosos. O pomo da discórdia foi a ousadia de Bookchin ao propor que eleições municipais e certos canais ou instituições estatais pudessem ser utilizados para ajudar a criar algumas condições legais e institucionais que colaborassem na tarefa de fomentar assembleias populares (ou de evitar que essas experiências e institucionalidades mais ou menos “paralelas” ao Estado fossem esmagadas). Como ele não cessou de repetir, não se trataria, em absoluto, de “tomar o Estado”, mas sim de usar a margem de manobra eventualmente propiciada pela luta institucional para legislar e organizar, facilitando a construção do que ele entendia ser uma “dualidade de poder”. Ademais, ele sempre frisou que esse tipo de atuação só faria sentido na escala local, e não em escalas supralocais.
É possível ver virtudes na proposta bookchiniana, como o relativo realismo (saber valorizar e se aproveitar dos marcos espaciais e institucionais em que vivemos) e o inconformismo com uma compreensão muito fechada e épica do que seria a revolução (o que acabaria alimentando um certo imobilismo – subproduto do “nada, a não ser a revolução e a transformação total, nos interessa” – ou, pelo menos, uma baixa eficácia política e um forte isolamento). Porém, mesmo que não se concorde com o tipo de ataque antiquado e não raro mal informado que Bookchin sofreu por parte de anarquistas ortodoxos, e que tanto o amargurou no fim da vida, é forçoso reconhecer que, em sua formulação, há, pelo menos, alguns pontos fracos: 1) exageros quanto às possibilidades da “dualidade de poder”; 2) uma distinção certamente excessiva a propósito da diferença entre a escala local e as demais escalas, no que concerne ao papel do Estado; 3) o fato de que uma estratégia eleitoral que não se proponha a criar e cultivar máquinas partidárias só faz algum sentido em países nos quais a legislação permita lançar candidatos independentes, não filiados a qualquer partido (caso dos Estados Unidos, mas não de muitos outros países, entre eles o Brasil). Talvez se possa ver na argumentação de Bookchin, por tudo isso, de fato, um exemplo de “defesa imprudente” da luta institucional: uma defesa que não deve ser simplesmente desconsiderada ou inteiramente descartada, mas que ultrapassou o limiar que separa a ousadia saudável de uma certa temeridade.
A utilização da margem de manobra propiciada pelas brechas legais, pelas instâncias participativas oficiais e pelos recursos públicos a que se fez referência no penúltimo parágrafo dos “Esclarecimentos conceituais” não há de se dar, sem sombra de dúvida, sem muita prudência e uma grande dose de desconfiança, exatamente porque não se deve esquecer que, estruturalmente, o Estado não serve à liberdade, mas sim à sua restrição e, em situações-limite, à sua supressão. Dependendo das circunstâncias, se for possível avaliar que os ganhos materiais e até mesmo político-pedagógicos da luta institucional (não-partidária) tendem a ser superiores às eventuais perdas (é preciso ter em mente, acima de tudo, o risco perene de “cooptação estrutural” [13]), coisas como a disputa e a utilização inteligente de canais participativos podem complementar a ação direta – resguardada, sempre, a maior independência possível das organizações dos movimentos em face do Estado. Ou seja: a luta institucional não substitui, em hipótese alguma, a ação direta; no fundo, subordina-se a ela, assim como a tática se subordina à estratégia, e não o contrário. Na fórmula “com o Estado, apesar do Estado, contra o Estado”, empregada pelo autor deste texto em diversos trabalhos anteriores, [14] são os dois últimos ingredientes – e principalmente o último deles – que devem predominar, de um ponto de vista que leve a sério o risco da cooptação e degeneração dos movimentos e que assuma a necessidade de uma mudança sócio-espacial profunda como pré-requisito para se poder falar, com rigor e consistência, em maior justiça social e melhorias substanciais da qualidade de vida da maior parte da população. É essa possibilidade de compreensão estratégica profundamente crítica em relação ao Estado e extremamente exigente no que se refere a qualquer utilização de canais ou instâncias estatais que distingue o pragmatismo necessário a um olhar autonomista “estadocrítico” do tipo de oportunismo de figurino bolchevique.
É preciso, a esta altura, estar preparado para extrair lições, especialmente das práticas dos movimentos emancipatórios. Ao mesmo tempo em que se incorporam uma crítica e uma prudência essenciais em relação ao Estado, aceita-se que é impossível, simplesmente, pretender ignorar o aparelho de Estado, ou mesmo desconhecer que iniciativas estatais podem, às vezes, ter efeitos potencialmente positivos para a luta emancipatória. Este tipo de possibilidade é, em geral, muito pouco comum, mas é bastante variável conforme o país, a cidade e o momento histórico. Acima de tudo, é algo que jamais está plenamente dado de antemão: é a própria pressão popular, é a própria luta que pode engendrar ou, pelo menos, permitir explorar (e até ampliar) brechas legais e institucionais. A vigilância constante e a própria luta são sempre decisivas. Não há governo estatal “progressista” que não precise ser monitorado, criticado e pressionado. E o tempo todo. Esquecer disso (como decerto gostariam os militantes dos partidos de esquerda, especialmente quando conseguem instalar-se na administração do Estado) equivale, para os movimentos emancipatórios, a caminhar para o precipício.
Uma ilustração disso é dada pelos Planes argentinos (subsídios dados pelo Estado aos desempregados), abraçados pelos piqueteros sem que, com isso, todos estes tenham necessariamente ficado reféns do Estado; de fato, eles conseguiram uma vitória ao obter o direito de gerir eles mesmos os recursos. Contudo, grande parte do movimento, de fato, caiu na armadilha – se é que é correto, no caso de um movimento heterogêneo como os piqueteros, falar de “armadilha” no que se refere a uma parcela do movimento, bastante próxima do governo… Ademais, qual é a real magnitude da vitória acima assinalada? Em maio de 2004, conforme informam Svampa e Pereyra, o Plan Jefas y Jefes de Hogar alcançava 1.760.000 desempregados; ao serem incluídos também o Plan Familias e o Programa de Emergencia Comunitaria, chega-se ao significativo número (especialmente considerando-se o tamanho da população argentina, de cerca de quarenta milhões de habitantes em 2009) de 2.200.000 beneficiários. Todavia, conforme ressaltam os mesmos autores, apenas cerca de dez por cento dos planes eram “directamente controlados por las organizaciones piqueteras, puesto que el grueso de los planes depende en mayor o menor medida de las estructuras municipales y punteriles [isto é, clientelistas] del Partido Justicialista.” [15]
Outro exemplo latino-americano, bem diferente quanto à forma, mas do qual podem ser extraídas lições parecidas, vem do Brasil: o orçamento participativo de Porto Alegre, nos anos 90 (o qual, se degringolou de vez após a derrota eleitoral do Partido dos Trabalhadores nas eleições de 2004, já vinha, mesmo antes disso, dando sinais de uma certa “perda de fôlego”). O orçamento participativo da capital gaúcha, a despeito de seus defeitos e limitações, não merece, mesmo de um ângulo de análise extremamente exigente, um julgamento simplisticamente desfavorável, no estilo “nada mais foi que outra tentativa de cooptação”. Registre-se, de passagem, que o próprio Castoriadis não deixou de perceber que conjunturas favoráveis fornecem uma interessante e nada desprezível margem de manobra; e, referindo-se precisamente ao orçamento participativo de Porto Alegre, que ele conheceu no início da década de 90, admitiu: “[a]cho, aliás, que esta experiência particular é extremamente significativa e importante, pois ela mostra que mesmo quando uma iniciativa de participação provém de cima, pode suscitar uma verdadeira participação”. [16] (O que não informaram a ele é que o movimento de bairros de Porto Alegre já tinha, anos antes da vitória do Partido dos Trabalhadores nas eleições municipais, levantado explicitamente a bandeira do controle social do orçamento público…) No longo prazo, todavia, o principal desafio não são os defeitos e as limitações mais evidentes que, inevitavelmente, uma experiência desse tipo, por mais ousada que possa ser, apresentará em meio a uma sociedade heterônoma. O desafio principal é o risco de um “enquadramento” dos movimentos sociais emancipatórios em uma dinâmica estatal. Qual será, diante disso, a atitude mais produtiva: evitar qualquer contato ou aprender a “imunizar-se” contra um tal perigo? Postulo que a linha mais consequente deva ser adotada em conformidade com as circunstâncias concretas, nos marcos da conjuntura. De qualquer maneira, aprimorar a capacidade de não sucumbir e ver ganhos políticos e político-pedagógicos penosamente acumulados se dissiparem na arena da luta institucional é algo em que os movimentos precisam investir ainda mais.
Não perder o senso crítico e acautelar-se perante o Estado, portanto, são requisitos absolutamente indispensáveis, mas que não justificam a atitude reducionista (sintoma de preguiça mental) de, em nome da crítica, transformar princípios gerais em obstáculos à avaliação informada e inteligente de situações concretas e suas particularidades. A sabedoria dos movimentos e suas organizações passa por discernir com apurado senso crítico e explorar inteligentemente a utilidade (relativa) de certos canais e certas políticas (material e mesmo político-pedagogicamente), desde que estejam preparados para tirar vantagens com cautela, em vez de serem triturados e cooptados pelo Estado. E essa preparação não é nada fácil.
Notas
[1] Houve, certamente, incoerências, como as organizações clandestinas preconizadas por Mikhail Bakunin, inegavelmente pouco horizontais.
[2] Por “anarquistas clássicos” são entendidos, aqui, os libertários da segunda metade do século XIX e das primeiras décadas do século XX. Eles partilharam algumas coisas essenciais, como uma certa interpretação bastante restritiva das ideias de “poder”, “lei” e “governo”, por exemplo, ou ainda uma rejeição quase absoluta da luta institucional, mesmo da não partidária, defendendo, com exclusividade, a ação direta. Note-se, porém, que “clássico” não é um termo depreciativo, como se fosse sinônimo de “inútil e ultrapassado”. Ora, o que queremos dizer quando nos referimos a uma obra ou um autor como sendo “clássico”? Queremos dizer que se trata de um autor ou obra que, depois de décadas ou séculos, ou mesmo depois de milênios (Aristóteles!), continua inspirando e alimentando os debates e as reflexões. No entanto, a partir do instante em que admitimos que o pensamento e a práxis libertários são aqueles que compreendem, no essencial, o conjunto das abordagens e práticas que, clara e profundamente, se contrapõem, ao mesmo tempo, ao capitalismo e ao seu Estado, de um lado, e ao “socialismo burocrático” e seus pressupostos, de outro, será forçoso admitir que, ao longo e a partir da segunda metade do século XX, interpretações nitidamente libertárias que, não obstante, punham e põem em xeque e se afastam de várias das premissas do anarquismo clássico, foram surgindo, trazendo contribuições relevantes. Tais posições compreendem, especialmente, as vertentes neoanarquistas (a “ecologia social” e o “municipalismo libertário” de Murray Bookchin, por exemplo) e autonomistas (como a reflexão de Cornelius Castoriadis em torno do “projeto de autonomia”).
[3] Vide, de Marcelo Lopes de Souza, Fobópole: O medo generalizado e a militarização da questão urbana (Rio de Janeiro, Bertrand Brasil, 2008) e, do mesmo autor, o artigo “Com o Estado, apesar do Estado, contra o Estado: Os movimentos urbanos e suas práticas espaciais, entre a luta institucional e a ação direta” (Cidades, vol. 7, nº 11 [= número temático Formas espaciais e política(s) urbana(s)], pp. 13-47).
[4] Consulte-se, para uma exposição detalhada, sobretudo o livro A prisão e a ágora: Reflexões sobre a democratização do planejamento e da gestão das cidades (Rio de Janeiro, Bertrand Brasil, 2006).
[5] Ver, sobre isso, de Cornelius Castoriadis, p.ex. L’institution imaginaire de la société (Paris, Seuil, 1975); “Introdução: socialismo e sociedade autônoma”, em Socialismo ou barbárie: O conteúdo do socialismo (São Paulo, Brasiliense, 1983); “A fonte húngara”, em Socialismo ou barbárie: O conteúdo do socialismo (São Paulo: Brasiliense, 1983); “A questão da história do movimento operário”, em A experiência do movimento operário (São Paulo, Brasiliense, 1985); “Proletariado e organização, I”, em A experiência do movimento operário (São Paulo, Brasiliense, 1985).
[6] Consulte-se, de Daniel Guérin, L’anarchisme (Paris, Gallimard, 2009, edição revista e aumentada), p.23.
[7] Ver, de Nicos Poulantzas O Estado, o poder, o socialismo (Rio de Janeiro, Graal, 1985 [1978]).
[8] Vide, de Eric Hobsbawm, How to Change the World: Reflections on Marx and Marxism (New Haven e Londres, Yale University Press, 2011).
[9] Friedrich Nietzsche, Also sprach Zarathustra. Stuttgart, Reclam, 1994 (1883-5), pág. 149.
[10] Consulte-se, de Castoriadis, por exemplo, “Introdução: socialismo e sociedade autônoma” (op.cit.); “Pouvoir, politique, autonomie”, em Le monde morcelé – Les carrefours du labyrinthe III (Paris, Seuil, 1990).
[11] Consulte-se, de Bookchin, por exemplo, o livro Social Anarchism or Lifestyle Anarchism: An Unbridgeable Chasm (Oakland e Edimburgo, AK Press, 1995).
[12] O autonomista Cornelius Castoriadis e o marxista heterodoxo João Bernardo chamaram, por nomes diferentes – respectivamente, “burocracia” e “gestores” –, basicamente a mesma classe social, que João Bernardo denominou “a terceira classe fundamental do capitalismo” (ao lado dos trabalhadores e da burguesia), a qual Marx até teria visto “empiricamente”, mas cujo papel ele não compreendeu no plano teórico. Essa classe é formada por assalariados de médio e alto (ou mesmo altíssimo) nível de remuneração, envolvidos com atividades de direção, gestão, geração de conhecimentos e planejamento essenciais ao capitalismo, seja nas empresas privadas, seja no Estado. Tais agentes econômicos se diferenciam dos trabalhadores em sentido próprio por seu padrão de remuneração, seu status social, seu local de moradia e seu papel na esfera da produção; ao mesmo tempo, distinguem-se da burguesia pelo fato de não serem, no sentido usual, proprietários dos meios de produção, mas sim, como se disse, assalariados (ainda que possam ser, eventualmente, acionistas de empresas). É da classe da “burocracia” ou dos “gestores” que sairão os intelectuais, formuladores e principais organizadores dos partidos de tipo bolchevique do século XX, grupo social que se reproduzirá como classe dominante nos países do “socialismo burocrático”. Ver, de Castoriadis, por exemplo, diversos ensaios contidos nas coletâneas A sociedade burocrática – vol. 1: As relações de produção na Rússia (Porto, Afrontamento, 1979), Socialismo ou barbárie: O conteúdo do socialismo (São Paulo, Brasiliense, 1983) e A experiência do movimento operário (São Paulo, Brasiliense, 1985); e, de João Bernardo, consulte-se, acima de tudo, a obra em três volumes Marx crítico de Marx (Porto, Afrontamento 1977), mas também os livros Capital, sindicatos, gestores (São Paulo, Vértice, 1987), Labirintos do fascismo (Porto, Afrontamento 2003) e Economia dos conflitos sociais (São Paulo, Expressão Popular, 2007, 2.ª edição).
[13] Ou seja, uma cooptação não personalizada, que não se restringe a “amansar” ou mesmo “domesticar”, em meio a um processo bem delimitado, esse ou aquele indivíduo ou organização. A situação em que um ativista popular (como um sindicalista ou ativista de bairro) que se destacou por sua postura combativa recebe e aceita um convite para ocupar um posto no aparelho de Estado, retribuindo com a sua “lealdade” e a sua “cooperação”, é ilustrativa da cooptação em seu sentido mais usual. Essa cooptação pode ser comparada a uma erosão acelerada, facilmente visível a olho e que transcorre em uma escala temporal relativamente rápida, ao passo que, prosseguindo com as metáforas geomorfológicas, a “cooptação estrutural” pode ser comparada ao intemperismo, processos físicos, químicos e biológicos que vão desintegrando muito lentamente uma rocha. É isso que ocorre quando, ao “tomar o poder” de Estado, ou mesmo já ao conquistar suas primeiras cadeiras em uma casa legislativa um partido de esquerda que pretendia promover muitas mudanças vai, lentamente, se ajustando e sendo modificado pela estrutura que ele pretendia (ou dizia pretender) modificar. Vide, sobre esse tema, A prisão e a ágora, op. cit., pp. 454 e segs.
[14] Ver, principalmente, o livro A prisão e a ágora (op. cit., pp. 195, 330 e 591-2); vide, também, os artigos “Together with the state, despite the state, against the state: Social movements as ‘critical urban planning’ agents” (City, 10(3), pp. 327-42) e “Com o Estado, apesar do Estado, contra o Estado: Os movimentos urbanos e suas práticas espaciais, entre a luta institucional e a ação direta” (op.cit.).
[15] Vide Maristella Svampa e Sebastián Pereyra, Entre la ruta y el bairro (Buenos Aires, Editorial Biblos, 2004, 2.ª edição), pp. 218-9.
[16] Cf. Cornelius Castoriadis et al., A criação histórica (Porto Alegre, Artes e Ofícios, 1992), p. 129.

Fonte: Jornal Passa Palavra. Disponível em: http://passapalavra.info/?p=56901. Acesso em 27 abr. 2012.

(c) Copyleft: É livre a reprodução para fins não comerciais, desde que o autor e a fonte sejam citados e esta nota seja incluída.

1964: Notas sobre uma vitória simbólica

10/10/2011 18:54

Por Caio Navarro de Toledo

Doutor em Filosofia e Pesquisador na área das ideologias políticas, em particular do pensamento político brasileiro contemporâneo.

O recente episódio suscitado por uma placa, afixada no centro do campus da USP, revelou que não deixa de ser vitorioso o significado político-ideológico que as esquerdas brasileiras difundem sobre os acontecimentos em torno de 1964. Essa interpretação não deixa de ser hegemônica na atual cultura política democrática brasileira.

Na última 2ª feira (3/10), o blog Viomundo, do jornalista  Luiz Carlos Azenha, estranhou o fato de uma placa na USP conter a seguinte inscrição: “Monumento em homenagem aos mortos e cassados na Revolução de 1964”. A indagação do jornalista foi simples e direta: “A USP homenageia as vítimas da ‘Revolução de 1964’”? Imediatamente, outros blogs e parte da grande mídia (portais na internet e jornais impressos) também destacaram o fato da Reitoria da Universidade de São Paulo, por meio da placa, ratificar a versão que os militares e setores civis da direita brasileira procuram difundir sobre a intervenção militar ocorrida há 47 anos; qual seja, a versão segundo a qual em 1º de abril de 1964 teria havido uma Revolução, não um Golpe Militar! [Ninguém desconhece que, para os ideólogos civis e militares (de Delfim Netto a Golbery do Couto e Silva), 1964 representou uma “Revolução redentora” que, de forma pacífica, salvou o Brasil da subversão antidemocrática e do comunismo ateu bem como lançou as bases para a emergência de uma sólida economia industrial no país. Em contrapartida, para a extensa maioria dos intérpretes (partidos e autores) da esquerda brasileira, abril de 1964 significou um golpe civil-militar contra a democracia política e as propostas de reformas econômicas e sociais do capitalismo brasileiro.]

Divulgada a informação sobre a placa, a repulsa dos setores democráticos e progressistas não tardou. Por meio da internet, a comunidade universitária e os blogs progressistas denunciaram o estelionato semântico difundido pela placa que, reconheça-se – pelo seu conteúdo objetivo –, não deixava de revelar um fato altamente positivo: a construção de um monumento em homenagem às vítimas da repressão militar nos 25 anos de ditadura.

Menos de 36 horas após a denúncia feita no blog Viomundo, alguns jornais (5/10) informam que a placa foi retirada do campus da USP. Numa nota a reitoria da USP esclarece: “Houve um erro na inscrição da placa. O nome correto é: “Monumento em Homenagem aos Mortos e Cassados no Regime Militar”. Trata-se de um projeto do Núcleo de Estudos da Violência (NEV) da USP. A correção da placa será feita o mais breve possível”.

Embora a Reitoria da USP recuse a utilização da expressão “ditadura militar” na nova placa, deve-se reconhecer que uma vitória no plano simbólico não deixou de ocorrer. Esta pequena vitória foi possível graças às iniciativas daqueles que – face o fascismo cotidiano existente nas democracias capitalistas – exercem o direito de protestar e não ceder ao arbítrio e à violência no plano simbólico.

Foi o que fizeram, por exemplo, três estudantes da USP. Como informa o blog Viomundo, um estudante, desafiando a segurança, riscou a expressão “Revolução de 1964” e escreveu na placa: “golpe”. Dias depois, uma estudante acrescentou a palavra certa: “ditadura”. Horas depois, a mesma jovem voltou ao local e escreveu: “massacre”. Uma terceira estudante, blogueira, escreveu em sua página: “É um verdadeiro insulto a todos os estudantes e professores que foram perseguidos e mortos durante os anos de chumbo”. Se não fossem os estudantes, a placa insultuosa – aprovada pelos burocratas da Universidade –, certamente, ali permaneceria sob o olhar indiferente, complacente e despolitizado de muitos circunstantes.

No entanto, alguns estudantes não se calaram; manifestaram justa indignação. São eles que, nos dias de hoje, poderão também reescrever a combativa consigna vigente na luta contra o fascismo: no pasarán!”

O problema da democracia no partido de massas

04/08/2011 16:55

Por Bruno Lima Rocha

Doutor em Ciência Política e Prof. da UNISINOS-RS

A polêmica que se dá na interna do Partido dos Trabalhadores, a respeito do problema de filiação em massa e dos possíveis filtros necessários (ou não), para ascender na representação partidária reflete um tema de controle político. Não se trata absolutamente de problema novo. Sempre foi tensa a relação entre massificar o número de filiados e qualificar a participação política. Tentar impor etapas de formação antes de garantir plenos direitos e deveres pode ser visto como uma possível barreira para novos adeptos.
Para um partido como o PT, que em sua origem se organiza como um guarda-chuva de correntes de esquerda anti-estalinistas, a filiação direta sempre se contrapôs ao poder das tendências internas e suas massas críticas organizadas. Na prática, está em jogo o ato de premiar a militância orgânica e com formação política ou fortalecer o papel de dirigentes, reforçando o conceito de oligarquias partidárias.
Trata-se de um paradoxo. O aumento dos membros nominais de um partido não implica em nenhuma garantia de engajamento, é justo o contrário. Considerando o senso comum como uma negociação permanente entre a sobrevivência e a condensação das idéias dominantes, temos um problema de doutrina político-partidária. A presença de membros plenos de direitos e deveres, mas que não são capacitados a atuar em nome do coletivo ao qual pertencem, abrem um flanco muito perigoso. Essa maioria despolitizada facilita a reprodução dos piores aspectos da cultura política brasileira, como o caciquismo, patrimonialismo, clientelismo e fisiologismo. De tão forte, o fenômeno ganhou uma denominação de uso comum na militância. Massa mobilizada sem politização é chamada de “boiada”. Triste notícia, a prática é antiga.
Evitar a conformação de “boiadas” deveria ser preocupação permanente, ao menos das esquerdas (em sentido amplo) existentes no Brasil. Ao contrário do que possa parecer, aumentar a participação é inversamente proporcional ao ingresso de membros sem condição de militância. O militante tem de ser alguém minimamente dotado de informação e conceitos de modo que possa emitir opinião e posicionar-se a respeito de temas de envergadura, tanto para a conjuntura como para as instâncias internas da organização. É uma equação simples. Não havendo militância, a vida partidária se esvazia e prevalece a lógica da concorrência eleitoral e a simples partilha de cargos e poder.
Quando a maioria que ingressa é pouco ou nada politizada, os mandos pertencerão aos dirigentes de sempre.

Este artigo foi originalmente publicado no blog do jornalista Ricardo Noblat

Fonte:  http://www.estrategiaeanalise.com.br/ler02.php?idsecao=e8f5052b88f4fae04d7907bf58ac7778&&idtitulo=bcccc6ca324ae7f226eba433e7e6a53a

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